sábado, 19 de novembro de 2011

Uma cadeia de alívios

Jeff Wall, Flooded Grave, 2006


Lembre-se de Morrer

Quando ela perdeu o favor dele fazia novembro. O sol começava a escaldar no chapisco dos muros. Cair em placa fervente. Tão avassalador e indiferente que, se um tênis fabricado em zonas pouco mais temperadas fosse posto para secar ao sol, viraria pudim. Debaixo do oitizeiro, o vendedor de chegadinho retirava o suor do rosto com a ponta da camisa. Depois retirava a camisa, e olhava com desaprovação os circunstantes imaginários. As chuvas do caju já se tinham ido. E o calor mormacento de fim de ano cercava a cidade com fúrias de cavalaria cossaca. E a convertia em terra de ninguém e febre. O comércio animava-se com as antecipações de décimo terceiro. E os campeonatos nacionais conheciam rodadas periclitantes nas duas pontas da tabela – os times locais a lutar, salvo exceção, para não cair uma divisão a mais – não importa qual. E, embora o estado deles não aderisse ao horário de verão, na prática, o horário de verão se estabelecia a eles, pois a programação da principal rede de TV antecipava-se em uma hora afetando a rotina de milhões.
Tinham combinado, por mensagens de celular, de se encontrar às nove próximo a um terminal de ônibus, no médio subúrbio, perto de uma lagoa. Ela não havia checado ao certo o mapa virtual. Mas não seria tão difícil assim furar um caminho para eles através da cidade.
Para começar, ela havia sugerido que fossem no mesmo carro. Ele declinou polidamente, alegando um compromisso na sequência. Pretextando a agilidade de seguir no mundo, ao invés de tornar à casa para tomar o carro, etc. Ela insistiu um pouco. Mesmo que nada. Ele podia ser voluntarioso como uma mula. Até a margem da rispidez. E assim, na hora acordada, viram-se um diante do outro pelos respectivos vidros foscos. Ou antes disso, pelos retrovisores. E depois disso pelos óculos escuros. Ela desceu e caminhou até o carro dele, estacionado à margem do tráfego que serpeava por uma avenida estreita e repleta.
Nenhum dos dois conhecia bem por onde as rodas de seus carros estavam a girar. Mas ela, auto-indulgente – como de hábito – apenas disse:
Deixe comigo, a gente encontra fácil.
Quase duas horas desse deixe comigo e de idas e vindas e até uma parada para uma água de coco e um café e cigarros depois, chegaram ao cemitério a tempo de ele dizer com bagatelas de mágoa na voz:
Você devia ter me situado melhor. Passo em frente a esse cemitério quase todo dia quando vou deixar minha filha na escola.
Em passos lentos e um silêncio por pouco, seguiram até os escritórios.
O administrador do cemitério se encontrava em Brasília, numa viagem de negócios. Mas sua secretária os recebeu e lhes foi inteirando do necessário a trazer para que o campo santo, um empreendimento privado, pudesse abrir suas portas para as câmeras deles no papel de cobiçada locação:
O filme é para TV, não é assim? – perguntou a secretária.
É sim, respondeu ele. Vocês vão ter bastante visibilidade.
Qual o canal?
O quinze.
Ah, pensei que fosse o 10 – a secretária deixou escapar, em ponta de estoque, o saldo de sua decepção, ao constatar que o filme não seria exibido na retransmissora da Globo.
Mas o horário, dez e meia da noite é uma maravilha, público adulto, anunciantes quentes, a firma de vocês vai sentir o resultado depois dessa janela – ele completou.
A secretária limitou-se a olhá-los com um ar de: “Deus te ouça, estamos precisados mesmo dessa publicidade, porque os negócios não vão bem; e se tem morrido menos no estio deste ano, com crediários ao gosto do freguês e bolsas família para todos lados”. O problema, aqui, é que tanta força pôs em disfarçar a situação que esse olhar “deusteouçado” assomou ainda mais revelador.
Ela, usualmente expansiva na intimidade, contemplava o medonho arranjo floral nos cabelos da secretária, junto com o inevitável excesso de maquiagem, e não dizia nada. Também por receio de interrompê-lo. Ou, por uma gafe – não de todo inpremeditada pelo inconsciente – botar tudo a perder ao torpedear os próprios argumentos dele. Afinal, era ele quem produzia o filme e editava. Ela era apenas a assistente de direção.
Polvilhada de burocracias sem fim de inúteis seguia o meio de campo entre a produção do filme e a administração do cemitério. Prazos exauriam-se. Eram descumpridas rotinas. Maus tratos à equipe de gravação por parte dos seguranças do campo santo foram as cerejas no bolo. Ânimos exaltavam-se a ponto de cada partido chamar o outro grupo de “eles”. Ou entrevê-los com bile e sedes de fígado.
Nesse meio-ínterim, ela morreu. De repente, mas, como sucede ser, não menos definitivamente: o que desfechou não só o affair tenso e sinuoso com ele, como também o impasse entre o pessoal do filme e o pessoal do cemitério, propondo uma trégua que só um evento assim.
Não é proveitoso estender-se a propósito da aventura que tiveram. Não foi nem mais nem menos arrebatadora e mórbida que outras aventuras do gênero, em que diferença de idade e interesses investidos por variados e intercambiáveis jogos de poder recombinam-se com a doce clandestinidade do adultério para fazerem-se ainda mais protagonistas.
Para o modus operandi deles, isso se refletia, acima de tudo, numa troca de e-mails por meio da qual cada um fazia a vida do outro um pouco mais miserável. E, em especial, ele fodia com a dela. Pois era ela a mais velha, estabelecida, respeitável, o elo vulnerável, enfim.
No dia do enterro dela, por sinal, ele não sentiu senão uma cadeia de alívios. Algo incontrolável. Em nome da autocompostura, tentou atenuá-los lembrando de como haviam se conhecido, na academia de tênis, certa tarde. Mas logo algo nele não se conteve: “ela era tão ruim que se jogasse sozinha empatava”. E como mesmo aquele idílio inicial fora consumido pelo azedume posterior das inevitáveis conflagrações, dela lhe ocorreu em resumo uma frase avulsa e distinta, posta por crista de galo em uma das rinhas deles pelos meandros da rede:
Lembre-se de morrer!

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