terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ainda Morte & Shopping Center

O Shopping Center Iguatemi, em Fortaleza, [s/i/c]


Shopping Center em Leamington-Spa, Warwickshire, Inglaterra


Shopping-Centers como metáforas de morte
-algumas antenas esparsas para uma visão entre arquitetura e suicídio em Fortaleza


Há uma impressentida relação entre morte e shopping-center. E não é fácil traduzi-la. Mas ensaiar é de graça.


A primeira vez que essa associação me ocorreu, deu-se tão-só na forma de um insigth, uma impressão. Sob, digamos, a tela irrefletida de um déjà-vu. Em verdade, apenas percorria, meio ao acaso, os espaços de um shopping, porque precisava comprar um par de sapatos e um casaco. E por acaso, esse dito shopping era quase idêntico (?!!?) ao Iguatemi [parte nova, a que se situa na junção da parte antiga e se estende em passarela ao atual hall principal de entrada, que está na foto mais acima], só que ficava numa cidade inglesa, chamada Leamington-Spa. Ou seja, há milhares de quilômetros de distância, numa outra latitude, clima totalmente outro... porém dois espaços como que “gêmeos”.


E lembro que isso me passou uma estranha sensação de morte. Porque quando há morte, qualquer novidade cessa. Qualquer movimento. E o imobilismo se apossa de tudo. É uma falta de expressão, como quer Lévinas: "a paragem de movimentos expressivos [...], que se mostram, que fazem mais do que mostrar-se, que se exprimem". Ora, o idêntico não se exprime. Recordo também que era numa época próxima ao Natal e que havia uma deplorável réplica de um pavão mecânico, que movia apenas o bico e o longo pescoço, o que acrescia tons ainda mais funestos ou surreais à coisa toda – porque, de algum modo um pouco cômico, me fazia lembrar do jogo do bicho (e logo não haveria algo mais antitético que a informalidade das banquinhas de Paratodos e a impessoalidade profissional dos espaços públicos ingleses).


A estrutura desse shopping inglês, no entanto, realmente muito se assemelhava ao Iguatemi. E não só por dentro. Por fora, ele também possuía um vasto estacionamento – apenas um pouco mais arborizado, e com aqueles bancos de madeira que se encontram embaixo de quase qualquer arbusto Reino Unido afora, dando ao país uma impressão de parque contínuo. Mas no geral, o edifício era quase neutro, amorfo, como é o Iguatemi. Quer dizer, um conjunto de paredes cegas vazado por algumas portas de entradas envidraçadas – e em geral foscas – dando para um estacionamento.


Essa estrutura, convenhamos é tumular, desde que busca eliminar tudo que está fora pela falta de janelas ou terraços que se debruçam sobre o exterior. O princípio é quase uterino. Fixar o olhar no dentro, na mercadoria. Ou mesmo se é o caso de um grande magazine, orientar as gôndolas ou as prateleiras de um modo labiríntico, de tal forma que não se possa dar dez passos sem ter de desviar-se da mercadoria que te roça as fuças. Sem ter de tropeçar nela, que lá se encontra, sob um determinado ângulo e debaixo de uma iluminação artificial, graduada para torná-la ainda mais atraente sob o conforto refrigerado e o polido piso de granito que teus sapatos pisam quase pedindo desculpas.


E é esse templo de adoração da mercadoria – cujos avós, as passagens parisienses, já tanto fascinavam a mente prolífica de Walter Benjamin – que sugere um vazio, um nada de história. E esse nada se dá sob a forma de uma assepsia análoga ao esforço que hoje se faz para tratar da questão da morte. Morre-se – como apontaram entre outros o próprio Benjamin e Huizinga, ou depois deles Elias e Foucault – em hospitais, debaixo de dezenas de tubos e aparelhos de precisão. Não mais em casa, cercado pela família, etc.


Os shopping-centers estão num meridiano oposto a qualquer espaço ao ar livre onde ressoam pregões – este grito de vida: as feiras, que estão na própria origem da maioria das cidades brasileiras. E que surgiram em encruzilhadas de caminhos onde se tangiam boiadas ou passavam tropeiros com suas mulas de carga. Feiras, onde, ao contrário do shopping, há sol, ar livre, mendigos, odores fortes, etc. 


É certo que nos últimos tempos – e felizmente – uma parcela maior da população brasileira passou a ter acesso aos shoppings. Deselitizando-os um tanto. Desglamurizando-os. Mas isto não parece ter afetado sua condição arquitetônica essencialmente tumular.


Foram preciso décadas até que surgisse em Fortaleza um único shopping em que timidamente há terraços de onde se pode sentar e tomar um café contemplando o exterior. O “fora”. Como no caso do Via-Sul – entre os de grande porte, talvez o mais recente e o único que faculta essa possibilidade.


Os outros fecham-se sobre si mesmos. Não importa se se encontram em bairros mais abastados como o Aldeota ou o Del Passeo. Ou menos, como o Benfica e o North Shopping.


Essa estrutura do shopping entra em atrito direto com um dos espaços mais belos e simbólicos de nossa arquitetura: o alpendre. 


O alpendre é o limiar da casa rural e praticamente desconstrói, saborosamente, essa dicotomia entre o fora e o dentro. É o mesmo que foi legado à casa de veraneio sob a forma de varandas. Ou seja, espaços que estão tão a meio-termo entre o dentro e o fora que, numa chuva com vento, é impossível neles sequer tirar uma sesta.













Soa um tanto unilateral que Bruno Zeni, em Saber Ver a Arquitetura, nos diga que “a definição mais precisa que se pode dar atualmente da arquitetura é a que leva em conta o espaço interior. A bela arquitetura será a arquitetura que tem um espaço interior que nos atrai” [ZENI, 24, grifos nossos]. Isso se dá, porque por mais que o espaço interior seja um importantíssimo fator a levar em conta, o limiar entre o espaço de dentro e seu entorno assoma ao menos tão importante quanto. Ou seja, o modo como se dá a interação entre espaço interior e exterior. E parece óbvio que esse entorno, que deve manter uma relação harmônica com o interior, está em geral, nas grandes cidades, salpicado de referências sócio-históricas ou comprometido com relações de impacto ambiental e paisagístico de alta relevância. Embora seja possível concordar com Zeni quando ele afirma que “existe, pois, um outro elemento além das três dimensões tradicionais [altura, largura, profundidade], e é precisamente o deslocamento sucessivo do ângulo visual” [22], tal qual suspeitaram, em antecipação da montagem cinematográfica, os pintores cubistas ainda no início do século passado. 


Reaterrisando no local, no entanto, desconheço relatos de pessoas que se tenham suicidado em feiras. Mas é intrigante que suicidas busquem a mureta dos andares superiores que miram o centro do shopping, seu mall, depois de ascenderem contemplando-os pelos elevadores – aliás ditos, ironicamente, "panorâmicos", quando o "panorama", ao invés da avenida ou da praça "lá fora", são esses espaços endemicamente desalpendrizados, claustrofóbicos. E, no entanto, "centrais" para a lógica de espacialidade das novas gerações.


Parece que há algo da ausência de história, do pregão, da feira, da encruzilhada, do consórcio entre o dentro e fora, do princípio do alpendre, que segue em conformidade com a imensa angústia dessas pessoas que se suicidam nos shoppings. Eles assomam como o espaço de purgação final porque é onde a sociabilidade, ao menos para as gerações mais novas, encerrou-se por excelência. E, no caso do Shopping-Aldeota, ainda com o agravante de estar tão próximo da verdadeira ilha de reunião "tribal", que é a Praça Portugal e no próprio coração de uma das áreas mais prósperas da cidade. Além do fato de ser provavelmente o shopping mais vertical de Fortaleza, por contraposição, por exemplo, ao Iguatemi, onde essa verticalidade é mais percebível apenas em um prédio anexo, de estacionamento por andares.


Mas, claro, tudo isso é apenas conjectura. Há já toda uma geração que cresceu dentro de shoppings e deve tê-los humanizado, de alguma forma. Criado laços de memória afetiva por esses espaços, no fim das contas, privados. Ainda que seus olhares possam se ter mesmerizado excessivamente para dentro. Para dentro do shopping em detrimento da vida e da história, que se encontram muito mais na cidade, lá fora. Onde obviamente e, em especial, em seu Centro, a pulsação de vida assenta-se sobre um esteio histórico bem mais concreto e de longa duração. Embora desconhecido da maioria desses jovens. Enxovalhado pela especulação imobiliária, que entortou toda a prosperidade de Fortaleza para os novos bairros a leste, no entorno da Avenida Washington Soares e seguindo rumo ao Eusébio e o Porto das Dunas.

Aliás, há cerca de três meses, gravando um documentário que recem-editei, e que versa essencialmente sobre a relação entre memória, espaço e literatura, não obtive a autorização para gravar em dois desses shoppings: o Iguatemi e o Via-Sul. Ou melhor expressando: os entraves colocados foram enormes. Delongas. Burocracias. Aquelas desculpas do tipo: os responsáveis estão viajando, mas chegam dia tal; etc.


Até parece que eles estavam adivinhando algo. Pois meu desejo era o de mesclar imagens de shoppings vazios com os de um cemitério moderno contiguadas a um labiríntico depósito de material sucateado.


Das três locações, gravei apenas no depósito. Mas lancei mão de sons captados em shoppings. Quer dizer esse labirinto de descontexto que conforma um depósito dessa sorte “legendado sonoramente” pela atmosfera dos ruídos de um shopping em determinados momentos de pico, em termos de frequentação.


Haveria ainda outros aspectos a agregar, pois uma sociedade minimamente sadia iria tomar mais este caso de suicídio no Shopping Aldeota como algo a se refletir seriamente. Porém, do contrário, há um quase total silêncio da imprensa local em relação a casos do tipo. Será que por transcorrerem em espaços de potenciais anunciantes? Será pelo poderio econômico dos proprietários desses espaços que concentram um comércio de alto padrão na cidade?




Um outro fator a se ter em conta é o apelo que os shoppings exercem entre algumas das pessoas mais solitárias que conheço. E sobretudo o de um shopping estar repleto de pequenos nichos voyeurs. Em que, quase sem se ser visto se entrevê o comportamento dos outros, dos passantes, etc. Mas isso iria estender o assunto para outras feiras, além desta terça. 




P.S. - Há vários textos que tocam nesta questão, nem que por tangência aqui em Afetivagem. Porém para dois breves artigos discutindo o tema dos shoppings e da memória, clique  em:




O problema com tantos shoppings é justo o de não ter um Centro





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2 comentários:

  1. Odorico Leal5/10/10 10:02 AM

    Muito bom, Ruy. Já pensei um pouco sobre isso, à época do segundo ou terceiro suicídio no Shopping Aldeota. Que pena que vc não conseguiu autorização para filmar dentro do Iguatemi e do Via Sul. Seria massa mesmo. E pena tb que eu, na vida na corda bamba da sanidade que ando levando, não lhe mandei o texto que vc me pediu. Gostaria de ter participado, sim. My lost.

    Abraço,

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  2. olá, rapaz!
    fico feliz que você tenha reaberto o 'dessincronizado'. um texto seu teria sido muito bom para o documentário. mas não se desculpe. é isso mesmo. essa correria que é a vida. e fico torcendo para q o projeto coletivo seu e da 'oktober' acabe dando num cd tão bom quanto seu trabalho solo.

    um abraço,

    p.s. - aliás por conta da mesma correria inda não li seu artigo sobre o mourão.

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