domingo, 24 de junho de 2012

Dois sinais na perna esquerda de um n caído para a esquerda


A Promenade, o calçadão à beira-mar em Split

A Placa (ou Stradun), emDubrovnik, pérola do Adriático

Duas cidades na Dalmácia concluídas numa frase 
Oliveira, vinha, montanha, mar: o litoral mais belo da Europa

A Croácia é um N em direção ao Noroeste. A perna esquerda desse N caído segue, por sinal, roída. Ou foi mal apagada: desfaz-se em farelos. Esses farelos estão na água: são ilhas. Elas são mais de mil. Perto de uma dessas ilhas está Split, na costa da Dalmácia. Perto de outra, Dubrovnik [os croatas pronunciam proparoxitando: Dúbrovnik].

Split, que é a maior cidade da Dalmácia, vem de um colônia grega, Spalatos. Mas seu núcleo central remete a um palácio mandado erguer pelo Imperador Diocleciano, no séc. IV d.C. Hoje em dia, dentro do que foi esse palácio erguem-se cafés, lojas e até a catedral da cidade. A baía é um mimo. E a avenida peonal à beira dela, a Promenade, um projeto exemplar. Essas cidades guardam algo de uma escala urbana que desconhecemos. Quer dizer, onde há muita urbanidade dentro de pouca área e ao longo de toda ela. É uma concentração de serviços uniforme, inversa ao de nossas metrópoles imensas, caóticas, desiguais.
Split não conta com mais de 800.000 habitantes. Mas isso na conurbação. A cidade em si é muito menor. E, contudo, há museus e boa arquitetura para o lado em que se teimar ir. E para qualquer lado onde se vá, montanhas suaves metidas em entradas de banho. A colina mais alta, junto ao porto, chama-se Marjane. E há essa canção, muito popular entre os partisans iugoslavos da Segunda Guerra, que é cantada até hoje: "Marjane, Marjane".
Num enclave, 230 km mais ao sul, vem o clímax: Dubrovinik, a Pérola do Adriático. É não menos conhecida pelos antigos como Ragusa, cidade-estado satelizada por Veneza, mas que chegou a competir com a metrópole à época em que a rota das especiarias fazia a glória do Mediterrâneo.
Pela força de sua astúcia, Ragusa sobreviveu séculos entre grandes potências - como a República de Veneza, o Império Otomano ou o Império Austro-Húngaro. Seu corpo diplomático fez história. Fortunas cumularam-se nos porões. Dubrovinik recebeu um considerável contingente de judeus portugueses no sec. XVI. A sinagoga – que é ainda referida por “sinagoga” (como em Amsterdã ainda há a “esnoga”) - guarda referências dessa migração sefardí. E Dubrovnik, apesar de haver sido destruída por um terremoto no sec. XVI e atingida por bombardeios na Guerra de Independência (1992), constitui um dos mais orgânicos e admiráveis exemplos de cidade medieval murada, na Europa.
Com não mais de 50.000 habitantes, a pequena cidade – que, não obstante, é servida por um aeroporto internacional - triplica de população no verão, quando é literalmente tomada de assalto por alemães, italianos e ingleses, sedentos pelo sol, pelas praias esplêndidas - de seixos ao fundo e água cristalina.
A Placa (ou Stradun), como é conhecida a rua principal da cidadela, em Dubrovinik, não tem mais de três quarteirões. Porém constantemente palmilhados por hordas e hordas de turistas, a ponto de haverem polido as pedras calcárias que revestem o leito da rua. Toda a parte antiga é vedada à circulação de veículos. De um lado das muralhas, barcos e iates oscilam suave na calma baía. No oposto - pois a cidadela ocupa uma pequena península - as ondas quebram violentamente contra as muralhas que escalam os arrecifes. Adiante há ilhas alflorando no mar. E montanhas do lado do continente, por onde também se espalha a zona mais moderna da cidade. Alguém bem-humorado, certamente visando a combinação entre montanha, mar e outras formas rotundas, rebatizou uma das praias circunvizinhas de Copacabana.
Mas, se falta algo da alegre solaridade tropical do Rio a essas praias recortadas e crespas - como decerto sobra algo ao risco comportado do biquíni das garotas locais - a paisagem ao longo do litoral de Split e Dubrovinik, estendendo-se até a Baía de Kotor, já em Montenegro, com suas ilhas, enseadas, istmos, golfos, canais, angras, estreitos e penínsulas, sitiados por montanhas e dominados por antigas cidadelas medievais - onde sobressaem e sobrepassam-se torres e campanários (ou ainda ruínas romanas e gregas) - é de descoser a tênue linha entre sonho e vigília, quando o sol é suave; seja ao fim da tarde, seja principalmente ao amanhecer, que acerca as praias desde a silhueta das colinas.


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Nota - havia lido muitos tuítos ao longo da tarde deste sábado, ao mesmo tempo em que dava uma espiada no jogo da Eurocopa (Espanha 2x0 França). Aí, cansado do tanto de esforço - de resto inútil - que as pessoas fazem para soarem lapidares, epigramáticas no Twitter, veio essa necessidade de escrever um texto em que pudesse jogar o pensamento numa frase longa. Como a última do texto acima, que ocupa um parágrafo inteiro. Pois as pessoas parecem esquecer que mesmo o estilo conciso, quando jogado de qualquer jeito (ou seja, quando mal jogado), apenas aborrece. E que escritores como W. G. Sebald esticam-se por períodos que seguem por páginas e mais páginas. E é o que há de delicioso, por exemplo, quando se lê um desses cronistas do Quinhentos. As frases parecem não ter fim. E, logo, não fazer sentido. Mas, do contrário, fazem muito. Fazem todo. E o que não faz sentido é nossa incapacidade de perceber e acompanhar o sentido de uma frase longa e bem lastrada. Isso compele. E nos leva adiante. E talvez seja uma maneira de lembrar - numa feição análoga, aliás, aos planos-sequências de Bela Tarr - que a frase curta é apenas um dos veículos da elegância e da concisão. E que essa mesma concisão e essa idêntica elegância podem ser atingidas por frases que parecem não ter fim. Quer dizer, não é o tamanho da frase o que determina a concisão e a elegância. Mas o ritmo dela. Seu modo de dispor-se. Sua disposição. Sua relação com as outras frases e a totalidade do texto. Eis porque cansa ler textos jornalísticos hoje em dia. Eles estão tão vendidos à necessidade da inteligibilidade, da economia de tempo e espaço, da exatidão, à serviço da informação e da comunicação mais rasteiras e imediatas, que não há mais lugar algum para o calor de um pensamento menos entregue à venda. Mais misterioso, místico, intuitivo. Mais sinestésico. Perto do coração selvagem. 

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