terça-feira, 7 de outubro de 2008

Nome


Paul Klee, 1921


Mariana, Mariana

O nome de minha filha esteve comigo muito antes de ela nascer. Era declinado poema após outro em um poeta que é um olho agudo na paisagem do Nordeste litorâneo, pintor de marinhas: Joaquim Cardozo. Mas antes disso, o nome de minha filha era um nome de negra, porque muitas escravas tiveram esse nome. Mais, o adotaram. Foi uma escolha. E só uma mulher verdadeiramente livre pode levar adiante o nome e a lágrima dessas que rezavam nas Igrejas do Rosário dos Pretos. Lágrima sim, mas também ciranda e tambor, que são vetores de alegria, confiança. E, então, o nome de minha filha só pode ser livre porque um dia foi reivindicado por essas africanas elegantes, altivas, espigadas, que se contrastavam às brancaranas azedas, pálidas, miúdas, raquíticas de que nos conta Freyre, que era amigo de Cardozo. O nome de minha filha é o nome de uma poeta branca e anglo-saxã, dos Estados Unidos. Uma que escrevia sobre bichos - às vezes exóticos - com uma humanidade transcendente. O nome de minha filha veio muito antes dela. Esteve na letra de uma canção escrita por meu xará, Ruy Guerra. Certa noite, tomando uma cerveja com Ruy, na Academia de Tênis em Brasília, lhe disse do nome de minha filha - que em parte veio da letra e etc. Mas ele não fez muito caso, não se impressionou. Pareceu quase menosprezar um tanto suas contribuições à música popular. Não sei se por pudor ao sentimental, se por sinceridade. Mesmo que o tema musical da canção seja, no caso, de ninguém menos que Edu Lobo - e, portanto, esteja a meio caminho do erudito. Eu, no entanto, achei importante lhe haver dito isso. Afinal, ainda que branco, olhos azuis, permanente Havana aceso entre os dedos, Ruy veio de Moçambique. Quer dizer, da mesma terra de onde muitas Marianas, que precederam minha filha, vieram. "Mariana, Mariana, cadê tua saia branca..." O nome de minha filha passou por cirandas e tambores. Há algo mítico nele. E só nele. É cheio de vogais abertas, como uma pilha de roupas brancas, lavadas, passadas e engomadas por mãos pretas. Passadas por aqueles ferros em brasa. É muito forte nos flancos. E, algo, frágil no centro. É lindo, único. Distinto. É Mariana mas é diferente das outras Marianas, porque há nesse nome, nessa Mariana, tantas anterioridades, tantos veios. Precedências que vieram compondo-a sílaba a sílaba em mim, em conta-gotas de sereno. Escutem-no como quiserem. Mas se escutarem como chuva sobre o mar e prece, tanto melhor.


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