sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Habitar por um pouco a casa, frequentar espaços desarticulados no tempo

Glenn Ligon, still de The Death of Tom, 2008


um conto
Unção

Havia domingos para se afastar do bando e caminhar sozinho. Na baixa-mar, descer do ancoradouro, de degraus roídos pela maresia, até a areia do rio. Driblando as pedras crestadas de ostras e cracas. E então, areia virar aluvião limoso; e, após, lama espessa, onde siris e caranguejos. Um lagosteiro passando no canal, com a popa repleta de manzuás na demanda da barra. A água verde-zinco do rio rebentando rala sobre a porção de espaço que cobrira algumas horas antes com trancos e respingos. E a tornaria a recobrir só umas horas depois. À margem de lá, as altas dunas alvíssimas. O mangue espesso – de folhas duras, crespas – cheio de meandros e sulcos. De réstias de luz sobre a água.
Ou então, tomar a rua lateral à estação e ir até a velha casa dos engenheiros, abandonada já aquela altura. A luz da recém-manhã envelopando as varandas da casa. E um fiapo de terral bulindo nos ramos do ficus. Joel deslizava tão silenciosamente como quando uma sombra desbota na calçada sob as nuvens brancas e grassas encobrindo, de passagem, o sol. Então ele escalava o muro. Seu desejo era habitar por um pouco a casa, que achava a mais bonita do mundo. Com seu porão. Seus telhados angulados. As esguias colunas de madeira sustentando o peso dos telhados nas varandas.
Tufos de silvas, ervas daninhas cresciam em brechas na ardósia do pequeno pátio. Entre elas, a que ao menor toque nos minúsculos ramos era bastante para ela se trancar inteira. Os pequenos ramos contraídos. Mas, antes, sempre se dizia: “Maria, fecha a porta que teu pai vem bebo”.
Os passos de Joel eram tão silenciosos que mesmo sobre o cascalho mal se faziam pressentir. Gostava de andar só. Desde muito cedo sentia essa necessidade de estar só por algum tempo. Só com o mundo. De frequentar esses espaços desarticulados no tempo, de galgar até a varanda da casa dos engenheiros da Estrada, à qual se chegava por uma pequena escadaria. Desaferrolhar o portão, de grades oxidadas; pisar os ladrilhos amarelos, vermelhos, ocres, formando padrões geométricos. E, de lá, contemplar os velhos armazéns repintados pelas chuvas e intempéries. Com riscos de lodo ressequido; e que pareciam provir de um tempo tão apartado, que ele não saberia diminuir. Ou somar.
Foi depois de um desses domingos à deriva, em que se desagregava dos demais para vagar sem rumo, por aí, que, voltando para casa, perguntou pelo pai. Fátima, a empregada, disse-lhe que seu pai estava na casa vizinha. A casa vizinha pertencia a velhas tias-avós. Era um sobrado antigo, com cheiro de mofo e ureia. De coisa velha. Com a impressão de haver uma pátina de pó sobre tudo. Desde a velha mesa na sala de jantar à absurda cômoda de espelhos tripartidos em um dos quartos passando por uma grande arca de tampo pesadíssimo, que se encontrava no sobrado. E tudo com seu tempo medido por um antigo relógio cuco.
Joel seguia pela calçada. A manhã ainda não passara seu meridiano e, agora, uma aragem forte, provinha do rio, encrespando seu cabelo.
A porta estava inusualmente aberta. O corredor era longo, cheio de sombras. À direita, conduzia à sala de jantar e à cozinha. À esquerda, aos quartos e aos altos. Joel tomou a esquerda, porquanto percebeu alguma movimentação em um dos quartos. O que se sucedia à escada que conduzia ao sobrado. À medida que se foi aproximando, seus passos instintivamente desaceleravam. Podia pressentir que algo extremamente pesado corria no ar. Algo ainda mais pesado que o tampo da enorme arca lá acima, no sobrado. Que o mover dos ponteiros no velho relógio cuco. Uma das bandas da porta estava aberta. E Joel, subindo em um degrau da escada e agarrando-se ao caixilho da porta, mirou o interior.
Viu o Monsenhor Inácio com suas meias roxas. O sacristão atrás dele, com uma cruz dourada. Ambos estavam vestidos com cerimônia, pompa. E o monsenhor de pé, ligeiramente vergado sobre a cabeceira da cama, com um tom de voz baixo, murmurava monotonamente algumas palavras diante de sua Tia Estela. Sua Tia Esther chorava. E sua Tia Júlia olhava a cena, um tanto mais afastada, com natural fixidez. Então, o monsenhor ungiu a testa de sua Tia Estela, cuja respiração entrecortava-se, como se um cansaço absoluto, irreversível a tivesse colhido.
O sol da bela manhã de maio adentrava o aposento pelas pequenas vidraças acima das venezianas fechadas. Um vago pregão corria na rua. Depois de alguns poucos minutos, um espesso silêncio caiu sobre o quarto, pontuado por um ou outro resfôlego de sua Tia Esther:
–Está tudo conforme, Monsenhor – disse sua Tia Júlia num tom seguro, assertivo. E dirigiu-se ao relógio cuco à parede, detendo os ponteiros. Depois cerrou os espelhos laterais da penteadeira de forma a vedarem o central. Fez isso com tanta naturalidade, que quase sugeriu um gesto rotineiro: acender o fogo sob o bule de café, lavar as mãos à bacia ou esvaziar um urinol. O sacerdote sacou a estola e num gesto largo, de braços, ensaiou algum conforto diante do pranto, agora convulsivo, de sua Tia Esther.
Mas nem um em cem avos dessa naturalidade de sua Tia Júlia percorria o corpo e o espírito de Joel. Sem nada dizer, ele pressentia que não teria palavras se tivesse de dizer. Aliás, de uma coisa sabia – enquanto seus irmãos brincavam ou jogavam bola – ele testemunhara aquilo, involuntariamente, como um clandestino. Ainda que elas fossem sua família. E o monsenhor aquele que proferia sermões inflamados sábado após sábado, ao fim das tardes.
Ele sabia que não haveria mais sombra para sua Tia Estela. Que a aragem que adentrava de leve o aposento, provinda do rio, através da saleta da frente, e movia-lhe de leve os cabelos grisalhos, sob a tintura aloirada não era mais sentida. Embora fosse o único movimento em seu corpo. Que ela se fechara, como a “Maria-fecha-a-porta”. Mas para não mais se abrir.
E, então, neste momento tudo ficou escuro. Uma mão sobretapou-lhe os olhos e o puxou de encontro a um corpo adulto.
Era seu pai.


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