Um exemplar de asa branca [Columba picazuro] / [s/i/c]
Asa Branca
“que eu te asseguro”
[Gonzaga/Teixeira]
De fole em fole um povo faz folia;
Da sua tristeza extrai crua alegria
De quartzo, litania de estios, lençol
Branco engomado após quarar ao sol.
Longe é sempre perto, essa imagem
Da terra perdida por decapagem.
Terra como nenhuma outra paisagem
paradoxo, do verde para zincagem.
Nos esguios quintais da cidade fria,
Sob ciranda há baldrame, aboio, elegia;
E a saudade, asa de dor do pensamento,
Faz-se branca quando é negra e o contrário,
Tomando à cruviana, à asa do vento,
Ao verbo assolado de memento seu salário.
[Fortaleza, 21.07.09]
Nota – nenhum povo do Brasil foi tão educado – quase sempre de modo duro, áspero, arbitrário – a reter a paisagem como instância moral. A trocar fichas com ela. A barganhar um senso de paisagem. A portá-la consigo onde quer que esteja. A remontá-la em ausência, como um quebra-cabeças, cuja edição convoca memória e nostalgia. Uma eloquência e uma retórica ao mesmo tempo. Forma/conteúdo. Alusão bíblica. Lamentação de Jeremias. Exílio. Babilônia. Convergência estética. Nomeação adâmica. Aquela frase de Benjamin: “só em nome dos que não têm esperança, a esperança nos é concedida”. E para ter esperança é preciso ter paisagem, descortinar um horizonte no qual há uma opção mais que um imperativo. Basta ver como da paisagem do Nordeste se fazem as símiles e metáforas em poetas como Cardozo ou Cabral. Em Cardozo, a mais litorânea [e mais metáfora]. Em Cabral, a mais agreste [e mais símile]. Basta lembrar de como Ricardo Ramos, do alto do Corcovado, descortinando toda as montanhas, o mar, a baía, ao louvar a compósita beleza do Rio, ouviu do pai: “É até bonito. Agora, bonito, bonito mesmo é o sertão das Alagoas”. Basta ver como o sertão está no título das obras maiores de Euclides e Rosa – os dois pilares base da prosa brasileira no sec. XX. [Será acaso que o primeiro jagunço nomeado, no Grande Sertão, por seu valor de lealdade e bravura, é 'Alaripe', um cearense, que, de resto, refere, em velada homenagem, Tristão de Araripe - um dos primeiros críticos mais sistemáticos da literatura no Brasil?]. Tudo isso para não falar em nomes como Odorico Mendes (que é um dos maiores tradutores da língua portuguesa), Kilquerry, José Albano, Augusto dos Anjos, Freyre, Cascudo, Bandeira, Jorge de Lima, Mário Faustino, Mello Mourão e até Clarice Lispector. Sem o Nordeste, a literatura brasileira do sec. XX seria um zero à esquerda. Não haveria, por exemplo concretismo – que deriva, como sabemos, em seu vetor mais lúcido [isto é, via Augusto Luís Browne de Campos], de Cabral. E toda essa aversão e pejorativismo em torno dos ditos regionalistas de 30 carece de ser revista, porque não passa de um mau clichê crítico que agarra-se ao pensamento do leitor mediano como cracas e ostras ao casco de um barco. [E ainda chega a ser nutrido por um espírito enfatuado, superficial, jogo-de-mídia, como Diogo Mainardi]. Talvez porque, para não falar de Graciliano, não se leia mais um romancista como Lins do Rego – que guarda sutilezas estilísticas à Faulkner ou à Flannery O'Connor. E, além, há os empréstimos do Nordeste á música erudita. Depois de chafurdar o país inteiro - o Sul, por exemplo, de onde quase nada recolheu - é do Nordeste que Villa-Lobos irá extratar temas diretos de canções folclóricas a explorar em suas experiências harmônicas, como "Sertão do Caicó" e tantas outras. Isso para não falar de onde emerge, de fato, o Cinema Novo. Hora de trazer tudo isso de volta para casa, sob novas lentes. E auferir dessas riquezas. Hora de um nóstos crítico-histórico. Hora de se contrapor ao mau-humor e fastio que esses pseudo-cosmopolitas sudestinos entediados, na academia e fora dela, tentam empanar com uma peneira contraposta ao sol [ou para usar uma palavra mais precisa, pinçada do soberbo Infância de Graciliano, uma urupema]. Num quadro para fotos e suvenires no alojamento que ocupei em Tocil Flats, na Universidade de Warwick, no início dos anos 90, os únicos versos afixados eram os desta estanza do Cardozo de “Imagens do Nordeste”:
A minha casa amarela
Tinha seis janelas verdes
Do lado do sol nascente;
Janelas sobre a esperança
Paisagem, profundamente.
Já esse aposto de saudade, “asa de dor do pensamento”, vem de um soneto do poeta simbolista piauiense [Antônio Francisco] da Costa e Silva, que, curiosamente, é também autor da letra do hino do Piauí.
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