sábado, 19 de novembro de 2011

Custa pouco ser dono do vento: Jozséf

[s/i/c]


Eis aí o Saldo Final


Confiei em mim desde o primeiro momento.
Custa muito pouco ser dono do vento.

E à besta não lhe é mais custosa
a vida, até que a lançam à fossa.

Nasci, amei, fui longe, fiz o resto.
Com medo, às vezes, mantive-me no posto.

Paguei sempre as dívidas contraídas
e agradeci, com as mãos estendidas.

Se fingida mulher aqui e além me quis,
amei-a, para que pudesse ser feliz.

Fiz cordas, varri, dei-me ao vinho
e entre os espertos fingi-me cretino.

Vendi brinquedos, pão e poesia,
jornais e livros: o que se vendia.

Não morrerei enforcado em fácil trama
ou em grande batalha, mas na cama.

Vivi (já eis aí o saldo final):
Muitos outros morreram deste mal.


Attila József

Tradução de João Luís Barreto Guimarães



[fragmento (final) do poema "Consciência"]

[...]


XII.

Moro ao lado dos trilhos. No ir
e vir dos trens vejo e revejo
janelas acesas vazando-se a zunir
no breu pegajoso, por lampejo.
E logo em noite de infinito devir
passam os dias luminosos e eu me vejo
Na luz de cada cabine a prosseguir
em que apoio os cotovelos e bocejo.


Attila József

Tradução nossa [a partir de versões em italiano e inglês]


NOTA - Será que há uma índole, um caráter nacional ainda mais carregado de melancolia que o húngaro?¹ Difícil. Attila József teve duas obsessões: a mãe e os trens. 

¹Até o Hino da Hungria é lindo, solene e devastadoramente grave. Um hino em todos os seus aspectos e no sentido literalmente religioso. E não só por sua estrutura musical, como desvela o primeiro verso da letra: Isten, áldd meg a magyart” (“Ah, meu Deus, abençoai os húngaros”).  É mais bonito e absorvente que o alemão  (que é de Haydn e era também Hino do Império Austro-Húngaro -- pois composto originalmente para a Casa de Habsburgo). Por outra via, "A Magyar Himnusz" parece pinçado de um oratório de Bach. [Para ouvi-lo, por favor, clique AQUI (ou AQUI para a versão só instrumental)]. Com um hino desses, compadre, é mais fácil deixar de ser pacifista, e escrever seja o que for. Tomar parte numa cruzada. Ou morrer pela pátria. Ou compor uma elegia, um épico. Ou combater os otomanos. Só por um hino desses saímos no lucro com a fração do Império. De outro modo, as riquezas da literatura húngara levaram Edmund Wilson a aprender o húngaro já na maturidade, irrequieto que era. E curioso, no melhor sentido. No sentido poundiano. E, para além, lembrar que Sándor Márai escreveu um romance, Veredicto em Canudos (1970) [editado por estas bandas pela Companhia das Letras], baseado em Os Sertões de Euclydes da Cunha. Ou ainda lembrar que Joyce chamava Budapeste de "Judapeste", pelo fato de a cidade -- estamos antes da Shoah -- concentrar uma das maiores comunidades judaicas da Europa. Um dos mais destacados poetas brasileiros da geração pós-concretismo, aliás, Nelson Ascher, é de ascendência judia-húngara. Ascher é também um fino tradutor de poesia.


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