quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Em Memória de Márcio Figueiredo (1963-1992)



Outro dia, Márcio, um tema trouxe-me a turma toda de ouvido. Rejuntada de novo, ouvindo Pat Metheney, Weather Report, Egberto Gismonti, Arrigo Barnabé, os mineiros, Nouvelle Cuisine na tua sala depois do ensaio. 
É provável, compadre, conversávamos sobre o acerto dos timbres e de como música do futuro teria por princípio a melodia. E o Moacir diria:
-Mas melodia, Flor: não é isso que a gente faz, meu irmão: melodia? – e ia alegar que Caetano Veloso já sacara isso de melodia no futuro antes da gente. E depois ia solfejar baixinho “Rapte-me, Camaleoa”, e abusando um pouco de vocalizar entre o p e o t, ao que o Ney não tardaria protestar com discrição e ênfase. 
Então, de repente, uma freira já idosa, com um daqueles chapéus à la noviça voadora, surgida não se sabe bem de onde e por qual produção de arte, passaria no corredor, e o Pádua ia dizer que estávamos num filme de Fellini. Não menos. A vida não era uma grande practical joke? A essas alturas, muitos já moravam em Tatuí, embora o Domingos tivesse vindo do Recife, passar uns dias:
-Ei, Seu Zé, me dá mil. Me dá mil aí, mach'.
A verdade, Márcio, é que ainda estamos num filme de Fellini, exatamente como os que passavam nos festivais do Cine Gazeta. Faz tanto tempo. E porque eras quem dizia que eram imperdíveis. E pressentias essa imperdibilidade melhor que nós. Mais: a propagavas.
Outro dia chegando de São Paulo, dei com a Maria, muito elegante, metida num uniforme azul. Bonita como num sonho azul, e o sorriso. Ela trabalha no Aeroporto Pinto Martins, e ainda tem aquele sorriso largo e cheio de luz que aquecia os fins de ensaio, embora os cabelos já misturem pretos e aplatinados. E eu fico imaginando, compadre, como estariam tuas fotos na Internet e por quais câmeras. Ou quais seriam os assuntos delas, agora. Ou ainda como te haverias com essas filigranas digitais. E se tu e a Maria tivessem casado, como seriam os semblantes das crianças, misturando o queixo de um ao erguer as sobrancelhas da outra. 
Como seriam os nomes dos teus filhos, dos teus filmes. Filmes certamente mais corretos, cinemáticos que os nossos. Se terias prosseguido com o Tai-Chi. Se a Rita guardaria um lugar para ti no Teatro São José, antes da função começar. E a gente então encontrasse: a turma toda reunida de novo, na praça, para soltar fogos em plena Epifania. E adentrar o teatro em cortejo, com beatas, padres, anjos, e uma retirante fake, recém-falecida, deitada numa rede. 
Gostávamos de milagres. Ou de entoar benditos com um furor escatológico e buñueleano. Ou, horas depois, na casa do Zé, lá no Sabiaguaba: vinhos e uma roda de violão em torno de um sinal no fogo; depois de escalar na varanda de tua casa da Tubúrcio, e deliberar para que lado a noite soprava.
Havia o café, os bolos, os docinhos da Bahia. Algum trago. Havia Rui, o cachorro. Havia o Rômulo um tanto marcial. Ou à paisana, dizendo alô, no vão da escada. Havia Cida, na flor da idade, que levamos junto com uma amiga para uma sessão de fotos nas Dunas, composta, além da paisagem, por uma porta lá de casa, que estava em reformas. E só a Bahia, gorda e bondosa, salvava a pele do Rui, porque ninguém gostava muito daquele bicho. E pensar que a Bahia e o Rui já estão aí do teu lado. 
Todos vocês seguiram para o Além, sem muita distância uns dos outros. E ainda no tempo em que a única rede de que se falava, além da Globo, era a de varandas e balançar com o pé na parede. E então, vocês se foram, como aquelas azeitonas pretas que não se colhiam, e juncavam o chão do teu quintal. Mas é um bom motivo para se estar feliz, ter uma boleira de mão cheia assim ao alcance de um pedido e na mesma dimensão. E um galgo de afiado faro, para caçar preás, e caminhar contigo pelas Jericoacoaras do além, quando enquadrares tudo mais que for preciso para tirar tuas fotos. 

(Ou revelar como tem sido morrer, como tinha sido viver, quando se tem apenas 27 anos.)

2 comentários:

  1. Embora isso como retrato de época esteja incrível, corrija lá: era Teatro "São José" e não "São Pedro".
    (Ahã! Dessa vez eu lhe peguei)

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  2. já tá lá, aracy! thanx for the pepperoni

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