Lee Bontecou, 1958
Tua Nova Ariadne
Há um tubo. E nele se entra. Este tubo conduz a um outro tubo. E dentro deste outro tubo há uma encruzilhada. Depois dessa encruzilhada há muitas possibilidades de tubo. Uma capilaridade estranha. Em que cada passo sobre os tubos encharcados ressoa como o tinir de um caixa registradora bem no vão do juízo. Está um pouco escuro. Os tubos são tantos. As vezes imensas retas. Retas que parecem não terminar. Embora terminem abruptamente, para mais baixo, uma cava. Ou mais acima, aclive. Nada pressentidos. Ou então, a galeria de tubos assoma tão intrincada como o sistema de rotundas da Estrada de Ferro Oeste de Minas. E é aí que se descobre: mesmo se houvesse uma Ariadne e um fio jamais seria possível sair da tubulação. Daí se saca o celular. Mas é tão grande, tão pleno de curvaturas e camadas sobrepostas o dédalo de tubos que qualquer sinal de celular imediatamente seria barrado pela interferência metálica e indiferente. E, de repente, ao tentar repor o celular no bolso do jeans, percebes que não é celular mas um graveto molhado na água fétida dos tubos. E que não há jeans porém uma superfície cinza e peluda. É teu corpo nu e molhado, com pequenos pelos boiando de leve à tona, feito penugem, na semi-obscuridade que as grelhas dos bueiros – muito altas e vagas, lá, lá acima – ainda garantem. E tu tentas escalar até elas, pois ainda sentes frio, às vezes. Mas os tubos estão cheios de limo. E, de algum modo, mesmo sentido-te mais preênsil por alguma razão, tu não logras galgar pelas laterais côncavas. E então teu corpo, mais e mais felpudo cai, ainda uma vez, dentro do charco, nos tubos. Só tu podes ouvir o baque na água imunda, ecoando, pois é certo, não há mais ninguém na tubulação. E logo tua visão principia a adaptar-se à insuficiência da luz. E instintivamente, com crescente destreza, começas a escolher se é melhor seguir a direita, a esquerda, adiante, para achar o de comer. Cada vez menos pela vista, que te está baça como um pano de pratos encardido, porém por teu faro tremendamente aguçado. E aprendes a viver sem cardealidade ou bússolas. E quase mais não sentes frio. Farejando aquelas superfícies de camadas e camadas de lodo. Palimpsestadas. Até chegar ao ponto em que percebes largar um rastro atrás de ti. Um tênue rastro na água. Um rastro que cresce. Timidamente. Deixado pelo mover de tua cauda na poça perene. A cauda que segue aumentando no correr de um tempo indemarcável. Tornando-se forte e essencial parte de ti, quando tudo estiver formado. Aprendes a torcer o corpo e lambê-la se ela se contunde, sentindo dores ao enroscar-se nos fios de arame vindos de um não sei onde para a tubulação. Ou o prazer que ela te dá, ao flutuar macia, mais facilmente que o resto do corpo na ininterrupta umidade em que vives dentro dos tubos. Ela é tua antena. Teu fio. Tua Ariadne. Com ela segues mais apaziguado com a ideia de que jamais tornarás ao não sei onde de onde vieste. E até, entre os grandes incisivos, ameaças assoviar uma velha bossa-nova, enquanto avanças ao ritmo das patas na água. Tua cauda ao modo de antena, como um segundo faro.
Te ajudando com o equilíbrio, enquanto a canção é roída.
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