quinta-feira, 13 de maio de 2010

Rondando a área adversária como um jaguar


Angela Bulloch, Sculpture for football songs, 1998




Djalminha e outras digressões sobre futebol‭


Houve um talento dos gramados chamado Djalma Feitosa Dias.‭ ‬A ele gostava mais de ver que qualquer futebolista de primeira linha da atual geração‭ – ‬inclua-se aqui o aplicado Kaká.‭ ‬Djalminha desenhava jogadas com os pés com uma precisão cirúrgica e uma perícia que nenhum cirurgião plástico jamais atingirá.‭ ‬Driblava e passava com precisão.‭ ‬Era um canhoto de dotes excepcionais.

Digo isso em imparcialidade.‭ ‬Só torço por dois times de futebol. Torço por eles com extrema paixão, muita ilusão e certo golpe de desesperançado realismo:‭ ‬o Ferroviário F.C.‭ ‬de Fortaleza‭; ‬e os Wanderers de Montevidéu.‭ ‬O primeiro por razões de família.‭ ‬Era o time de meu avô paterno‭ – ‬que de resto,‭ ‬foi funcionário da Rede Viação Cearense (RVC, que além de haver sido o nome oficial de nossa Estrada-de-Ferro por décadas, forma também a iniciais de meu nome: Ruy Vasconcelos de Carvalho). O Ferroviário Atlético Clube é também o time de meu pai.‭ ‬Embora ambos‭ – ‬e muito especialmente o segundo‭ – ‬jamais demonstraram grande interesse pelo esporte ou pelo Ferroviário.‭ ‬Minto.‭ ‬Meu avô chegou a jogar bola em seus tempos de solteiro aí pelos idos de‭ ‬20.‭ E fora mais entusiasmado que meu pai. Mas mesmo isso só vi em fotos,‭ ‬porque ele era um homem formal demais para falar dessas coisas.‭ ‬Já meu pai,‭ ‬bem,‭ ‬este sempre deu preferência a esportes mais‭ “‬frios‭”‬,‭ ‬como a natação ou o tênis,‭ ‬apesar de nunca safar-se da febre que assola o país durante os Mundiais.‭ ‬E postar-se liturgicamente diante do monitor da TV para acompanhar a Seleção.

Ainda em família, tenho um irmão que é santista roxo e outro que se um dia, certamente por equívoco, entrar num estádio, irá perguntar: "mas quem é mesmo a bola"? -- como está escrito em Nélson Rodrigues. Minha mãe e, sobretudo, minhas duas irmãs, gostam de vôlei. E só vêem a Copa do Mundo. Ás vezes, uma ou outra partida avulsa do Brasileirão, mais para matar o tempo e conversar um pouco. Torcem pelos jogadores que acham bonitos. E soltam gritinhos se eles levam pontapés. O que desperta certo desejo na gente que eles, de fato, levem umas botinadas a mais. Uma de minhas irmãs, que morou algum tempo na Itália, nutre certa simpatia por aquela seleção pavorosamente defensiva. Fazer o quê?

Já meu outro time, os Wanderers, de Montevidéu, é uma agremiação de tradição boêmia.‭ ‬Algo que não rima muito com futebol.‭ ‬Mas,‭ ‬convenhamos,‭ ‬possuem um nome esplêndido. Muito sugestivo. ‬E de nomes a realidade de cada um se faz.‭ ‬Eles se grudam às coisas e às pessoas.‭ ‬Além disso não disfarço o apreço que tenho por essa cidade e esse pequeno país que é uma espécie de espelho nosso,‭ ‬invertido.‭ ‬Mil vezes perder uma Copa do Mundo em casa para esses aguerridos uruguaios que para uma equipe europeia. Embora melhor seja mesmo ganhar, claro está.

O fato é que estou em maus lençóis.‭ ‬Os Montevideo Wanderers nunca mais conquistaram lá algo de muito importante no Uruguai após a década de 30 - embora estejam na primeira divisão e com um jogador brasileiro este ano.‭ ‬Já o Ferroviário chegou a ser campeão estadual algumas vezes.‭ ‬O que não conta muito,‭ ‬num estado de alguma tradição futebolística,‭ ‬mas de quase nenhum impacto no ludopedismo nacional.‭ ‬Talvez a maior contribuição do Ceará ao futebol brasileiro foi o mítico ponta-esquerda Canhoteiro.‭ ‬Uma espécie de Garrincha da ponta-esquerda e de espírito tão autodestrutivo fora de campo quanto o‭ “‬anjo das pernas tortas‭”‬.‭ ‬Mas Canhoteiro era do Maranhão,‭ ‬embora tenha começado sua carreira num pequeno time de Fortaleza,‭ ‬o América.‭

O maior feito recente de um clube cearense foi o Ceará Sporting ter conseguido ser vice-campeão da Copa do Brasil em‭ ‬1994.‭ Jogava sempre numa humilhante retranca e perdeu para o Grêmio na final. Algumas vezes este clube e o Fortaleza E.‭ ‬C.‭ ‬ascendem á‭ ‬1ª Divisão.‭ ‬Em geral,‭ ‬para nos fazer passar alguma vergonha, e cair na temporada seguinte.‭ Como deve ser a sina do Ceará Sporting este ano, infelizmente. O‭ “‬tubarão da Barra‭” ‬é como se conhece por aqui o Ferroviário,‭ ‬a terceira força do estado.‭ ‬Mas nos últimos tempos o time, digamos, não está no melhor de sua forma -- como quando goleou o Bahia por 7x2, na série C. Ainda assim, chegamos a ser bi- campeões cearenses, 1994-95.‭ E estamos entre os 100 maiores clubes do Brasil [82ª posição]. E de nossas hostes saíram uns poucos jogadores que depois alcançaram certo renome.‭ ‬Como Jacinto, um meia de talento ou Mário Jardel, centro-avante de força e cabeceio.‭ ‬Porém de momento a equipe não está sequer na 3ª divisão.

Sem embargo,‭ ‬minha política de torcer vai sempre por quem está mais perto de casa.‭ ‬Se joga um time do Nordeste,‭ ‬estou com ele.‭ ‬Mesmo sabendo que,‭ ‬em geral‭ – ‬à exceção de Sport Recife e do Bahia em seus melhores dias‭ – ‬estou do lado mais fraco do cabo-de-guerra.

De times realmente grandes,‭ ‬vaga simpatia pelo Flamengo.‭ ‬Por conta da excepcional equipe do início dos anos‭ ‬80.‭ ‬Vista na adolescência.‭ ‬Um grupo que congregava talentos do gol à ponta esquerda:‭ ‬o volante Adílio‭; ‬o defesa Carpegiani‭; ‬os excepcionais alas Júnior e Leandro [os mesmos da seleção de 82']; ‬o goleiro Cantarelli‭; ‬o impetuoso avançado Nunes,‭ ‬de mais força e explosão que técnica‭; ‬e,‭ comandando toda essa patuscada,‭ ‬o mago Zico.‭ ‬Esta equipe foi campeã brasileira,‭ ‬continental e intercontinental,‭ ‬derrotando o,‭ ‬então,‭ ‬poderoso Liverpool.‭ ‬Talvez seja o time que eu mais lembre a escalação regular,‭ ‬depois da inigualável Seleção Brasileira de‭ ‬82‭'‬.‭ ‬A derrota desta seleção significou para minha geração uma tragédia de dimensões escatológicas. Uma espécie de sebastianismo do futebol.‭ ‬Um divisor de águas inefavelmente trágico.‭ ‬A primeira noção real e concreta que tive de que o mundo é injusto.‭ ‬E de algo que se encontra escrito no‭ ‬Livro de Jó.

E é claro que foi algo mais que uma simples derrota. Foi a vitória definitiva do futebol pragmático e feio sobre o engenho e a arte. E as consequências nefastas disto, desde 82' até hoje.

Entre seleções europeias, fico com Portugal, Espanha e Holanda. E torço deslavadamente contra França, Alemanha, Itália e Inglaterra, nessa ordem.

Há ainda uma mais vaga simpatia pelo São Paulo.‭ ‬Somente em memória do grande time montado por Telê Santana no início dos‭ ‬90.‭ Mas por vezes, especialmente nos últimos anos, em que o estilo Muricy Ramalho, de força e pragmatismo, tanto lembra os times sulistas, como o Grêmio, não arranco fio de cabelo se o São Paulo é goleado. Gostava mesmo era daquela time do Telê. Como alguns outros times do Telê, feito o Atlético Mineiro da passagem dos 70 pros 80: João Leite, o talentoso Toninho Cerezo, Éder, o excepcional Reinaldo, Paulo Isidoro & Cia.

Afora isso,‭ algumas antipatias quase fortuitas:‭ ‬o Corinthians,‭ ‬mesmo que Sócrates‭ – ‬a quem vi em ação no Castelão,‭ ‬com toda sua distinta classe,‭ ‬ainda pelo Botafogo de Ribeirão Preto‭ – ‬tenha jogado em suas linhas. Acho essa antipatia meio irracional. Não sei explicá-la. Nem busco. Mas torço sempre contra o Corinthians com fervor. E sua derrota me dá certo prazer. Isso também inclui, em menor grau, o Palmeiras,‭ ‬apesar de Ademir da Guia,‭ ‬o divino‭; ‬Leivinha‭; ‬o grande Luís Pereira e toda a academia‭ – ‬que,‭ ‬de resto eu tinha em jogo de botão.‭ ‬Eu admirava o Palmeiras, assim como o Santos. Mas a destruição de um vagão de metrô pela Mancha Verde,‭ ‬que testemunhei em São Paulo,‭ ‬me fez pegar abuso pelo time do Parque Antártica,‭ ‬estádio que ficava a apenas algumas quadras de dois de meus endereços paulistanos.‭ ‬E um abuso ainda maior por esses bandos de criminosos e arruaceiros que formam o núcleo mais central das torcidas organizadas.‭ ‬E um ainda maior abuso pela inépcia das autoridades que são incapazes de extinguirem ou desmontarem essas máfias. Ou porem esses criminosos atrás das grades depois de tantos homicídios, sangue derramado e recorrentes selvagerias.

Mas voltemos a Djalminha.‭ ‬Ele também jogou no Fla.‭ ‬Aliás começou no Fla,‭ ‬apesar de ser paulista e filho de um grande jogador que chegou a‭ ‬defender as alvinegras hostes do mítico Santos F.‭ ‬C.,‭ ‬como defesa.‭ Uma evolução em família.‭ ‬Porque,‭ ‬claro,‭ ‬embora seu pai, Djalma Dias, fosse um respeitável zagueiro,‭ ‬o que nós prezamos mesmo são atacantes,‭ ‬jogadores verticais,‭ ‬que cortejam o gol.‭ ‬E assim era Djalminha.‭ ‬Um meia,‭ ‬sim.‭ ‬Mas aquele meia que está sempre avançando, quase o que se chamava alguns anos atrás de ponta-de-lança - embora ele jogasse um pouco mais recuado que Zico, por exemplo. No frigir, um meia que estava sempre rondando a área adversária como um jaguar.‭

Erra quem pensa que a melhor equipe em que ele jogou foi o Deportivo La Coruña. Na verdade, foi o Palmeiras de 96. Um time onde jogavam juntos ninguém menos que Rivaldo, Cafú, Cleber, Júnior, Velloso e o próprio Djalminha.

Talvez sua principal qualidade fosse a imprevisibilidade,‭ ‬para além do incrível manejo de bola.‭ ‬E era também um grande batedor de faltas e pênaltis.‭ ‬Em seus melhores dias proezava coisas que só Ronaldinho em sua primícia pôde oferecer com ainda maior repertório.‭ ‬E,‭ ‬no entanto,‭ ‬era um desastre fora de campo.‭ ‬Por vezes,‭ ‬também dentro dele,‭ ‬pois,‭ ‬temperamental como revelava-se,‭ ‬frequentemente entrava em provocações e era expulso.‭ ‬Emblemática a cabeçada que deu, durante um simples treino, em um de seus treinadores:‭ ‬Javier Irureta,‭ ‬do La Coruña.‭ ‬Custou-lhe a Copa de 2002 - Felipão, então, para seu lugar, convocou um jovem talento, então despontando no São Paulo. Chamava-se: Kaká.

Disciplina não era termo de seu léxico.‭ ‬E,‭ ‬contudo,‭ ‬sem Djalminha,‭ ‬o La Coruña jamais teria sido campeão espanhol.‭ Ele,‭ ‬com toda sua carga de rompantes indisciplinados,‭ ‬ainda conseguia ser o dínamo daquela equipe.

Porém esse seu errático comportamento não lhe facilitou em nada a carreira.‭ ‬Poucas vezes foi convocado para a Seleção.‭ ‬Infelizmente.‭ ‬Em matéria de meias,‭ ‬poucos foram tão talentosos nos últimos quatro lustros quanto Djalma Feitosa Dias.‭ ‬Jogava como se joga nas praias ou na rua.‭ ‬Com a molecagem, o improviso, o tirar o coelho da cartola que tanto nos deleita.‭ ‬

Mas também com a elegância e o talento natural que só se entregam a eleitos.‭



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