John Cassavetes, A Woman Under the Influence, 1974
Há
esses breves instantes em que o cinema transforma-se em verdade.
Sobre eles não é bom que recaiam análises. Especialmente eles não
devem ser interpretados. Ou classificados. Eles pedem para ser
fruídos, porque ampliam nossa capacidade de sentir. De
enxergar/ouvir/tocar coisas. Perceber nosso tempo. Eles nos tornam
mais humanos. Nos fazem chorar. Mas não do mesmo jeito que outros
filmes nos fazem chorar. Eles nos fazem chorar sem lágrimas.
Um
desses instantes de insofismável cinema se dá em Cassavetes. É um pequena sequência de A Woman Under the Influence (1974). Nela, Gena Rowlands no
papel de Mabel Longhetti, uma dona de casa assaltada por surtos
psicóticos, entra em parafuso após um telefonema. Do outro lado da
linha, o marido acabara de quebrar um pacto, por conta de uma emergência no trabalho: voltar para casa ao fim
do dia. Ainda que eles tivessem previamente marcado uma noite especial, e mandado as crianças para a casa dos avós.
Mabel então sai de casa. Deambula por Los Angeles à noite em meio a carros que passam, faróis, luminosos, luzes borrados, belamente desfocados ao longo da avenida. Ela adentra um bar, mas não se agrada da ambiência. Ouve-se tacos e bolas de sinuca. E uma luz rajada cai sobre seu rosto na intensa penumbra, são reflexos de um globo de luz. Caminha mais um pouco, até entrar numa boate, e dar com um homem de meia-idade. Depois de alguma conversa e os drinques de praxe, o sujeito lhe dá uma carona até casa, e eles dormem juntos.
Mabel então sai de casa. Deambula por Los Angeles à noite em meio a carros que passam, faróis, luminosos, luzes borrados, belamente desfocados ao longo da avenida. Ela adentra um bar, mas não se agrada da ambiência. Ouve-se tacos e bolas de sinuca. E uma luz rajada cai sobre seu rosto na intensa penumbra, são reflexos de um globo de luz. Caminha mais um pouco, até entrar numa boate, e dar com um homem de meia-idade. Depois de alguma conversa e os drinques de praxe, o sujeito lhe dá uma carona até casa, e eles dormem juntos.
O
trecho mais belo, no entanto, é esse breve instante de busca (ou
fuga): ela perambulando na noite antes de chegar na boate, e há esse
teminha profundamente lírico soando ao piano desde que desliga o telefone. E sabe que a noite talhou. Pode-se pressentir que
o tema foi gravado com uma artesanalidade de registro doméstico. E
que a voz soa com uma poesia e uma solidão extraordinárias, de quem canta com certo descuido. Como para
entreter-se. Como quem assovia. Ou solfeja. Naqueles instantes em que a própria voz quer ser a companhia do dono.
Desde
sempre essa passagem encanta. Desde a primeira vez que a gente a
percebe (vê/ouve, sem dissocio) no filme, junto com os ruídos ambiente. Ela responde pelo grau de detalhismo obsessivo de Cassavetes. A dificuldade que ele tinha de dar por encerrada a tarefa de edição. Desejo de ficar editando para sempre. E sempre achando que há algo a apurar. Esse apuramento respondendo pela cadeia sem fim da edição.
Dificilmente haverá outra mulher tão plena na imagem quanto Gena Rowlands em A Woman Under the Influence. Não uma menina, uma garota, uma adolescente, uma senhora, uma sereia, uma velha, uma modelo, uma big-brother, uma beldade, uma diva; mas uma mulher. É diferente. Ela assoma carregada de uma beleza contemporânea, meio louca. Essa beleza está em toda mulher. E em nenhuma mulher naquele grau. A não ser em momentos extremos. Em momentos de crise, riscos e urgência. Está prestes a explodir. O modo como se veste, movimenta, gesticula, dança, fala, vale por manifestos feministas. A gente sabe, a gente sente, mesmo à distância, o que causa a loucura daquela mulher. Sua desesperada ânsia de expressar-se sendo podada à cada vez que aflora, quer brotar à flor d'água.
Um filme subsequente de Cassavetes chama-se Love Streams. O fluxo dessas correntes, dessas nascentes comandam, no entanto, todos os filmes do diretor de Shadows. As tramas não caminham para um desfecho. Não se trata disso. O desenrolar é o ato potencial. E, assim a ação das personagens. Guarda um valor de momento que lhes retira qualquer possibilidade de tipo. Elas são humanas demasiado para ser tipos. E as coisas que lhes sucedem, em sua unicidade, inscrevem-se numa escala de vida. Como o trecho da caminhada de Mabel pelas esquinas da noite. Há um caráter de ficção já meio embaralhado por certa inequívoca tendência documental.
Dificilmente haverá outra mulher tão plena na imagem quanto Gena Rowlands em A Woman Under the Influence. Não uma menina, uma garota, uma adolescente, uma senhora, uma sereia, uma velha, uma modelo, uma big-brother, uma beldade, uma diva; mas uma mulher. É diferente. Ela assoma carregada de uma beleza contemporânea, meio louca. Essa beleza está em toda mulher. E em nenhuma mulher naquele grau. A não ser em momentos extremos. Em momentos de crise, riscos e urgência. Está prestes a explodir. O modo como se veste, movimenta, gesticula, dança, fala, vale por manifestos feministas. A gente sabe, a gente sente, mesmo à distância, o que causa a loucura daquela mulher. Sua desesperada ânsia de expressar-se sendo podada à cada vez que aflora, quer brotar à flor d'água.
Um filme subsequente de Cassavetes chama-se Love Streams. O fluxo dessas correntes, dessas nascentes comandam, no entanto, todos os filmes do diretor de Shadows. As tramas não caminham para um desfecho. Não se trata disso. O desenrolar é o ato potencial. E, assim a ação das personagens. Guarda um valor de momento que lhes retira qualquer possibilidade de tipo. Elas são humanas demasiado para ser tipos. E as coisas que lhes sucedem, em sua unicidade, inscrevem-se numa escala de vida. Como o trecho da caminhada de Mabel pelas esquinas da noite. Há um caráter de ficção já meio embaralhado por certa inequívoca tendência documental.
O
trecho é um daqueles milagres em que som e imagem foram
definitivamente fundidos. Ou em que os acordes ao piano e esse fio de
voz que se ouve ao fundo guardam algo que se suplementa no padrão
de estampas do vestido que Rowlands enverga, e que é tão anos 70 em sua extravagância floral.
Ou nos gestos bruscos. Crispações. Ou no modo como a câmera recusa a acompanhar o movimento de ascensão da protagonista, e por algumas segundos capta apenas a exublerância floral desse vestido. Ou no desesperado passeio,
em que Rowlands assoma cantarolando, sozinha e devastadoramente bela, no
meio da noite. Uma certeza: o que ela cantarola só pode ser esse
teminha de fundo.
Anos atrás, consultando
livros - ainda não havia a conveniência e o hábito do Google, da Wikipédia - pensei que o tema houvesse sido composto pelo próprio
Cassavetes, que era pianista amador. Um livro, aliás, confirmava equivocamente essa hipótese. Mas não é bem assim. O tema foi composto por Bo
Harwood.
Harwood
fez o som de alguns dos filmes de Cassavetes. E compôs trilhas para
eles. O revelador é que Cassavetes em muitos casos prefira – como
no caso em questão – a gravação doméstica, crua, caseira, sem
muita elaboração ou firula posterior: efeitos, filtros, limpa ruídos, corretores de afinação, corta pês, câmaras de ecos ou cordas acrescidas num estúdio: os tão propalados overdubs, que fizeram a glória de discos como o Sargeant Peppers. E contra a vontade de Harwood, Cassavetes aplicava sobre a imagem as versões demo. Coisas gravadas um tanto de improviso em seu próprio escritório. Registros despretensiosos, feitos apenas com propósitos mnemônicos.
Pode-se
entender por que Cassavetes queria assim. Há registros domésticos que não podem ser "melhorados", sequer em estúdios profissionais. Como se portassem uma aura ou feitiço na gravação, que pedissem para ser expostos exatamente assim, com certo ar de esboço.
Michel Chion nos fala da simultaneidade de som e imagem criando um terceiro elemento, que não é mais nem só som, nem só imagem. A esse fenômeno Chion chama de síncrese (mistura de simultaneidade - ou seja, de sincronia - e síntese). O que ele não diz é que há síncreses que de tão bem elaboradas nunca que nos deixam. Ou nos deixam na mão.
Michel Chion nos fala da simultaneidade de som e imagem criando um terceiro elemento, que não é mais nem só som, nem só imagem. A esse fenômeno Chion chama de síncrese (mistura de simultaneidade - ou seja, de sincronia - e síntese). O que ele não diz é que há síncreses que de tão bem elaboradas nunca que nos deixam. Ou nos deixam na mão.
Outro
dia revi esse trecho de a Woman Under The Influence. Tinha chegado até ele de novo por uma série
de acasos que, claro, não são. E lembrei de como gosto dele. De seu
heroísmo tenso e moderno. Da beleza dessa mulher ferida, caminhando
sozinha, na noite, com sua mágoa e loucura. O tema, isolado, pode ser
ouvido logo abaixo numa versão que é ligeiramente diversa da
empregada no filme:
Ou
a tal síncrese, como a chama Chion, pode ser vista/ouvida entre
10:21 e 12:00 – embora para melhor contexto, tomar de 7:50 até
13:20 - na postagem do filme, abaixo, em sua íntegra. Note que na versão do
filme, a melodia em determinado momento é feita por meio de um vocal
hesitante, meio improvisado e absolutamente encantador, escandido
entre a simplicidade dos acordes. O'Neill escreveu uma peça chamada
Long Day's Journey Into Night. Esse trechinho que passa quase despercebido num filme de Cassavetes, apesar de sua aparente
brevidade, banalidade, de ser um instante, instantinho de nada, também o é:
Mr. Harwood has a site where those tunes can be bought, along with some additional information:
http://boharwood.com/music.html
P.S. - Da colaboração entre Cassavetes e Harwood há igualmente uma cena em The Killing of a Chinese Bookie (1976), rematada por uma canção escrita a quatro mãos: "Rainy Fields of Frost and Magic". Na cena, o cafetão avalia a performance de uma jovem dançarina, sua protegida. A mocinha evolui seminua no palco ao som justamente da canção, que é uma balada lastimosa, ao modo dos 70: voz e piano. E, então, surge alguém que põe fim à audição. Todo o bem construído ritmo da cena impressiona, e, em especial, duas coisas: a) as diferentes âncoras de intensidade rítmica, fornecidas pela (i)canção, pelos (ii)ruídos ambiente, pela (iii)voz do cafetão e, em especial, pelos (iv.)passos da dançarina por vezes em suaves contratempos; e b) o modo como o cafetão "vê" a chegada da intrusa no rosto da dançarina. E todos os três surgem tão avulsos, desgarrados uns dos outros que a cena repassa uma sensação de cada um por si, que só é atenuada pelo rompante ao final:
Fantástico o texto e a forma como você entende o desespero dessa mulher.
ResponderExcluir~CC~