Marcel Duchamp, Couple of Laundress' Aprons, 1959
L'Inquietude
Ao subir a serra já noite feita, ele percebera aquela grande carreta no ziguezague das curvas, desde uns quinhentos metros. Suas luzes difusas, assomando e murchando, ao sabor das espirais, na estrada. E de uma tênue neblina.
Lá abaixo, as luzes da cidade que tinham acabado de atravessar. A mais próxima ao sopé da serra.
Por fim aproximaram-se. E ficaram rentes a traseira do vasto caminhão por um bom quarto de hora. Era uma noite de lua nova. E a neblina, apesar de não espessa, colava-se na delicada pele do rosto dela e embaciava o para-brisas. A estrada era estreita. E mesmo que não houvesse chovido, a umidade do ar retirava um rumor mais acentuado e monótono dos pneus do carro. Como se não bastasse, o motorista do caminhão pouco parecia disposto a sinalizar. Sobre o repasse fugaz dos faróis as silhuetas das árvores assomavam, altas, volta e meia, para tornar a mergulhar no escuro.
Os carros que vinham na mão contrária, apesar de baixarem os faróis, sempre ofuscavam em demasia os olhos dele, dado que desapareciam, atrás do extenso vulto do caminhão, para desembargarem-se de súbito.
Ela contava sobre o trabalho na faculdade. Estava se passando algo de errado com o novo supervisor geral. Aparentemente era um sujeito sanguíneo. Assumira o cargo há pouco e já se indispusera com toda uma leva de professores. Seu tom de voz era cavo. E canalizava com alguma dramaticidade a situação, antes de desmanchar-se num riso cheio de staccati e resfôlegos:
–Mas ele ainda vai ver o que é bom pra tosse!
Dissera aquilo com o punho cerrado batendo sobre o livro fechado, ao colo. Escandindo lentamente as palavras, quase de forma artificial. E havia uma gota de saliva sobre seu lábio.
Ele passava as marchas, puxando o cigarro. As curvas eram fechadas. E ele tracionava as marchas a golpes, empurrando-as a leve socos, nunca envolvendo o pomo da alavanca com a mão. Pelos vidros abertos, a frialdade aumentava. E ela vestiu um pulôver laranja claro, de gola. A gola ao modo de fôrma e gesso demarcando seus traços delicados, o cabelo curto:
–Por que que quando você quer não escuta nada do que a gente diz?
Ele prosseguiu em silêncio, fumando.
O motorista, enfim sinalizou. Ultrapassaram-no. A corrente de ar aumentou e ela soergueu o vidro da porta:
–O frio tá começando a pegar.
Ele pensava em como encontrara uma ex-colega do fórum na livraria um pouco antes do almoço. Uma bela morena clara: alta, esguia:
–Joel? Oi, tudo bem? – e no colarem os rostos ao se saudarem, o rosto dela estava levemente arrefecido e, sem suor, retransmitia uma sensação de viço, que ele quase podia repressentir na face, junto com a neblina.
Podia rever as roupas dela. As formas dela, sob a saia bege. O lenço ao pescoço, longo, ressaltando da blusa púrpura de gola. Podia refazer o quanto era adelgaçada, bem-apessoada, os dentes ligeiramente proeminentes, o belo sorriso. Ou de como movia-se com altivez apesar de parecer apressada. Mas também do modo que, ao avesso da antiga expansividade, lhe saudara com algum protocolo.
–Vim comprar uns livros pr'os meninos! – disse de passagem, na direção dos caixas.
Ela pensava no jovem doutor que chegara de Santa Catarina. E, desavisado de que ela era casada, lhe havia convidado a jantar. Em como era alto e parecia seguro e agudo por trás dos olhos esverdeados. Em como uma réplica dele, dita em calma, com a voz grave, que não modulava nunca, calara o supervisor geral. Lembrava de suas mandíbulas bem constituídas. Da forma como sua simples presença elidia toda a arrogância do homenzinho calvo, de voz irritantemente tiple. Pensava nos cabelos castanho claros dele, quase loiros. Nos olhos verdes-zinco sob os óculos de aros finos. No bem torneado de seus bíceps. No modo como a única ênfase que punha na voz era quando pronunciava o nome dela:
–Flávia, é preciso preencher a caderneta logo depois da aula? Como é que faz aqui?
Porém ela não cessava de falar. Porque, ao contrário dele, possuía grande capacidade para dedicar-se a um assunto no pensamento, a outro na fala.
Meia-hora depois, após registrarem-se no hotel, alternaram-se no banho quente, enquanto cada um à vez, desfazia parcialmente as malas. Escolheram um amplo quarto, no primeiro piso, de camas separadas, debruçado sobre uma íngreme vertente. Este vale só era pressentido por uma pálida lâmpada de mercúrio debruçada sobre o chasmo e volteada por uma pequena nuvem de vespas. Grilos cantavam. E, em avulso, um coaxar de sapo.
Depois de trocarem-se, desceram ao restaurante.
Jantaram quase em silêncio, não fosse por ela. Contou algo que uma sua tia, também professora, mas na Faculdade de Economia, certa feita fizera, ainda na juventude: durante uma aula, num dia de grande calor: retirar o sutiã, contorcendo-o, blusa abaixo, à frente dos alunos. Os alunos pasmos diante da cena.
Ele sorriu:
–Sempre achei que ela tinha um parafuso a menos – comentou, depois de entornar o vinho. Um tinto argentino, seco.
Depois da sobremesa, foram à portaria, e o recepcionista lhes refez o percurso a pé até a pequena cidade, cravada num vale não tão extenso:
–Mamãe detestaria fazer essa caminhada.
A mãe dela, apesar de médica; apesar de prescrever caminhadas para todos seus pacientes, detestava andar:
–Parece que se vai sempre a lugar nenhum, mesmo quando se vai a um – era o que dizia.
Ele abriu um meio-sorriso. Bem podia imaginar a sogra dizendo isso. A voz esganiçada, com uma não forçada desfaçatez em tudo que dizia.
A trilha até o povoado era relativamente ampla para a passagem de dois veículos. Eles caminhavam à direita, na contramão de um possível veículo que os colhesse vindo de adiante. Mas nenhum carro veio pela esguia estrada carroçável. Eles não se davam as mãos. Embora seguissem tão rentes que seus ombros se tocavam, por vezes.
Uma espécie de apito soou de dentro de um pequena casa, avulsa e alpendrada. Um desses apitos de criança. A neblina dissipara. E pela iluminação da pequena cidade, podia-se ver uma igreja, no ponto mais alto da colina, ladeada por um renque de palmeiras imperiais.
O apito ressonou de novo. Já mais ao longe:
–Acho que esqueci de trazer meu creme de rosto – disse ela – essa umidade da serra é de lascar.
Lá embaixo, as casas pequenas, amontoadas umas sobre as outras, pareciam estar com frio. Ele aprumou a gola estreita do casaco:
–Amanhã, o sol deve abrir. É sempre assim, depois dessas noites úmidas.
Voltearam por ruas estreitas e sinuosas. E pararam para um chocolate num pequeno café. Uma mendiga acercou-se da mesa deles:
–Ei, Seu Zé, me dê uma ajuda pelos olhos de Nossa Senhora Aparecida.
A dona do café a afastou. E a mendiga, com um trapo à cabeça, ficou sentada à coxia, as mãos prendendo os joelhos e a barra da saia:
–Voltamos na terça de manhã, então? – disse ele.
–É. Quero aproveitar o resto do feriado para corrigir umas provas.
Ele olhou para cima e percebeu na decoração um tanto profusa do simpático café uma fateixa. Sempre lhe enternecia qualquer referência ao mar. E imaginou o quanto aquele objeto estava apartado das mãos que o fizeram àquela altura da serra.
E também o quanto faltava uma âncora para eles. De momento.
Ela, que tinha um leve problema crônico de cegueira noturna, fixava detidamente o açucareiro, nele adivinhando dois grãos de chocolate solúvel, que retirou, com a colherinha, enquanto um pequeno bocado de açúcar trasfegou-se para o tampo da mesa. E pensou que teria sido bom haver aceito o convite para jantar com o catarinense.
De volta ao hotel, em que eram praticamente os únicos hóspedes, assistiram o telejornal no saguão e, enfastiados com o filme que se seguiu, subiram para o quarto. Pelo corredor estreito e sombrio ele a guiava. Mas as chaves do quarto estavam com ela.
Ao fazerem amor, sob a pálida luminária à cabeceira, com uma extática lentidão, seguiam adivinhando todos os procedimentos, todas as posturas. Tudo o que mais um ao outro agradava. Houve um pouco mais de fervor àquela noite. Apagaram a luminária.
Ele pensando nos olhos negros da colega do fórum que não se refletiam nos olhos azuis dela. Ela pensando nos olhos verdes do jovem professor catarinense que pouco tinham a ver com os olhos castanhos claros dele. Ela gemeu mais forte e doce. Ele sentiu calafrios há muito não pressentidos.
Lá fora os sapos coaxavam. E, pela janela levemente entreaberta, um fio de luz varava o aposento envolto pelo rocio das árvores serranas a esmaltar o parapeito, no desolamento do feriado.
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