Raimundo Cela, Praia com Carnaubeira
Tai chi
“É como no tai chi”, pensei.
E ela afastava-se pela praia, depois do tenso argumento.
No tai chi a harmonia dos movimentos é tão precisa que gera, na sequência, natureza. Ela caminhava firme. Quase asperamente. Embora mantivesse porte, compostura. Era um pisar irritado. Dava-se a ver a lágrima de raiva e abandono que lhe ia nos olhos pelo pisar dos pés. Mas aquela não era hora de abraços.
Estávamos sós. No mundo. Longe de turmas e cidades. Que é quando se conhece gente.
Os pescadores estavam chegando. Onze horas sem relógios. E pesca muito minguada. O cabeiro retirou a tranca da vela, e o pano murchou, encardido. O belo encardido das velas de canoa: duas minúsculas lagostas, três filhotes de arraia, uma piraroba já sem os esporões, uma rara juvira, além de duas dezenas de peixes miúdos: bagres, corós e uma pequenina moreia de dentes afiadíssimos.
Ela seguia, tão afiada quanto aquela moreia. Agora era um vestígio, um borro, quase a desaparecer no vértice da areia. E no que me afastei a meio da canoa, dei com a chegada de um homem.
Era franzino ao extremo. Ligeiramente encurvado. Caminhava articulando bastante os braços angulosos. Parecia-lhe difícil mover-se sob o chapéu de palha puída. E quando sorria, que era quase nunca, uma careta bizarra desenhava-se sob o buçozinho incipiente, porque só possuía três dentes -- dois deles na arcada inferior e tanto afastados. Era agricultor e morava no Lameirão. Tinha perdido a mulher há não muito:
“Vai interar oito mêis”, ele disse.
A mulher morrera de parto no hospital de Itarema, e provavelmente não entrou nas estatísticas:
“A criança, eu dei. Era uma menina.”
Eu mal podia crer que à beira da praia houvesse tanta miséria.
Ele revelou ter mais seis filhos, e um alqueire muito cansado onde plantava mandioca e, todo dia, com a enxada:
“Chamava a cova pra debaixo dos pés.”
O vento ergueu a aba de seu chapéu preso ao queixo por um fio de tucum. O cabelo ralo e grisalho grudava-se ao crânio. Suor.
Também era meeiro nas terras do Padre Aristides Sales, o líder político de Itarema. Alguém que passava bem ao largo da Teologia da Libertação. Ou mesmo estava em sua antípoda. O homem debaixo do chapéu puído não se achava índio, embora morasse em Almofala. Logo, para ele não havia terras, abrigo, reparações, e mais compadres. Não havia contrapartidas. E então vivia muito mais ao léu. De chapéu curto.
Viera comprar peixe. Aguardava a chegada de dois “paquetes” que saíram na maré da madrugada.
Proseamos por meia hora e algo raro: silêncios entre. O vento açoitando nossas pernas com rajadas de areia. A vida dele era de uma irremissível miséria.
Depois afastei-me. Em direção contrária à que ele havia tomado. E havia tomado de mãos vazias e uma velhíssima bicicleta meio comida pela maresia. E descambei a ponderar o porquê de o Litoral também não haver tido seu Canudos, sua Pedra Bonita.
Cerca da noite, quando a reencontrei, estávamos muito bronzeados, exaustos.
E ela me disse, com a extrema serenidade de quem andou pelo mundo sozinha, o dia todo, que também havia conversado com nativos: a mulher de um pescador, um menino carroceiro, uma parteira... Voltamos ao alojamento. Acendemos uma vela e um incenso.
Indizivelmente mais disposta a calar. E a ouvir. E a falar.
Naturalmente. Como no tai chi.
* * *
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