“A
vida é feliz e é preciso sorrir sempre”
[Uma
imigrante armênia na Grécia]
Há
aquele trecho de O Narrador em que Benjamin nos fala de um conto de
Hebel. Um mineiro que às vésperas de casar morre no interior da
mina por conta de um desmoronamento. Estamos em pleno séc. XVIII.
Por uma fortuita combinação química, o corpo do mineiro é
preservado. E, assim, descoberto, intacto, décadas depois, já no
século seguinte. E, por esse acaso, à sua noiva - então já uma
senhora idosa - é aberta a possibilidade de reencontrá-lo de novo.
Porém jovem e intacto, exatamente como às vésperas das malogradas
núpcias. Ela o contempla fascinada. E morre só uns poucos dias depois. Mas o modo como o narrador – no caso, Hebel – procura
dimensionar a passagem de tempo do desastre até o inusitado
reencontro é marcado por um longo inventário de factos (de certa
ressonância pan-europeia):
Enquanto isso, Lisboa foi arrasada
por um terremoto, e acabou-se a Guerra dos Sete Anos, o Imperador
Francisco I morreu, e a ordem dos Jesuítas foi dissolvida, a Polônia
foi retalhada, e morreu a Imperatriz Maria Teresa, Struensee foi
executado, os Estados Unidos tornaram-se independentes e as potências
aliadas da França e da Espanha não lograram conquistar Gibraltar.
Na Hungria, os Turcos aprisionaram o General Stein na Grota dos
Veteranos, e o Imperador José também morreu. O Rei Gustavo da
Suécia tomou dos russos a Finlândia, e começaram a Revolução
Francesa e as grandes Guerras, e o Rei Leopoldo II também morreu.
Napoleão conquistou Paris e os ingleses bombardearam Copenhague. Os
camponeses semearam e ceifaram. O moleiro moeu. Os ferreiros
forjaram. E os mineiros cavaram atrás de veios preciosos, nas suas
oficinas subterrâneas. Porém quando em 1809, os mineiros de
Falun...”
Benjamin
nos chama a atenção para duas coisas. Primeiro, para o modo hábil
com que Hebel inscreve o tempo largo, dos grandes acontecimentos
históricos, no tempo privado e subjetivo de uma história de amor. Mas também para a recorrência da morte, que
brota a todo instante no inventário com uma precisão metronômica.
E,
no entanto, algo ainda há aqui. Algo que não creio haver sido
apontado antes. E na atmosfera, na ambiência mesma. Pois Benjamin
vai buscar exatamente no fundo das minas essa metáfora de
preservação. Notem que tudo isso surge bastante rente à imagem do amor
num dos romancista que versou mais insistentemente sobre o tema:
Stendhal.
Há
o famoso conceito de “cristalização” em Stendhal:
Aux mines de sel de Salzbourg, on
jette dans les profondeurs abandonnées de la mine un rameau d'arbre
effeuillé par l'hiver; deux ou trois mois après, on le retire
couvert de cristallisations brillantes (…) Ce que j'appelle
cristallisation, c'est l'opération de l'esprit, qui tire de tout ce
qui se présente la découverte que l'objet aimé a de nouvelles
perfections.
[Stendhal, De L'amour]
Ou:
Au moment où vous commencez à
vous occuper d'une femme, vous ne la voyez plus telle qu'elle est
réellement, mais telle qu'il vous convient qu'elle soit. Vous
comparez les illusions favorables que produit ce commencement
d'intérêt à ces jolis diamants qui cachent la branche de charmille
effeuillée par l'hiver, et qui ne sont aperçus, remarquez-le bien,
que par l'œil de ce jeune homme qui commence à aimer.
Parece
que esse conceito de amor como algo cristalizado na escuridão e
pureza das minas é algo expressamente caro ao Romantismo. E, claro,
há em Benjamin essa nítida inclinação, essa predileção por
autores românticos. Esse fascínio por coisas jogadas de lado como trastes e depois resgatadas como tesouros ornados por vestes imperiais em sua mais elevada pompa.
Não
pensem que há algum preciosismo na analogia que traçamos. Ela é
apenas uma intuição. Não foi pinçada, em retalho, num seminário
de pós-graduação. (Se bem que agora começo a ficar em dúvida).
O
conceito de cristalização em Stendhal vulgarizou-se, virou moeda
corrente. Algo tão vulgar quanto o “complexo de Édipo”. E como
esse Édipo, evidente, há um verbete sobre ele na Wikipédia, em mais de um
idioma. Ou seja, é algo que segue na boca de todos, embora poucos tenham ido até
Freud ou Stendhal para verificá-lo, ponderar, saber do que se trata,
de facto. E até mesmo Serge Gainsbourg irá compor uma canção –
um pouco tonta, em tom de asneira e parodia – chamada C'est la
cristallisation comme dit Stendhal. Talvez Gainsbourg apenas achasse
irritante ter de ler Stendhal no colégio, e resolveu vingar-se. Essas vendetas que adiamos desde a adolescência, e também seguem adormecidas em minas interiores até despertar quando menos se espera.
Ou,
ainda seja, se visto à lupa, o conceito de Benjamin, tomado a Hebel, não é mais que
uma cristalização literal – ou no caso, carnal - da
cristalização metafórica, de Stendhal.
Paro
por aqui.
(Mas
quem sabe, se eu fosse um ambicioso scholar, versado em literatura
francesa, ou morasse num país meio periférico e sem nenhuma
importância nas franjas da Europa (digamos, na Rumânia) ou na América Latina (digamos, em qualquer um), talvez fosse mais
adiante. E escrevesse toda uma tese de doutorado que, posteriormente,
pudesse ser refundida em best-seller ao agregar, quem sabe, algumas
sugestões de Denis de Rougemont, além de certas bobagens e clichês
da psicanálise e uns dois ou três conceitos pegados às pressas em
Derrida ou Deleuze: bons elementos para um Frankenstein. Borges, se
vivo fosse, bem que podia escrever um romance disso, em meio a
gargalhadas tanto maiores quanto mais floreasse o estilo, para
deixá-lo ainda mais acadêmico e afrancesado.
É
mais ou menos como essas coisas são feitas hoje em dia. São
“pesquisadas”, "defendidas". (Será que há nelas um mínimo de prospecção próxima da que existia nas antigas minas? Alguma vida para além da múmia?) E há tolos o suficiente para
comprá-las de olhos bem abertos. Aqui como alhures).
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