Paul Gauguin, 1888
A verdade é também sua busca
Da percepção dos poetas jovens [ou então Catar Batatas na Pomerânia]
Por "poetas jovens" entenda-se simplesmente a expressão em sua aplicação mais prosaica e corriqueira: pouca idade. Digamos, gente entre seus quinze e trinta e cinco. São importantíssimos, porque herdarão a Terra quando não estivermos mais por aqui. A expressão deve também ser entendida no contexto da postagem do Odorico Leal: como é possível valorar os poemas desse grupo quando se está simultaneamente empenhado em detectar valores duráveis? E até que ponto a leitura deles deve ser tomada como um vetor realmente importante ou determinante sobre a escritura de um poeta mais velho ou consolidado? Então, o ponto é esse. Passa longe, digamos, de fermentar uma espécie de contraposição ou cizânia geral entre jovens, velhos ou de meia-idade. Não devemos esquecer também que, com o correr dos anos, a poesia é seletiva. Há poetas que se afastam dela por razões diversas: ou para traficar escravos como Rimbaud, ou para pular da janela de um apartamento no Leblon como Ana Cristina Cesar ou para assumir o cargo de procurador-geral do estado, como alguns de nossos contemporâneos. Ou então, sejamos sinceros, por pura falta de talento ou obstinação. Só uma fração bastante reduzida dos atuais "poetas jovens" ainda será poeta (ou mesmo será lida) dentro de só uns poucos anos. A tarefa do crítico, entre outras, então, seria a de tentar triar, divisar quem tem mais potencialidade, talento, obsessão. Quem fareja melhor graça e eternidade. Em especial, essa capacidade de flagrar o eterno no momento, como queria o velho Baudelaire, lembrado pelo Odorico. E isso é já um critério. No instante em que há muita resenha e nenhum critério. É um critério modesto. Nada sofisticado - se visto com os óculos e os conceitos das pós-graduações. Mas critério nos tempos de hoje já é algo. Nos tempos em que um poeta não tão novo, já com considerável obra publicada - e com seus méritos - nos diz que não lhe interessa "discutir se um texto é bom ou ruim, porque isso é da pobreza do pensamento". Só posso concordar com esse poeta em ironia. Em quase sarcasmo. De fato, é preciso certa pobreza de meios - dispositivos teóricos, procedimentos agregados, formulação mínima de um sistema de pensamento (ainda que poroso, atonal) - para ler um texto de modo efetivo, crítico, sincero. E digo mais, pouca gente nutre-se dessa prerrogativa hoje. E no momento em que a gente julgar incapaz de nutrir-se dela (a partir da inteligência mas sobretudo da intuição [Bergson]), prefirível, quiçá, assumir-se como "o vencedor", e ir catar batatas na Pomerânia.
Algo de bacharel nos concretistas [ou Há coisas que não se pode escamar sem tirar fora a própria pele]
"Acho realmente que há um parnasianismo meio frouxo e asséptico que se tornou marca. Talvez uma leitura bacharelesca dos concretistas" [Victor da Rosa]. O problema aqui é que há uma possibilidade - ampla inclusive - para essa "leitura bacharelesca" referida. Ou seja, ela não se dá em vão. Não devemos esquecer que a trinca concretista é composta... por bacharéis. Bacharéis algo distintos dos outros [quem dera houvesse mais bacharéis assim!]. Mas ainda assim, bacharéis. Todos os três - Haroldo, Décio e Augusto - saíram graduados pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É impossível que não tenham agregado "algo" dessa cultura de bacharéis - tão ironizada por um autor que lhes é caro: Oswald. Tão ironizada por eles próprios. Por uma previsível dialética, no entanto, esse bacharelismo é menos rançoso em quem menos se esforça por escondê-lo: Augusto. De outro modo ele é mais evidente em quem mais se empenha em pô-lo tapete abaixo: Haroldo. Ao não romper com tambores e estardalhaço com o passado concretista, Augusto é quem mais "rompe" com ele, em paradoxo. O contrário disto é o "Pós-Tudo" de Haroldo. Ou as Galáxias.
Sobre Barthes & Cia. [ou Dos perigos das renomeações vazias]
Aqui, sou inflexível. A sub-cultura instaurada pelas pós-graduações não é erva-daninha, é a própria mandrágora. O que vejo sair em linha reta dela não é poesia, é uma pretensão por conceitos. Mas por conceitos revomitados sobre nós sem criatividade alguma. Não há sectarismo aqui. Não há desejo de negar o brilhantismo de certas obras [como a própria Câmara Clara de Barthes]. Do contrário, há a óbvia e urgente necessidade de apontar justamente a prolixidade e o ranço bacharelesco dessa francesada toda. Existem boas sugestões por exemplo nas observações de Derrida sobre tradução. Ou nas de Deleuze sobre cinema. Mas são episódicas. É preciso garimpá-las. Travar um corpo-a-corpo com elas, sem meiação de intermediários. Ao menos num determinado instante. Separar trigo e joio. Depuração, filtragem, necessidade de escamar essas teorias do supérfluo. E diante de nossas latitudes, sensibilidades, história, modos de fazer e sentir consolidados ao longo do tempo. Isso é que saiu de quadro. Isso é que não anda em foco. Hoje há muito mais fascínio gratuito por e/ou deslumbramento (ingênuo, reativo) diante desses conceitos ocos, incapazes de enganchar em nossa realidade. Diante deles se pode interpor o comentário de Walter Benjamin - que de algum modo anteviu esse estado de coisas:
Creio no mundo. O mundo antes da arte. Antecedência já apontada por Santo Tomás: "veritas sequitur esse rerum" ["a verdade segue a existência das coisas"]. Se a partir disso se pode dizer que meu senso de realismo é "puro", então que seja. [Lembro, aqui, do SIM escandido pelo Odorico em seu comentário].
Mourão, Tolentino e a tirania de esquerda na academia e no circuito editorial
É mais fácil condenar Tolentino que lê-lo. Eu mesmo já fiz isso. O ponto é que há uma grosseira tutela do espaço de debate na academia para garantir uma espécie de reserva exclusiva para autores de esquerda. Ora, a inteligência passa longe de ser um monopólio da esquerda. O próprio Pound é o exemplo. Para não falar de Céline e tantos outros. Homens extremamente lúcidos - embora salpicados por erros políticos e graves preconceitos. Não penso que muitos de esquerda, no entanto, estiveram menos errados que esses, ao, por exemplo, defenderem o stalinismo - caso de muitos escritores "canônicos" aqui do Brasil. O problema é que isso gera gravíssimas distorções. Franceses de esquerda são astutos o suficiente para aprender com escritores como Céline ou Bernanos, que são de direita. Enquanto isso temos autores como Gustavo Barroso ou Gerardo Mello Mourão sobre os quais paira um total silêncio na academia (e fora dela) por conta de suas malsinadas idéias políticas. No caso de Barroso, isso chega a ser caricato. Ele publicou mais de cento e vinte livros, fundou o Museu Nacional e teve sua tradução do Fausto de Goethe elogiada por Sérgio Buarque, mas permanece um tabu dentro de nossa cultura literária esquerdóide. Não há sequer um verbete para ele no dicionário de escritores organizado por Alfredo Bosi, por exemplo. A omissão é tão grave quanto reveladora. Os franceses, que sabem o quanto a obra de um autor transcende suas inclinações políticas, vivem debruçados, por exemplo, sobre os escritos de Louis Ferdinand Céline, que fugiu para a Alemanha junto com Pétain e os párias de Vichy. Hemingway, que lutou ao lado dos republicanos espanhóis e era amigo de Fidel Castro, nunca deixou de defender Ezra Pound, apesar de lamentar seus equívocos políticos. Enquanto isso, Gustavo Barroso, que morreu em 1959 -- e, curiosamente, foi militante socialista na juventude -- amarga um ostracismo de mais de 50 anos. Acreditem. No Brasil é assim.
Generalidades
Resumindo, me parece torpe que se gaste tanto tempo com essa francesada, por exemplo, e, ironicamente, quase nada se saiba de escritores brasileiros que foram votados a amnésia. Era um pouco a minha insistência com alguns jovens poetas aqui de Fortaleza ao final da década de 80. Os incitava a ler Joaquim Cardozo, Rui Ribeiro Couto, Dante Milano, entre outros poetas. Excelentes como escritores. Não propriamente ostracizados por suas posições políticas. Mas ofuscados pelo tremendo espaço concedido a outros poetas na conformação de um cânon didático, escolar. Era, portanto, uma tarefa de recanonização. Não que pense que cânones estejam aí para serem "desconstruídos". Sem eles, não teríamos qualquer sedimento. Sem cânones não teríamos sequer de onde partir ou onde pisar. Desconstrução me parece algo como reação. E hoje em dia se tem mais pressa em reagir (impulso, sentimentalidade) do que em refletir (avaliação, arte fria). Quem diz isso sobre reação/reflexão, aliás, é Paul Valéry, um autor francês bem menos lido que os pós-estruturalistas em moda. Se alguém sugerisse a leitura de Gustavo Corção - que se exprime com grande elegância em português - num departamento de literatura, seria escorraçado. Ora há muito o que discordar em Corção, mas deixar de lê-lo é também deixar de entender todo um esquema mental que vai ser decisivo para a montagem do pensamento da direita udenista implicada no Golpe de 1964.
Em relação aos mortos, acho que você tem toda razão, Odorico. Isso, aliás, me faz lembrar a conhecida frase de Walter Benjamin: "os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer". Ou se pode também recordar Simone Weil:
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A meu ver, a primera tarefa é histórica (e, por tabela, também geográfica, etnológica). Um reconhecimento do terreiro. De seu passado. Só depois, quando ela tiver sido minimamente executada é que se pode partir para outras, menos prospectivas.
É isto.