Suzana
às vezes lia os textos dele. Não que ela achasse alguma revelação
ou consolo neles, apenas era o que tinha mais à mão. Especialmente
quando faltava grana para ir ao próximo livro. Ou coragem para ir
até a esquina comprar a Bravo! Essa, uma das poucas serventias dos
blogues: suprir pequenas preguiças. E algumas veleidades de rapariga. Mais ou menos como ser bom supor
ter por perto um supermercado 24 horas, ainda que não se vá lá a
três por quatro, às três ou quatro da madrugada.
Principalmente
às três. Como nos versos de Torquato.
E
então Suzana às vezes lia o blogue dele, enquanto terminava de
chupar o resto do iogurte na colher da sobremesa. Sequer a visão do
amplo Atlântico tornado piscina serenada, na enseada, após o
quebra-mar, lhe sustinha os achaques da idade. E do parque eólico
junto ao porto deviam provir essas ventanias de agosto e de setembro.
Desembestadas. Os cabelos de Suzana, no entanto, pouco esvoaçavam
nesse vento que refresca à sombra mesmo com o dia a meio.
Desde
menina, decidiu-se reclusa. Coisa que o pai, representante comercial
e em constantes andanças por capitais atrás de capitais, não podia
obstar-lhe: uma vida social mais estável e enérgica. Era separado, e a mulher afastara-se da vida deles por alguma razão. E então,
Suzana, de costas, caída desde o encosto do sofá, refestelada, com
o marca texto à mão, escolhia a frase mais ou menos barroca como a favorita
da tarde, enquanto na área de serviço o canário cantava amplamente, anunciando que mais um dia sazonava no meio daquela greve, que não
tinha mais fim, da universidade. E Suzana marcava textos, e imaginava
o porquê de os escritores serem assim tão sórdidos, como ele se
revelara num porvir que ela havia imaginado de outro jeito.
Mais
precisamente em certo imeio. E logo ele, que tinha idade de ser pai
dela e até parecia boa gente.
-É.
Com folga. De longe – pensava agora – Deus'ulivre.
Mas
Suzana tinha um porvir e planos. Uma pós-vida em uma pós-cidade,
uma pós-graduação sobre um autor pós-moderno e a possibilidade de
uma identidade postiça e pós-amigos, após isso. Possessa, ela
fazia mil planos a posteriori. E, assim, quando os planos começavam
a não dar certo na sua imaginação, ela desandava a enviar
mensagens do smartphone sempre ao alcance de um toque. E em sessenta
e quatro por cento dos casos era respondida. Pós-imaginação.
Quase de imediato. E então meio que enviava uma foto com a nova
pintura da unha do dedinho do pé.
Mas, às vezes, não podia evitar de voltar-se sobre as próprias curvas. E, então, entregava-se à imaginação, à lassidão gozosa e às carícias auto. Grunhia baixinho, suave, se os vizinhos mais barulhentos entrassem em inesperado armistício. E o silêncio, como um devoto, ajoelhasse sobre o vão da sala e colhesse, em pleno quarto andar, os gemidos dela como se colhe amoras, e pusesse dentro de um ex-voto.
Mas, às vezes, não podia evitar de voltar-se sobre as próprias curvas. E, então, entregava-se à imaginação, à lassidão gozosa e às carícias auto. Grunhia baixinho, suave, se os vizinhos mais barulhentos entrassem em inesperado armistício. E o silêncio, como um devoto, ajoelhasse sobre o vão da sala e colhesse, em pleno quarto andar, os gemidos dela como se colhe amoras, e pusesse dentro de um ex-voto.
Mas
e a escrita dele? Essa não entrava nessas posteridades
desterritorializadas. E era apenas como o quê? Como a borra do
iogurte na colher de sobremesa, que ela lambia lentamente enquanto o
fade derretia tarde na câmera da estival primavera em que estavam
condenados a viver.
Um
dia encontraram-se à Beira Mar. Um pouco remotamente. E caminharam
para lá e para cá. Como se faz. Quando não se tem mais uma tela
entre. Lá e cá. Uma cela.
Uma
tela, aliás, sempre nos deixa menos no prejuízo. E imediatamente depois de uns poucos blagues, ele logo começou a rir mais amarelo do
que o uniforme número três do Palmeiras. Sozinho. Quem manda: na vida real não existem
undos. Ela? Comprou um acarajé e discorreu sobre seus anos na
França e uma amiga em comum:
–Mesmo
com pouca pimenta, tá pegando.
Ele
apontou algumas coisas. Lá e cá. O velho edifício em forma de
navio em que havia morado nos anos 90. Como era isso, aquilo. Como
aqueloutro era animado:
–Aqueloutro?
– Suzana indagou.
–É,
Aqueloutro. Nunca ouviu falar?
–Eu
não – ela disse.
–Puxa,
é isso mesmo: não é do seu tempo, não, Suzie. Mas era um barzinho
muito decente, viu? E o Sá Júnior servia nas mesas do Aqueloutro, e
coisa e tal. E o Baleia... Não. O Baleia, não. Era só no Estoril.
–E
quem ia no Aqueloutro? – ela perguntou disfarçando certo
tédio-ambiente. Não queria encompridar conversa, e, entretanto, não
sabia abreviá-la com bisturi mais súbito.
E
então a coisa ia longa: a que horas abria o Aqueloutro. Quem
frequentava o bar famoso (além dele, claro). O que tocava. Que
músicos iam por lá. Quem pintou o painel. Em que ano foi ampliado.
As meninas que sorriam, acenando, desde o mezanino...E até o dia em
que ele disse para o Cariry, ambos mortos de bêbados, que todo
grande cineasta termina em -berg: como Rosemberg e Spielberg. E
análogas sandices.
Ela
ouvia enfastiada, mas fazendo ouvidos de interesse – não houvesse
certa mercancia em volta da coisa – só para não contrariá-lo.
E, quando ele não estava olhando, fixava aquelas entradas na testa,
desolada, e os grisalhos. Cheia de fascínios. Mas era algo mais da
ordem da mãe. E da filha. E da estudante marca-textos. E que mulher
não porta mãe, filha e estudante marca-textos ao se esquecer de si?
Verdade:
mal conseguia explicar o tesão que lhe davam os grisalhos dele.
E,
entretantos, a coisa parava ali. Bem ali. Pois bem podia dissociar
entre os grisalhos e ele. E entre ele e carícias menos públicas. Ele, no entanto, queria carícias mais púbicas. Ou pelo menos mais púbicas. Queria era beijar o cu dela, e, adiante, empreender uma ruma de outras fundas sacanagens.
Ela, todavia, sonhava mesmo era com outro. Um sujeito jovem, suave, tímido, de cabelinho crespo, que deitava a cabeça no colo dela e ficava em silêncio. Um tempão. Não precisava lançar mão de tantas palavras. Ou tocar em tantos assuntos. Ou se tocava, era violino. Mas não, não gostava de poesia, embora o pai deste, do violinista, que cometera versinhos mais ou menos ao tempo em que tinha a idade dela, possuísse uma até vasta biblioteca.
Ela, todavia, sonhava mesmo era com outro. Um sujeito jovem, suave, tímido, de cabelinho crespo, que deitava a cabeça no colo dela e ficava em silêncio. Um tempão. Não precisava lançar mão de tantas palavras. Ou tocar em tantos assuntos. Ou se tocava, era violino. Mas não, não gostava de poesia, embora o pai deste, do violinista, que cometera versinhos mais ou menos ao tempo em que tinha a idade dela, possuísse uma até vasta biblioteca.
Agora,
pra falar a verdade, cores, embora emotivas, não correspondem à
necessidade sólida de um bem querer. Afinal, amor que fica, não é
amor de apostilha, como é sabido. Mesmo em tempos de greve.
–Grave
essa! – disse Suzana baixinho, passando o marca texto na frase acima –
“amor que fica...amor que fica, não é amor de apostilha, como é sabido. Mesmo em tempos de greve” –
repetiu em certo tom de sonho, supinamente recostada no sofá, os
olhos comprimidos como espátulas.
E
o mais, era só a repulsa que aquela figura de meia-idade,
ensimesmada, professoral, ventre ligeiramente proeminente, muitos
pelos avulsos do pescoço às orelhas, podia causar numa
recém-pós-adolescente, que gostava de marcar textos, enviar
mensagens, escrever diários,
enquanto
seu lobo não vinha.
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