segunda-feira, 10 de maio de 2010

Copiosas cópias


Edith Dekyndt, Ground Control, 2008



A cultura do carbono no paralelo 4


A questão é: porque o cearense e, mais propriamente o fortalezense, é incapaz de "achar" formas próprias de expressão? Desde os eventos de moda -- pólo forte de indústria local -- até as horrendas torcidas organizadas, tudo é decalcado do eixo Rio-São Paulo.
Pode-se pensar no enorme impacto da televisão e, sobretudo, da telenovela. É essa expressão quem dita "modos de comportamento". Há uma ética, aqui. De repente, algo de nossa fala corrente desaparecerá pela influência desse veículo.
É certo que, como ou sem telenovela, dificilmente há de se achar um povo mais descortês no trânsito que o cearense. Para a maioria ser ultrapassado é uma espécie de afronta a se vingar. Mesmo que se não esteja com pressa. Não há qualquer noção de velocidade média. Os cruzamentos são fechados com a maior desfaçatez. E o pedestre tornou-se um alvo. Muitas vezes na própria calçada. Não há ciclovias. Há pouco, uma ciclista que participava de um evento coletivo sobre duas rodas foi brutalmente atropelada. E o nível geral de gentileza com pedestres não parece poupar idosos ou mesmo deficientes físicos.
Outro caráter marcante do cearense é a incapacidade de silêncio. Não se gosta propriamente de música. Mas é necessário "criar" alguma fonte de ruído, de barulho. Como se esse barulho fosse o equivalente da presença humana valorizada. Pois há também o caso da gregariedade. O cearense simplesmente não consegue ficar sozinho. Ou mesmo ir para locais públicos sozinho. Ele se sente sempre diminuído nessa condição.
Quanto a essa incapacidade de ficar sozinho, isso apenas reforça um argumento de Sérgio Buarque sobre essa peculiaridade do brasileiro. Primeiro ao citar a observação de um viajante estrangeiro: "em meio do ruído e da mixórdia, da jovialidade e da ostentação que caracterizam todas essas celebrações, gloriosas, pomposas, esplendorosas, quem deseje encontrar já não digo estímulo, mas ao menos lugar para um culto mais espiritual, precisará ser singularmente fervoroso". Isso, no campo religioso, inclusive, responde pelo enorme sucesso do neo-pentecostalismo, protestante ou católico -- este, via Renovação Carismática. São cultos ruidosos que se aclimataram à luva numa terra ruidosa.
Mas também o cearense é o mais cordial dos brasileiros. No sentido buarqueano da cordialidade. No sentido de que "a vida em sociedade, é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência". Quer dizer essa sociabilidade tênue, que se mantém sempre no raso, que fica na superfície, que quase nunca desce à profundidade é a que é mais valorizada, porque, em verdade, consiste num disfarce que "permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas [verdadeiras] emoções".
E, daqui, a fama de hospitaleiro. A hospitalidade cearense é, por um lado, um complexo de inferioridade, se se dá entre iguais. E, por outro, uma marca de pobreza. Daí a questão da prostituição ou mesmo do casamento como forma de saída da promiscuidade e da pobreza, desde que, nesses casais, a esposa, a mulher é que é, via de regra, a cearense.
Outro aspecto notável é a necessidade de ostentação. Mas também isso é tão fácil de explicar pelo novoriquismo generalizado de nossa elite. Uma elite recente, de comerciantes. Sem os fumos aristocráticos dos grandes proprietários de terra de Pernambuco ou do Recôncavo.
Por vezes, os interiores das casas ostentam mais do que podem os cartões de crédito dos donos. E, pior, muitas dessas casas, por excesso de ostentação tornam-se visadas pelos assaltantes. E, ainda descendo na cacimba, para além dessa casca que se põe na sala de estar, nos armários da cozinha, na profusão de camisas e sapatos do closet, no deck da piscina, no ofurô do lavabo, não há muito mais o que se roubar.
E, claro, isso gera ainda mais violência por parte dos assaltantes que não estão propriamente interessados nessas trivialidades ostentatórias e sim em valores, em uma liquidez imediata, que só o hábito e o esforço do acúmulo de capital propiciam. E que não existem para além dessa casca de modernidade e consumo compradas na Tok & Stock ou em lojinhas de grife.
Como um povo assim pode escapar de criar uma cultura singular sadia? É sonhar com os Big Brothers e as Malhações da vida. Aliás, os poucos cearenses que participaram dessas trivialidades são entrevistos como motivos de orgulho para o estado. São reis numa terra de cegos. Quase semideuses. Dão autógrafos no meio da rua.
Entre numa casa de alta classe-média em Fortaleza e haverá um aposento que, quase sempre não existe: um estúdio com uma pequena biblioteca. Livros? Quando muito alguns de culinária nas lustrosas cozinhas. Ou de arte. Para "enfeitar a sala-de-estar".



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2 comentários:

  1. E ainda assim eu sinto falta dessa bodega.

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  2. dois. é claro q há outros aspectos, para além desses. há gente q ñ se enquadra nessas tipologias, p. ex. há os amigos de longa data, etc.

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