domingo, 17 de outubro de 2010

Cheiramos flores de medo

Paul Klee, Mask of Fear, 1932




Medo & a Deformação de Sentido da Palavra Caridade


É quase impossível a um escritor não espalhar coisas más quando ele próprio não está bem. Pois é muito mais fácil atingir as pessoas pelo que nelas há de mesquinho. Como mesquinhos são os espelhos se excessivamente fixados. Ou todo aquele que é incapaz de sacar-se da própria adolescência no rumo de uma apaziguada – ainda que irrequieta – maturidade.

Vivemos num mundo com medo. Temos medo. Ou como diz Drummond: “E fomos educados para o medo./ Cheiramos flores de medo./ Vestimos panos de medo./ De medo, vermelhos rios vadeamos”. Quanto mais civilização há, mais medo de perder. De perder trivias: objetos, pequenos confortos. Embora o homem primitivo deva ter vivido num mundo de extremo terror, ele ao menos dava vazão a esse medo com muito menos compostura e bem mais sinceridade do que nós. Afora o fato de sua imaginação e paixão serem imensas.


Como "explicar" o raio e o trovão? As pestes e as doenças? A ferocidade das bestas selvagens? A magia do fogo? O encantamento dos sonhos? E, no entanto, eles criaram uma linguagem para dar conta de tudo isso que, em frequência, é muito mais sábia e robustamente poética que o nosso "mito" por excelência: a moderna ciência, positiva - cartesiana e/ou pós-cartesiana. A mesma que nos levou à penicilina e à bomba de nêutrons.

Essa é a diferença abissal entre nós e eles. O escritor moderno frequentemente se debruça sobre assuntos que não têm nada a ver com certas prioridades – e isso não quer dizer que tomar banalidades, o prosaico, o comezinho não seja o ponto de partida para adentrar em temas instigantes. No íntimo, ele esqueceu muita coisa. Muitas dessas coisas passam por um défice de sinestesia. Por uma progressiva incapacidade de sentir ou fruir a realidade física à volta. Mas também por conceitos. Algo mais abstrato. Como o peso que recai sobre certas palavras.

Entre essas palavras mais enxovalhadas desde o princípio da modernidade está a palavra caridade. A palavra caridade, que é sinônima de amor. E de abertura ao próximo.

Em verdade, entre os antigos, a caridade era a forma mais elevada de amor, porque estendida àqueles que nem mesmo se conhecia. Que acreditavam em outras coisas, adotavam outros valores, cultuavam outros deuses. E, portanto, algo que era dado, muitas vezes sabendo-se que ia fazer falta. Porém essa falta passava longe de ser um empecilho para o ato da entrega.

Tanto assim, que o sentido da palavra caridade entortou para a esmola que se pode dar, sabendo que aquilo que é dado não vai fazer a menor falta. Coisa de velhas matronas casadas com ricos executivos. Campanhas, onde o marketing vale mais que o ato. Ou então, algo que pode ser banalizado até a profundidade das minas de cobre chilenas na mídia nossa de cada dia. E alavancar a popularidade de políticos ou aumentar índices de audiência nos meios de comunicação. No frigir, a caridade – a ideia mas elevada de amor, no Medievo – converteu-se em algo bolorento, tramado em velhas sacristias por beatas enrugadas, que entoam velhos hinos ao padroeiro.

É certo, o excesso de auto-consciência, de uma lógica insana, que não deixa o corpo agir com o mínimo de espontaneidade transforma em artificial, frio e distanciado qualquer contato humano. Mesmo o mais espontâneo deles: a amizade. O sentido de estarmos juntos. Porém do contrário, o excesso de medo diante dos dilemas morais de cada um não nos pode levar a uma vida só de prazeres. Em que o mínimo sentido da palavra sacrifício parece haver sido erradicado de tudo o que vemos na TV, lemos na internet, nas revistas, nos livros, escutamos em mp3.

Ser feliz não é algo padronizável. É um advento. Uma aventura não mediada pelos modernos veículos de comunicação de massas.

É mais primordialmente algo a ser descoberto, com paciência e coragem, pela rica individualidade de cada ser humano. E, sem nenhuma dúvida, por mais assustador que já possa parecer a uma vasta maioria, tem a ver com conhecer-se melhor.


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