quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

25 acasos depois de Cacaso




esse não chegou a ficar grisalho. Morreu faz exatos 25 anos nesse mesmo espaço anódino entre o Natal e o Ano Bom. Espaço traiçoeiro. De previsíveis gestos e sons. Que não fede nem cheira. Quadrante meio mineiro. Arrastou-o a Indesejada com olhos de desfaçatez e lagarto na ponta da lâmina fria de um infarto. Com seu acanhamento, jeito de tabaréu. Com óculos de Lennon. Um pouco de Orfeu e órfão dos anos polares. O monstruoso mal tinha um rosto. (Suas fuças de borracha, metal, gases, cascos, decretos). Bissexto nas letras apenas para quem é duro de cintura: letrista. Sabia de coisas e filosofias. Preferiu a linguagem simples. Sestros do interior que fez questão de não perder para ser mais pop, de agora e de todo mundo em diante. Os chatos virão dizer que publicou letras de música fáceis junto com a poesia completa – talvez por falta de mais. Talvez por falta de musa. Ou por falta de missas e pós-grados. Mas Torquato não fez o mesmo? A intenção era de realçar a qualidade das letras. De reafirmar o poeta em sua versatilidade pop. E a diferença na política não fez que Merquior e ele fossem desamigos. Mas até muito pertinhos em prefácios. Isso é que é bonito. Mas também foram mortos precoces. A uma geração que viveu a última aguda vida sem virtualidade, um poeta vivido e rápido, passado na casca de alho do som. Do orvalho de antigas serestas em cercas que já se foram. Brusco como versos devem ser. Dizem que desenhava bem. Mas seu sentido vívido vai mesmo pelo ouvido. O desenho do som. Eu hoje li poemas de Antonio Carlos de Brito. E ouvi canções onde há palavras dele. E elas me levaram até um país que já não há. Onde éramos jovens e eternos. E padecíamos no paraíso. E ainda falávamos sobre lua e pedras preciosas. E passávamos sempre por perto uns dos outros. Ou por dentro da que queríamos. E chegávamos à gema sem precisar de teoria, de teoremas, embora houvesse o pulmão sem fibra dos concretos. E sonhando ser Carlos Williams e Dylan ao mesmo tempo. Ou Simão no deserto. E a simplicidade de Bandeira ainda prometia boas coisas. Fica aqui um abraço, poeta. Para ti. Pra esse apelido moldado em cacófato. Um abraço de quem ainda pouco te leu. E precisa atualizar-se por doses cavalares de passado. 

Pelos dias de cicatriz.

*


Três Textos de Antonio Carlos de Brito (Cacaso):


HAPPY END

O meu amor e eu
nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente

*

MEIO-TERMO

Ah como tenho me enganado
como tenho me matado
por ter demais confiado
nas evidências do amor

Como tenho andado certo
como tenho andado errado
por seu carinho inseguro
por meu caminho deserto

Como tenho me encontrado
como tenho descoberto
a sombra leve da morte
passando sempre por perto

E o sentimento mais breve
rola no ar e descreve
a eterna cicatriz
mais uma vez
mais de uma vez
quase que eu fui feliz

A barra do amor
é que ele é meio ermo
a barra da morte
é que ela não tem meio termo

*

CINEMA MUDO

I

Um telegrama urgente
anuncia a bem amada
para o século vindouro.
Arfando diante do espelho
principio
a pentear os cabelos.
O oceano se banha nas próprias águas.


II

Acordei grávido e uma dúvida
dilacera minhas partes: quem seria a mãe
de meu filho?
Demônios graduados me visitam
enquanto retoco para a posteridade
a maquiagem do arco-íris.


III

Vejo seu retrato como se eu
já tivesse morrido.
Grinaldas batem continência.
Livre na sua memória escolho a forma
que mais me convém: querubim
gaivotas blindadas
suave o tempo suspende a engrenagem.
Do outro lado do jardim já degusto
os inocentes grãos da demência.


IV

Neste retrato de noivado divulgamos
os nossos corpos solteiros.
Na hierarquia dos sexos, transparente,
escorrego
para o passado.
Na falta de quem nos olhe
vamos ficando perfeitos e belos
Tão belos e tão perfeitos
como quando a tarde pressente
as glândulas aéreas da noite.
Trago comigo um retrato
que me carrega com ele bem antes
de o possuir bem depois de o ter perdido.
Toda felicidade é memória e projeto.
*


__________________
Segue o linque para o famigerado artigo "Nosso verso de pé quebrado" em que Cacaso e Heloísa Buarque de Hollanda traçam um breve panorama da poesia brasileira à altura de então. O texto foi originalmente publicado em janeiro de 1974 e de alguma forma delimita na pós-vanguarda o fenômeno que tem sido nomeado de "poesia marginal". Nenhum dos poetas citados no artigo, aliás, sobreviveu ao tempo. Mas isso não depõe contra o texto. O artigo é importante, entre outras, por falar de uma certa dispersão da produção que antecipa essa escola dispersiva e profusa que são as novas mídias. Pode-se dizer, grosso modo, que as novas mídias digitalizaram e amplificaram espetacularmente essa dispersão inicial e essa vontade de democracia da dita "mimeógrafo generation", lá nos já distantes anos 70. (E não deixa de ser emblemática a presença de algo tão indicador de um resto de aura, de uma matriz, de uma intensa materialidade ou analogia como o próprio mimeógrafo enquanto aparato. Além, claro, de certa precariedade quase aporística). De início, uma das diferenças: naquele tempo havia uma poesia que corria por fora, hoje quase toda poesia escorre por fora. E há profusos, imperscrutáveis foras por este mundo afora. Uma simultaneidade de foras, uma diversidade deles. Fora há muito deixou de ser um barato, algo charmoso, para virar norma constituída. E, claro, faz mais ou menos uma geração que muitos lucram pesado com o que se chama um tanto ingenuamente de "indie". Mas também consolida-se uma geração de poetas sem livro, cuja produção já se vem tecendo sobretudo na ambiência virtual. Ou sendo composta nesse ambiente de hipertexto, não é de hoje.

2 comentários:

  1. Não conhecia...é muito bom! Ninguém pegou nessa poesia para a cantar?
    ~CC~

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  2. sim, há uma amostra das canções aqui:
    http://letras.mus.br/cacaso/439038/#selecoes/240031/

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