Canoa ao largo da barra, em Camocim
A Canoa
A canoa de quilha é um vestígio da antiga perícia da construção náutica portuguesa. Esse vestígio foi largado nas costas do Brasil há muito tempo. E tudo indica que, com o passar dos anos, ele modificou-se muito pouco: cavernas, carlinga, cambitos, cruzetas, dormentes, falcas e fateixas são termos do antigo jargão do homem do mar português. E mesmo talvez provenham de um tempo em que sua intrepidez era tamanha que mesmo os arrogantes ingleses não hesitaram em batizar a caravela ( ou ‘água-viva’) de Portuguese-man-of-war [Guerreiro Português].
No Ceará, a canoa é um antigo emblema da costa oeste. Está próxima de um tipo cada vez mais raro: o filho de agricultor empobrecido de extração portuguesa que, pela sucessiva partição e amesquinhamento das terras, foi obrigado a voltar-se para o mar.
Esses homens levarão consigo uma aspiração, algo, fidalga e imponderável, diante da qual, os trabalhos do mar nunca contaram muito. Para eles, trabalhar a terra (“trabalhar no seco”) e, especialmente, possuí-las, traz muito mais honra. Gostam de frisar suas raízes familiares e seu catolicismo. Nutrem uma ambígua animosidade contra mestiços e índios (“a cabocada”) com os quais, de resto, acabaram se caldeando. Não raro, trata-se de pessoas de hábitos extraordinariamente regulares e comedidos e, não obstante a idade avançada, extremamente laboriosos.
Nas Vilas Volantes desempenham um tipo de autoridade que é aparentada à de um sábio. Algo venerável, mas ao mesmo tempo despótica e patriarcal. Porém sua aura de venerabilidade torna-se, hoje, mais e mais débil, especialmente para os mais jovens, escolados na sociedade de consumo. Em Camocim, por exemplo, dois dentre os pescadores mais idosos da colônia, Gabriel de Barros e Domingos Molhado, jamais usaram bermudas, um dia que fosse:
Porque é indecente.
À beira-mar, o primeiro brinquedo do menino das Vilas Volantes é uma canoa. Esta canoa tão-só pode sugerir uma verdadeira, como no caso da casca ou capemba de coco, como pode ser uma pequena obra de arte, armada com lenta precisão, seguindo rigidamente as mesmas etapas do fabrico de uma canoa em escala real.
Mas se o miniaturista faz alegria das crianças – e, cada vez mais a conveniência do turista – a figura do fabricante de canoas é bastante reverenciada. Há que se confiar num homem assim, que desenha a exígua superfície em que os pescadores se equilibram em cima por cerca de dois quintos de suas vidas. Na Tatajuba, Mané Pedro, tido como um dos mais hábeis construtores de canoas da região que vai do Camocim ao Acaraú, é motivo de orgulho para os habitantes do pequeno distrito. Ele encarna um dos poucos índices capazes de demarcar a singularidade da Tatajuba frente às outras Vilas Volantes. E compraz à comunidade entrever a chegada de pescadores de Camocim, do Guriú, das Imburanas, da Barra dos Remédios, de Jericoacoara, de Praia Nova ou do Maceió, que optaram por deslocar-se até a Barra do Lago Grande, devidamente acompanhados das partidas de madeira necessárias para o fabrico de suas embarcações.
No imaginário das Vilas Volantes, a canoa é um ser essencialmente feminino. Mas talvez haja uma antedata para isso, pois a própria etimologia de uma de suas peças fundamentais, a carlinga, disso dá prova. A carlinga, bloco de madeira fixado ao cavernamento, imediatamente abaixo do banco da vela, e que contém o orifício que a abriga a mecha do mastro, é um termo que provém do escandinavo ‘kerling’ (ou mulher). Somente em Camocim, elas são mais de trezentas. E, ao contrário dos botes, bastardos e barcos lagosteiros, a canoa é entendida como uma entidade essencialmente feminina e, quase invariavelmente, assim é nomeada. Com nomes de mulher: “Cleide”, “Flávia”, “Adriana”, "Lia", “Ana Cláudia”, “Joana”; de rosas: “Branca”, “Dália”, “do Porto”, “dos Ventos”; de estrelas: “d’Alva”, “do Norte”, “do Mar, “da Primavera”; de aves: “Gaivota”, “Graúna”, “Jandaia”, “Sabiá”; de peixes: “Piraúna”, “Sardinha”, “Tuninha”; de empréstimos da mídia: “Joelma”, “Flipper”, Rita Ly” [sic]; de insultos: “Cunhã”, “Rapariga”; de virtudes: “Boa”, “Carinhosa”, “Delicada”, “Sumária”; de termos estrangeiros: “Air”, “Chic”; de estabelecimentos comerciais: “Casa Vaulino”; de expressões ou gírias: “Vamucara”, “Vai e Vem”; “Minha e dela”; de Santas: “Inês”, “Luzia”, “Maria”, Joana d’Arc”; de Deusas: “Vênus”; “Diana”; de abstrações: “Delícia”; “Esperança” (curiosamente uma das menores), “Fé”, “Torpor”.
Nomes que expressam muito das volições, frustrações, influências, enfim, da utopia de toda uma comunidade, cujo destino comum está assentado na pesca artesanal.
[...]
[extrato de As Vilas Volantes, o texto, 1991]
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