quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cortando o livro ao meio

[s/i/c]


Para Quebrar de Vez

Para quebrar de uma vez com qualquer glamour que cerque a tarefa do escritor ou do tradutor, proponho o texto abaixo. Para indicar que essa tarefa é uma artesania. Que, além de certa inclinação natural, necessita de prática para nutrir-se. E, no entanto, seu aprendizado é lento, áspero, como em qualquer outra profissão nesta vida. As menos glamurizadas, mais braçais. Aliás, essas atividades, que exigem uma maior perfeição, em que a perícia da mão humana é decisiva – e não de gadgets eletrônicos – sempre me despertaram grande fascínio ou reverência. Mas vamos ao texto de Auster que versa sobre, digamos, o “vexame do tradutor”:



The next two years was an intensely busy time. Between March 1975, when I stopped working for Ex Libris, and June 1977, when my son was born, I came out with two more books of poetry, wrote several one-act plays, published sixteen or twenty critical pieces, and translated half a dozen books with my wife, Lydia Davis. These translations were our primary source of income, and we worked together as a team, earning so many dollars per thousand words and taking whatever jobs we were offered. Except by one book by Sartre (Life/Situations, a collection of essays and interviews), the books the publishers gave us were dull, undistinguished works that ranged in quality from not very good to downright bad. The money was bad as well, and even though our rate kept increasing from book to book, if you broke down what we did on an hourly basis, we were scarcely a penny or two ahead of the minimum wage. The key was to work fast, to crank out the translations as quickly as we could ans never stopped for breath. There are surely more inspired ways to make a living, but Lydia and I tackled these job with great discipline. A publisher would hand us a book, we would split the work in two (literally tearing the book in half if we had only one copy), and set a daily quota for ourselves. Nothing was aloud to interfere with that number. So many pages had to be done every day, and every day, whether we felt in the mood or not, we sat down and did them. Flipping hamburgers would have been just as lucrative, but at least we were free, or at least we thought we were free, and I never felt any regrets about having left my job. For better or worse, that was how I chose to live. Between translating for money and writing for myself, there was rarely a moment during those years when I wasn't sitting at my desk, putting words in a piece of paper.

[Paul Auster, Hand to Mouth – A chronicle of early failure ps. 100-101, Copyright © 1997, Paul Auster // Henry Holt and Company, New York]


Os próximos dois anos foram um tempo intensamente atarefado. Entre março de 1975, quando deixei de trabalhar para a Ex Libris, e junho de 1977, quando nasceu meu filho, finalizei dois livros de poemas, escrevi várias peças de um ato, publiquei dezesseis a vinte textos de crítica, e traduzi meia-dúzia de livros, com a ajuda de minha mulher, Lydia Davis. Estas traduções eram a nossa primeira fonte de renda, e trabalhávamos juntos como uma equipe, ganhando uns tantos dólares por mil palavras e aceitando qualquer tipo de trabalho que nos era oferecido. À exceção de um livro de Sartre (Vida/ Situações, uma coletânea de ensaios e entrevistas), os livros que os editores nos passavam eram maçantes, obras indistintas que variavam entre não tão boas a francamente ruins. O dinheiro também era ruim, e mesmo que nosso estipêndio fosse crescendo livro a livro, se calculássemos em termos do que fazíamos à base de horas diárias, escassamente faturávamos um ou dois centavos a mais que o salário mínimo. O segredo estava em trabalhar ligeiro, engrenar as traduções tão rápido quanto possível e nunca parar para respirar. Há por certo modos mais inspiradores de ganhar a vida, mas Lydia e eu enfrentávamos essas empreitas com grande disciplina. Um editor iria nos repassar um livro, e dividiríamos o livro em dois (literamente, cortando o livro ao meio se dispuséssemos de um só exemplar), e estabelecíamos uma cota diária para ambos. A nada era permitido interferir com essa cota. Assim que tantas páginas tinham de ser vertidas a cada dia, e, a cada dia, não importa o estado de espírito em que estivéssemos, nos sentávamos e as concluíamos. Virar hambúrgueres na chapa seria tão lucrativo quanto, mas ao menos éramos livres, ou pensávamos que éramos, e eu não sentia nenhum arrependimento de haver deixado meu emprego. Para bem ou para mal, era como eu optara por viver. Entre traduzir por dinheiro e escrever para mim mesmo, raro era haver um instante naqueles anos em que eu não estivesse sentado à escrivaninha, pondo palvras num pedaço de papel.



CODA

Posteriormente uma bolsa da Ingram Merrill Foundation veio aliviar a situação de Auster. A concessão da bolsa foi saudada com tamanho desafogo, que ele nos inteira: “the money was so unexpected, so enormous in its ramifications that I felt as if an angel had dropped down from the sky and kissed me on the forehead. [“o dinheiro era tão inesperado, tão generoso em suas ramificações que senti como se um anjo tivesse descido do céu e beijado minha testa”.]

* * *

Nenhum comentário:

Postar um comentário