sábado, 11 de outubro de 2008

Está nas palavras ou mora na filosofia?


Antônio Bandeira, s/d

A poesia: está nas palavras?

Em um de seus belos textos sobre poética, Manuel Bandeira nos diz que “a poesia está nas palavras”. Os textos de Bandeira são belos, acima de tudo, porque nada pretensiosos. Ele, que era um espírito sofisticadíssimo, sabia emprestar ao leitor parte desse espírito sem a necessidade de rechear seus artigos de citações ou divagações tolas e ordinárias. Ou revirar a sintaxe de suas frases para parecer mais perspicaz. Lembrem-se daquela passagem notável em que Bandeira refere-se a um certo Hotel Península Fernandes e tudo está dito.

Mas, de outro modo, não sei se concordo com Bandeira. Ou ao menos se concordo plenamente. Se mais concretista fosse, concordaria. Mas, convenhamos, os próprios poemas concretos cometidos por Bandeira estão longe de constar entre os melhores de sua obra invejável. E, então, será que a poesia está mesmo nas palavras?

Isso soa um pouco redutor, porque Bach é poesia pura. Ou Bresson. Mesmo um documentário feito pela sensibilidade de um Joris Ivens, de um Jean Vigo, de um Bert Haanstra podem gotejar poesia. Mas nem sempre lançam mão de palavras. Uma tela de Veermer não tem palavras.

E até mesmo quando a graça vem da palavra, parece provir antes de algo que a transcende. Quer dizer, não propriamente das palavras, mas do modo como as palavras são ditas. Do timing de dizê-las. Da entonação. Certo timbre. Como numa boa anedota. Há circunstâncias que remetem ao imponderável, não só à palavra.

Aqui, me lembro de um episódio que talvez ilustre o ponto.

A cena é o velho Estoril. A década é de oitenta ao seu final. Estamos sentados eu e um amigo. E, já um tanto encervejados, jogamos a melhor conversa possível de ser jogada. Jogamos conversa fora. Bem fora. Desinteressadamente, conversamos sobre algo que não é, sobretudo, a chatice da política institucional que tanto convocava nossa geração em anos precedentes por conta de brutalidades e mordaças.

Esse amigo, à época, fazia mestrado em física, embora também fosse um músico refinado. No exato momento em que a câmera enquadra nossa mesa, ele digrede sobre música, ruídos, sons. Os relaciona a partir da física. Fala da extensão e da propagação de ondas. A tarde morre. A cor do mar transmuda-se de um verde intenso para um verde-gris encorpado sob o azul do céu acobaltando-se. Numa mesa próxima, três belas garotas ruminam em voz alta sobre a praia do dia seguinte. Elas entreouvindo nossa conversa. Nós, a delas. O velho diálogo de Adão e Eva, como dizia Machado. E elas a prosseguir sobre de como encerrarão a luz do sábado no velho molhe, em meio a uma roda de violão. E dizem do quanto acham que “Dia Branco” é uma canção perfeita. E como o último disco do Pink Floyd "é massa".

Um pedinte aproxima-se de nossa mesa. Escuta a longa digressão sobre os aspectos físicos da acústica. Dele emana um forte ranço de cachaça.

Por fim, tão-só quando a digressão é fechada, se manifesta:

--O Senhor me dá mil, pelo amor de Deus! -- ainda vivíamos em tempos de inflação e moedas voláteis.

Um tanto automaticamente, meu amigo saca a carteira e lhe passa um trocado.

Sem ainda pôr a nota no bolso, sem olhar para ela, ele amarfanha-a na mão, balança a cabeça, e, após certo prólogo silencioso, diz num tom perfeitamente solene:

--Que a sua sabedoria cresça como as águas do mar assobem, de vez em quando.

E afasta-se lento, um tanto trôpego, acercando-se da mesa das garotas. O silêncio se faz. Se faz, se fez e foi prezado. Aqui, posso interpor um fade.

Certamente a poesia dessa circunstância se fez com palavras. Mas não exatamente só com palavras.



3 comentários:

  1. Caro Ruy Vasconcelos, cheguei ao teu blog por acaso, pesquisando sobre Marilena Chauí. Parabéns por aquele artigo, e por este, e por todos. Vou virar freguês.

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  2. meu caro: a vida começou e nem deu tempo de dormir. aulas, leituras, pequenos textos para ontem. poucas pessoas perdoam os poetas. mas cheguei bem, animado. espero que possamos seguir em contato. um abraço, victor.

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  3. zé maria, muito obrigado. às vezes, tenho de deixar o blogue meio às moscas, como agora, por conta de outros afazeres. mas, volta e meia, ele ganha surtos de postagens. então, ñ deixe de passar por aqui. qto. à chauí, é aquilo mesmo. ñ dá pra ser mais feliz.

    victor, claro q. gostei do simpósio. só achei mto. disperso e um tanto falto de estrutura -- som, mesas, condições técnicas. assim como também de pouca repercussão na imprensa. mas, de outro modo, a logística para os convidados, de meu ponto de vista, foi impecável. e ainda estou me readaptando à rotina aqui pelas proximidades do paralelo 4. apreciei , sobretudo, conhecer gente como a lígia, a izabela, o andré -- q. e um cara duma argúcia mto. própria -- e v.
    certamente manteremos contato.

    abs.

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