domingo, 31 de outubro de 2010

A prevenir os viajantes da presença: Salter

Frank Auerbach, Nude, 1953-54



James Salter

Conheci a prosa de James Salter num período de grande ebulição. Morando em São Paulo, certo professor da PUC indicou-me para traduzir seu livro de memórias: Burning the Days [1997] – título que verti como Oxidando os Dias. Era uma época estranha em que eu queria assumir-me como escritor, mas ao mesmo tempo percebia que o que tinha vivido não me fornecia lastro suficiente para sê-lo. Mas isso é uma outra prosa, e não vale a pena entrar agora por esse desvão.
Lembro que, logo em seguida, com minha ex-mulher, meu irmão, minha cunhada, e um casal de amigos, viemos em férias para Fortaleza. E não era infrequente eles seguirem para praias, lagoas, falésias, serras. E nem sempre eu podia seguir com eles, porque tinha de restar em casa, às voltas com a tradução do livro. Tradução que conhecia uma estável média de três ou quatro páginas por dia. O livro é admiravelmente bem redigido. Frases curtas. De uma elegância hemingwayana. E alguma demão de Henry Miller pairando por cima do todo.
O que eu não contava, adiante, é que a editora para qual eu estava contratado iria entrar em processo de solvência. Que meu trabalho, de horas e horas, teria de ser interrompido. Que, algum tempo depois, passaria para outras mãos. E, claro, meu nome jamais apareceria nos créditos da tradução – algo, na produção linha de série e instável, que é o mercado editorial, não tão incomum. E pensar na pilha de livros que traduzi, que eram tão ruins, que uma das condições para traduzi-los, era a de que meu nome, por pedido próprio, não constasse nos créditos...
Porém nem mesmo esses contratempos diminuíram meu apreço pela escritura de Salter. Tanto que quase simultaneamente à tradução de Burning the Days, ao retornar a São Paulo, lancei-me à leitura de um seu romance que é, de fato, um um achado: A Sport and a Pastime [Um Esporte e um Passatempo, 1967], chegando mesmo a traduzir, por puro prazer, certos excertos, depois perdidos em velhos disquetes – pois a medida que os suportes de memória se tornam cada vez mais robustos e aparentemente confiáveis, tornam-se também mais e mais descartáveis.
Lembro que a indicação, aliás, veio de uma vendedora da Livraria Cultura, que era minha principal fonte em matéria de ficção norte-americana. Em dez anos, como as coisas mudam! Busque-se alguém assim no supermercado de livros em que se converteu a Cultura, e se não vai encontrar. Nem sequer em São Paulo.
Salter, tendo sido piloto de caça na Guerra da Coréia, nos oferta em Burning the Days, memoráveis páginas sobre essa profissão fascinante. Onde o risco é algo que segue colado à casca de cada segundo. Mas, sem dúvida, mais magnético é A Sport and a Pastime, que trata do mais universal de todos os temas: aquele.
Nele um expatriado norte-americano vive um tórrido romance com uma lojista francesa numa pequena cidade da província. O detalhe é que tudo não é mais do que ficcionado – com grande verve de imaginação e sensualidade, no entanto – por um solitário compatriota também expatriado.

Abaixo segue um extrato:

16.

Past and haunting images of France, reflected over and over again like the facets of an inexhaustible stone. I walk through the silent house, the tall rooms chilled with winter light, the furnishings crossed by it, the windows. The quality of stillness is everywhere. There is no single detail that provides it. It exists like a veiled face.
Images of the towns. Sens. The famous cathedral which is reflected in the splendor of Canterbury itself rises over the icy river, over the still streets. One sees it in the distance, St. Etienne: the centuries have bleached its stone like powder and the heads are all missing from the statues of the blessed, but still it appears from far off to warn travelers of the presence of God. Built as one of the first of a great, Gothic family that rose throughout France, it endures like a white myth. The little shops have grown close around it, cinemas, restaurants. Still it cannot be touched. Beneath the noon sun the roof, which is typically Burgundian, gleams in the strange design of snakeskin, banded into diamonds, black and green, ocher, red. The sun splashes it like water. The brilliance seems to spread.
Sens. They have fallen sleep. Dean wakes first, in the early afternoon. He unfastens her stockings and slowly rolls them off. Her skirt is next and then her underpants. She opens her eyes. The garter belt he leaves on, to confirm her nakedness. He rests his head there. After a while, finding a more comfortable position, he lies between her legs, her pelvis for a pillow, her knees within his grasp. He listens to the traffic. He turns his head a little to see if she is asleep. She is looking down at him calmly. Beneath his ear it is wet.

[James Salter, A Sport and a Pastime, © James Salter, 1967]

16.

Passadas e assombrosas imagens da França, refletidas de novo e de novo como as facetas de uma gema inexaurível. Eu caminhava para a casa silenciosa, os compartimentos altos arejados pela luz do inverno, os móveis entrecruzando-a, as janelas. A qualidade da quietude está em toda parte. Não há um único detalhe que a proveja. Ela existe como um rosto velado.
Imagens das cidades. Sens. A famosa catedral que é decalcada do esplendor da própria Caterbury ergue-se sobre o rio enregelado, sobre as ruas quietas. É possível entrevê-la à distância, S. Etienne: os séculos caiaram suas pedras como talco, e as cabeças das estátuas dos abençoados se foram, mas ela ainda assoma desde longe a prevenir os viajantes da presença de Deus. Erguida como uma das primeiras de muitas, da linhagem gótica que aflorou na França, ela perdura como um mito branco. As pequenas lojas amontoaram-se rente a ela, cinemas, restaurantes. Ainda assim, ela não pode ser tocada. Sob o sol da tarde, o teto, que é tipicamente borgonhês, reluz na estranha estampa de pele de cobra, listrada de diamantes, negros e verdes, ocres e encarnados. O sol sobre ela respinga como sobre água. O brilho parece alastrar-se.
Sens. Eles haviam caído no sono. Dean desperta antes, no abrir da tarde. Afrouxa as meias dela e lentamente as enrola. Depois vem a saia e então a calcinha. Ela abre os olhos. A liga, ele não remove, para confirmar a nudez dela. Repousa ali sua cabeça. Depois de um lapso, ao encontrar uma melhor postura, ele jaz entre as pernas dela, a pelve dela por travesseiro, os joelhos a seu alcance. Ouve o tráfego. Revolve a cabeça um pouco, para ver se ela dorme. Ela o entreolha calmamente abaixo. Há umidade sob a orelha dele.


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sábado, 30 de outubro de 2010

Um 'Midrash' realista, cético, fervoroso

Mark Gertler, Jewish Family, 1913




Isaac Bashevis Singer

Quando ainda estudante de graduação em História, dei com o nome de Isaac Bashevis Singer nas prateleiras da biblioteca do Centro de Humanidades. E fui fisgado de imediato pelo seu nome – que jamais ouvira antes. Como é possível? Pude reconhecer que se tratava de um nome judeu. Mas também seu nome me remetia para as máquinas de costura. Máquinas que foram utilizadas por minha avó. E com grande perícia. Máquinas, cujo distribuidor, na pequena cidade em que nasci, era amigo de meu pai.

Após esse encanto para todos os efeitos irracional, tirei o livro de Singer da prateleira. E, aí, sim, percebi estar diante de um grande prosador. Se dispusesse de tempo ou de uma maior facilidade para aprender línguas, teria aprendido o iídiche apenas para desfrutar, de fato, da prosa de Singer no original. Ela parece revestida de uma integridade que a previne contra qualquer modismo ou afetação. 


A tradução, para o inglês naquela edição fora empreendida, no entanto, por ninguém menos que Saul Bellow. E os contos – que prendiam justamente pelo fato de serem excepcionalmente bem contados – pareciam refratar as intenções de Singer, como alguém que, apesar de completamente cético diante da tecnologia e das modernas facilidades de comunicação, tratava a vida com certo joie de vivre. E, em especial, num certo conto longo: Gimpel, The Fool [Gimpel, O Idiota].

Só depois fiquei sabendo da obsessão de Singer com a questão da tradução. Do fato de ele discutir com seus tradutores o teor de cada palavra na esteira da frase.

Nos dias de hoje há tão-só cerca de três milhões de pessoas capazes de ler em iídiche – e, ainda assim, sem fluência, a maioria. O que é escrever para menos de três milhões de pessoas? O que é escrever em uma língua que está desparecendo? O que se sente ao pôr no papel palavras que se sabe, dentro em pouco, farão parte de uma língua morta, serão matéria para linguistas? Que sequer possui termos que designam facilidades modernas como “metrô” ou “via-expressa”? O que escrever num idioma que é já quase arqueologia?

No entanto, a coerência narrativa – e obviamente moral – dos relatos de Singer me fisgaram de imediato. Assim como um pressentido descaso pelo que seguia em moda – em todos os níveis, inclusive o acadêmico. E não menos seu senso de devoção ao local e ao pequeno, ao microscópico, ao frágil: as pequenas aldeias polonesas e guetos de população predominantemente judaica, que ele deixara para trás ao migrar para Nova York - Singer morreu aos 88 anos, em 1991. 

Falar dessas comunidades é falar da Shoah. É falar, um pouco por tabela não periódica, de Primo Levi, de Paul Celan. E, no entanto, os temas de Singer não passam por um certo teor de vitimização que, quando se adentra nesses domínios, é quase impossível fugir dado a barbárie dos acontecimentos.

Os temas de Singer recaem muito mais sobre modos de vida pequenos, segregados, vividos em tempos mortos, já tão passados. Vividos nessas comunidades asquenazes de antes da II Guerra. 

Em Gimpel, por exemplo, temos o idiota da aldeia. Mas também um homem operoso. Que passa de ajudante de padeiro a proprietário da melhor padaria do local. A população, por chacota, o faz casar com uma das mulheres mais promíscuas do lugarejo. Eles geram, então, uma prole numerosa. Sendo que nenhum dos filhos é do próprio Gimpel. Ele é um homem de tão boa-fé, contudo, que, uma vez, chegando em casa, ao surpreender a mulher com outro, na cama, ao invés de tomar medidas de imediato, segue, ao invés, ao rabino em busca de orientação. 

O rabino, salvo engano, ele próprio um dos amantes da mulher de Gimpel, lhe convence que nossos sentidos são falhos. E o que Gimpel vira, não se tratava de uma pessoa, mas da sombras de uma viga sobre as cobertas. E até lhe prescreve uma oração. Apaziguado, o idiota volta para a casa e prossegue com a vida. Uma enfermidade grave, no entanto acomete sua mulher. E esta, em seus estertores, manda chamar-lhe e abre o jogo: a ilegitimidade dos filhos, o compulsivo adultério com aldeia e meia, o modo como todos a ele se referiam às suas costas em tom de deboche. Atordoado com as revelações da mulher, Gimpel pondera insone, madrugada adentro, à espera da hora de fazer o pão. Uma das vinganças que imagina é a de acrescer algumas medidas da própria urina na massa do pão.

Mas então, algo acontece. Extenuado, ele cai num sono profundo. E nesse sono há um sonho em que um conhecido lhe vem do Além para lhe dissuadir de qualquer vingança. Que não fizesse isso, porque sua ficha no Além estava limpíssima. Ao despertar, reconciliado, ele toma algumas decisões. Uma delas é a de passar o rentoso negócio da padaria aos filhos. E também adotar como princípio, certo trecho do Livro da Sabedoria, que diz da possibilidade de tudo. De o que não é ou não pode ser concreto aqui e agora, ser possível de realizar-se sobre outras circunstâncias, em outro tempo, outro local, etc. [e não tome-se isto como utopia política mas como condição existencial]. Assume também a postura do nômade, do errante, que sai de aldeia em aldeia, contando midrashim, pequenas histórias edificantes, sobretudo aos mais jovens e às crianças.

Além de admiravelmente bem estruturadas, as narrativas de Singer prendem pelo fato de em qualquer momento abdicarem da moral da história. E talvez nisto resida o seu maior encanto.

Abaixo segue um linque para uma bela entrevista com Singer na Paris Review, em que, além de falar do papel do escritor e sua relação com o jornalismo, o ensino e as modernas facilidades, ele nos diz coisas como:

Well, the Yiddish writer was really not brought up with the idea of heroes. I mean there were very few heroes in the Jewish ghettos—very few knights and counts and people who fought duels and so on. In my own case, I don't think I write in the tradition of the Yiddish writers' “little man,” because their little man is actually a victim—a man who is a victim of anti-Semitism, the economic situation, and so on. My characters, though they are not big men in the sense that they play a big part in the world, still they are not little, because in their own fashion they are men of character, men of thinking, men of great suffering. It is true that Gimpel the Fool is a little man, but he's not the same kind of little man as Sholom Aleichem's Tevye. Tevye is a little man with little desires, and with little prejudice. All he needed was to make a living. If Tevye could have made a living, he wouldn't have been driven out of his village. If he could have married off his daughters, he would have been a happy man. In my case, most of my heroes could not be satisfied with just a few rubles or with the permission to live in Russia or somewhere else. Their tragedies are different. Gimpel was not a little man. He was a fool, but he wasn't little. The tradition of the little man is something which I avoid in my writing.

Bem, o escritor de tradição iídiche não cresceu com a ideia de heróis. Quer dizer, houve poucos heróis nos guetos judaicos—poucos cavaleiros e condes ou gente que duelava, etc. No meu caso, não penso que escreva na tradição do “zé-ninguém” do escritor iídiche, porque esse “zé-ninguém” é de fato uma vítima—um homem vitimizado pelo anti-semitismo, a condição econômica, e por aí vamos. Minhas personagens, embora não sejam grandes homens no sentido de desempenharem uma ação decisiva sobre o mundo, ainda assim não são “zés-ninguéns”, porque a seu modo são homens de caráter, de reflexão, de grande capacidade de sofrimento. É verdade que Gimpel, o Idiota, é um “zé-ninguém”, mas não do mesmo tipo do “zé-ninguém” a exemplo do Tevye, de Sholom Aleichem. Tevye é um “zé-ninguém” de aspirações mesquinhas, e pouca predisposição. Tudo que ele necessitava era ganhar a vida. Se Tevye houvesse logrado ser bem sucedido, não teria sido expulso da aldeia. Se pudesse ter casado suas filhas, teria sido um homem satisfeito. No meu caso, alguns dos meus heróis não se contentariam com alguns rublos ou com a permissão de viver em um lugar qualquer da Rússia ou onde mais fosse. Suas tragédias são diferentes. Gimpel não era um “zé-ninguém”. Ele era um idiota, mas não era mesquinho. A tradição do “zé-ninguém” é algo que evito em meus escritos.

Ou ainda:

I think that journalism is a healthier occupation for a writer than teaching, especially if he teaches literature. By teaching literature, the writer gets accustomed to analyzing literature all the time. One man, a critic, said to me, “I could never write anything because the moment I write the first line I am already writing an essay about it. I am already criticizing my own writing.”

Acho que o jornalismo é uma ocupação mais salutar para um escritor que o ensino, especialmente se ele ensinar literatura. Ao ensinar literatura, o escritor acaba acostumando-se a analisar a literatura o tempo todo. Um sujeito, um crítico, me disse: “Eu jamais poderia escrever nada, porque logo à primeira linha já estou escrevendo um ensaio a respeito. Já estou criticando minha própria escrita”.

Para a entrevista na íntegra:



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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Pronunciando cada palavra ao ouvido interior

[s/i/c]




Um bocado traiçoeiro
uma divagação imediata sobre o computador enquanto meio

O blogue parece ser o meu limite. Eu não saberia ir além disso. Tentei as redes sociais. E evadi-me delas por pudor. Senti que havia ali algo que não era meu. Por vezes, certo desconforto de adentrar tanto na intimidade de pessoas que mal conheço. Entendo que o fato de acomodar-se nessas redes ou não é de cada um. E que há pessoas que fazem delas um uso compulsivo. Especialmente do Twitter. Um uso que não parece razoável. Outras se impõem limites. Algumas podem achar o ambiente estimulante. E chegam a ser criativas. No entanto, tenho me organizado mais e mais no sentido de impôr determinados e precisos limites, limiares quanto ao uso do computador. Aliás, não tenho afeição pelo computador em si, como objeto. É uma máquina feia, estranha. Mesmo os notebooks parecem objetos sem nenhum senso plástico. Não há nada neles que me agrade, afora o teclado de um notebook, que me remete vagamente para o teclado da última máquina de escrever que possuí, já eletrônica, com uma ridícula memória para os padrões atuais: captava cerca de duas laudas. No entanto, escrevo há já quase duas décadas em editores de texto, o que considero uma grande vantagem, porque nunca fui um bom datilógrafo. E também porque reviso à exaustão o que escrevo. Então, para mim, o computador tem sido essencialmente uma máquina de escrever com algumas vantagens. Também leio jornais e suplementos literários no computador. E tenho alguns dicionários instalados. Num determinado instante, cheguei a ler livros, foi quando senti uma imensa saudade dos livros convencionais. E me senti desconfortável no que estava a fazer – porque leio sempre com lápis. Quer dizer é raro passar uma página sem escrever algo na própria página. Uma observação, um comentário. Destacar um trecho para associá-lo com outra ideia em outro livro. Ou anotar o sentido de uma palavra desconhecida em outro idioma. E entendo que o fluxo de meu pensamento, que é lerdo – gosto de ler sentindo a musicalidade de cada frase, e, portanto, pronunciando cada palavra ao menos para o deleite do ouvido interior – necessita de algo lento, sereno como as páginas de um livro. Até o e-mail tenho buscado usar com comedimento. Há poucas pessoas com quem troco correspondência regular. E, em geral, ou sou muito breve, ou escrevo como quem escreve cartas: longos e-mails. Todos esses procedimentos tendem a desacelerar mais a vida. É claro que tendo interesse em música e na edição de imagem e de som, não posso ficar imune ao que se passa em termos de softwares. Mas, aqui, não sou compulsivo. A máquina tem de estar a meu serviço, como ferramenta. Não o contrário. Não preciso ter a última versão de um editor de imagens para editar imagens. Preciso de algo que funcione, que seja conveniente. Como ferramenta, acessório. Não faço distinções ente PC's ou Mac's. São igualmente máquinas que, em si, não se comparam, em termos estéticos, à última máquina de escrever mecânica que tive: uma Olivetti portátil. Parece mais ou menos óbvio que depois de mais de um século produzindo máquinas de escrever o design de algumas delas é estupendo. Produz-se computadores há somente umas poucas décadas. E ainda não vi um único que me chamasse a atenção por sua beleza enquanto objeto. Alguns, é óbvio, conseguem ser mais feios. Quase todo mundo gaba os Mac's pelo design. E tenho um Mac sobre a minha bancada de trabalho. Utilizo-o muito pouco. Acho que vou me desfazer dele. É uma máquina absurdamente feia. Cheia de inconvenientes, como pilhas embutidas no teclado e no mouse - e isso chega a ser anti-ecológico. Com problemas para detectar a rede sem-fio, a cada vez que é desligada. Mas a publicidade faz dos Mac's como que maravilhas aos olhos das pessoas. E a maioria das pessoas cai no conto. Enfim, sobretudo, luto para que o computador não se torne algo imprescindível. Que se possa confeccionar as coisas, sejam elas quais forem – em verso ou prosa, lançando mão de imagens e/ou de sons – sem qualquer fetiche pelo computador enquanto objeto. Tendo bem em mente que ele é tão-só uma ferramenta. E como toda ferramenta, se não bem empregada, pode ser um bocado traiçoeira.

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Uma vez que não mais os temos, em autonomia

Daniel Spoerri, Poèmes en prose, 1959



Por onde retomar o rumo da prosa?


Temos uma inflação de poetas. E alguma boa poesia sai disso. Uma pequena, ínfima parcela. Mas há algo. Há alguma consistência. Gente já consolidada. Outros despontando.

Porém em prosa não há quase nada. Aqui seria possível citar nomes. Mas citá-los também uma injustiça em relação a outros que não entrariam em uma lista extensa.

Digamos que alguns desses romancistas ou contistas podem fascinar alguns críticos.

E até isso de críticos é incorreto, uma vez que não mais os temos, em autonomia de pensamento e idiossincrasia de escolhas, passando ao largo das universidades. Talvez esses autores despertem o interesse de alguns professores, de alguns alunos de pós-graduação, o que é diferente. O que, convenhamos, segue distante de ser uma boa aferição, uma vez que, por essa via, apenas se toma a obra de quem quer que seja para justificar uma ideia previamente mentada por um teórico qualquer – seja ele Barthes, Blanchot, Lacan ou um de todos dentre essa francesada que faz a cabeça de nossos estudantes de pós-graduação nos cursos de Letras e que escreve, em geral, uma prosa ilegível, além de, em geral, porcamente traduzida; mas que, de resto, é muito mais lida que os próprios prosadores em questão.

A verdade é que enquanto há essa inflação de poetas, há também muito pouca gente escrevendo uma prosa minimamente decente no país.

O fato é que, por aqui, não se pode divisar um autor da ressonância e do refinamento estilístico de um Kundera, de um Auster, de um Lobo Antunes, de um Oz, de um Le Clézio, de um Foster Wallace – para nomear uns poucos, em variância, que assomam bem acima da média. Isso para não mencionar a verve do chileno Roberto Bolaño, para arrematar com algo mais próximo de casa.

E parece óbvio que, sem uma prosa forte, a tendência da poesia é a de definhar. Porque não se pode viver só de um modo de escriturar – por mais que as fronteiras entre gêneros sejam lábeis e, para todos os efeitos, uma convenção.

Mas a vida em sociedade é ela própria uma convenção. E a prosa, ao que indica a evidência, prossegue sendo algo distinto da poesia – ainda que esta agregue muito daquela; e aquela muito desta.

O fato de um romance escrito por um “comunicólogo”; ou por um compositor entediado com seu trabalho de músico, que escreve nas horas vagas por distração pessoal; serem alçados à condição de destaque disso nos dá prova.

Prosadores são, via de regra, grandes anticomunicólogos.[1] E é um tanto dessa anticomunicologia, cujo avesso tanto fascina um público muito mais telespectador e/ou ouvinte, o que estamos carecendo.

E aqui também não se menciona uma figura de proa nessa recepção da prosa: o tradutor. Já tivemos quase que uma escola informal de bons tradutores no Brasil. E essa escola se diluiu pela idade avançada ou foi absorvida ou desestimulada pelo bestsellerismo que envolve as escolhas tradutórias do que segue sendo lançado pelas grandes editoras. Essa mesma escola de bons tradutores que, em seu núcleo mais sólido, contava sobretudo com a relevante contribuição de judeus emigrados do porte de um Rónai, de um Carpeaux, de um Guinsburg, de um Schnaiderman, de um Flusser.

Isso tudo nos faz ter saudade de um tempo em que a figura pública do escritor, do romancista, do contista, do tradutor se mantinha muito mais por seus próprios livros. Por seu suor. Pelas horas de embate com a própria linfa da linguagem, no debruçar-se sobre léxicos. Na obsessão de pinçar o termo preciso. No desejo de conseguir algum ritmo. Em horas extraordinárias, necessárias para a artesania, para a confecção de uma prosa, de fato, relevante, mesmo quando só refratada em outro idioma. Distante das câmeras. E assegurada não pelo número de entrevistas ou pelo que o prosador podia, então, eventualmente, suplementar, através dessas entrevistas, palestras ou frequência a feiras de livros, como se sua própria obra fosse incapaz de manter-se sobre o alicerce, sólido, concreto, a carnadura das palavras.

Ou seja, a inata – e adquirida, adestrada – capacidade de destruir uma linguagem para, nesse embate, re-criá-la, como tão bem nos sugere esse gigante transamericano que foi José Lezama Lima.

Será que isso guarda alguma afinidade com o fato de o escritor brasileiro, em geral, ser por um lado também não um nômade, no bom sentido da palavra, mas uma espécie de funcionário público, barnabé, domado pelos procedimentos de desova de artigos imposto pela academia?

Em parte, é possível.


[1] Quer dizer, a comunicação não é algo essencial nem ao romancista, tampouco ao poeta ou ao tradutor (que no caso da poesia há que ser também um poeta). A comunicação é, por seu turno, essencial ao jornalista e ao publicitário. O que não quer dizer que escritores devam buscar deliberadamente uma linguagem obscura ou esotérica. Escritores farejam ruídos. Escritores chutam formas ao gol. Ou como diz Williams, escritores buscam "um matiz de som operando de encontro a uma cachoeira de sentido". Um livro como Tutameia não é fácil de ler. Um escritor como Rosa não opera por comunicação. Mas por magia musical, escuta poética, prestidigitação sintática. E nosso modelo bem poderia passar por Rosa, Graciliano, Zé Lins, Clarice Lispector, Lúcio Cardoso... Não há que ser complacente, aqui. Porque há caminhos por onde derivar, descontinuar...

P.S. – De outro modo, chega a ser bizarro que parte da intelligentzia brasileira nutra tão óbvios preconceitos, torça o nariz diante de escritores tão distintos entre si quanto Foster Wallace – ainda praticamente um desconhecido entre nós – e, sobretudo, J.M.G. Le Clézio, a quem entendem como uma espécie de novo propagador de um esoterismo internacionalista, ao modo de um Paulo Coelho. Ou de um pluralismo transcendental. Certamente, não leram a fundo nem a um nem a outro. Não há no Brasil recente um livro em prosa que passe sequer perto de O Êxtase Material (1967), de Le Clézio. Ou mesmo da Trilogia de Nova York (1987), de Auster. Ou dos ensaios e romances de Foster Wallace. São livros diante dos quais até mesmo o incensado A Hora da Estrela (1975), de Clarice Lispector parece empalidecer. Aliás, convenhamos, apesar de ser Lispector, A Hora da Estrela passa longe de estar entre o que de melhor ela produziu. Um exemplo? Os contos do excepcional volume Laços de Família. Quem diz isso não somos nós; a própria Clarice, em entrevistas, reconhece o quanto sua novela de 1975 tem lá as suas inconsistências. Ou, em resumo, o momento é de um rarefação extrema. O modelo de avaliação imposto à universidade brasileira cavou um apartheid entre universidade e realidade extra-acadêmica. Avalia-se por número. O número de artigos publicados por um professor. Ou pela suposta importância das revistas em que publica. Com honrosas exceções, esses livros de compilação são uma fraude, da qual, no fundo, seus próprios "organizadores" estão a par. Embora façam de conta que não. Do contrário, avaliar deveria passar pela qualidade desses artigos. Não seu número. Em sua vida acadêmica Einstein publicou quatro artigos. Pelos critérios da Capes e do CNPq, seria massacrado. Enquanto isso, escrevem-se teses e artigos a granel. E se pode perguntar: qual a consistência da maioria deles? Em que se fundamentam, para além da própria noção de carreirismo desenfreado em que se converteu a vida de um professor universitário no Brasil?


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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Revolutionary Road

Still de Revolutionary Road, 2008, filme baseado em romance de Richard Yates


Richard Yates

Há aqueles escritores que são lidos na tenra juventude e prosseguem sendo referência pela vida afora. Esse fenômeno deve acontecer a qualquer leitor mais atento ou compulsivo. O das releituras.
No meu caso, Ernest Hemingway [por The Sun Also Rises e os contos], assim como F. Scott Fitzgeral [pelo Great Gatsby, sobretudo, mas também Tender is The Night assim como alguns dos contos] foram decisivos.
É uma prosa que simultaneamente encanta pelo apuro formal bem como por nos fazer compreender melhor a perplexidade desse mundo tão próprio que é a sociedade norte-americana. E não menos pelo intenso apelo visual presente nas memoráveis páginas de ambos.
Num certo sentido, eles foram (e prosseguem sendo) mais importantes e mais divertidos de ler do que, digamos, Joyce.
É claro que Joyce é muito mais experimental e ousado. E, no entanto, há uma espécie de lacuna quando o ponto é dotar os assuntos tratados de uma instância física. A percepção dos gestos em Joyce não chega a ser tão aguda. A prosa em Joyce parece estar menos carregada de vida. Dessa fisicalidade enfeitiçante, que vaza das páginas dos dois autores americanos. Desse êxtase material.
E o que ocorre é que em Hemingway e Scott Fitzgerald, essa instância física – não só do corpo das pessoas, mas da singularidade dos objetos – apresenta-se avassaladoramente ali, presentificada. E, melhor, em geral traduzida em poucas e certeiras palavras. Um efeito difícil de obter. Ausente ou mal posto, deslocado na maioria dos prosadores seja em que idioma. E, quem sabe, uma característica mais de escritores americanos – no sentido mais amplo, que abrange também tudo que está a sul do Rio Grande – do que de seus pares europeus, excessivamente siderados por sistemas abstratos ou firulas filosóficas.
Provavelmente Hemingway seja, nesse aspecto, mais completo que Scott Fitzgerald porque se sai melhor tanto em “locações” urbanas quanto rurais. Enquanto o autor de O Grande Gatsby é demasiado urbano. Há também uma simpatia na prosa de Hemingway por gente pobre, excessivamente velha ou por crianças, que a torna irresistível. Além disso Hemingway se abre a culturas outras, que não a americana. Há o seu fascínio pelas touradas, pelo sul da Europa, por Cuba, pela África, etc. Se é possível pressentir um virtuosismo maior em Fitzgerald, há uma maior verdade em Hemingway. É algo análogo ao que se dá na música entre Mozart e Bach. 
A prosa de Scott Fitzgerald nos revela o jogo do poder. A de Hemingway, o poder do jogo. Em uma há cintilância e sofisticação - e o preço de se chegar até elas. Na outra, há o sol, o mar, o pé descalço; a garrafa de vinho deixada para gelar no leito de um rio basco. E não é à toa que o título na Inglaterra para The Sun Also Rises seja simplesmente Fiesta. Ou que o retrato da "geração perdida", vagando de um a outro café parisiense, escrito por Hemingway, quase um duplo de Fiesta, intitule-se A Moveable Feast [Uma Festa Móvel]. Nas duas prosas há a impossibilidade plena do amor. Em uma há o calhorda que esbofeteia a amante quase por cálculo. Na outra há uma gorda prostituta que ri e se reserva o direito de corrigir a mentira. Ou a fatalidade de uma ferida de guerra que impede sua consumação.
Recentemente, li um romancista americano que segue na mesma linha dos citados acima. Sinestesia pura. Que bebe neles de algum modo. Seu nome é Richard Yates [1926-1992]. Talvez ele seja mais prolixo que os outros dois – e, em especial, do que Hemingway, onde a medida da concisão é extraordinária – mas não menos intenso quanto a essa tradução de gestos para palavras. E ao fato de sua prosa estar firmemente calcada na vida.
Seu primeiro romance, Revolutionary Road [1961] é um primor. O tema recai sobre os conflitos de um jovem casal que busca o sucesso em uma comunidade endinheirada e nova-rica, do subúrbio, na próspera Connecticut, durante os glamurosos anos 50.
Ela tem alguma ambição de ser uma atriz de teatro e conforma-se mal ao papel de dona de casa. Ele mantem um emprego rendoso e burocrático, embora nutra aspirações intelectuais; e de uma forma um tanto desajeitada incentive os esforços dela. Isso, embora, em determinado momento, haja uma inversão de valores: seja ela que mova céus e terra para que se mudem para a Europa, onde ele pudesse desenvolver melhor seus dotes. Eles têm filhos pequenos – um casal –, moram numa bela casa: um gramado, uma colina, árvores, vizinhos. Porém uma série de fatores, que têm muito mais a ver com o egoísmo de cada, entram em conjunção para inviabilizar esse projeto europeu. E o final da história passa longe de um happy end.
Embora na terceira pessoa, a trama é claramente narrada a partir do ponto de vista do marido, Frank H. Wheeler. Trinta anos, bem sucedido, bem apessoado, ele é, contudo, assombrado por uma difícil relação com os pais, já mortos. Assim como pelo fato de haver algo em suas mãos que simplesmente não funciona. Uma espécie de inaptidão para trabalhos manuais. Em certa evocação que ele faz dos pais está, aliás, presente esse mal-funcionamento das mãos e uma certa culpabilidade por conta: "de meia-idade à época de seu nascimento, e já cansados de haverem criado dois outros filhos, eles se foram envelhecendo decididamente mais e mais exaustos à medida que ele os foi conhecendo melhor, até que extenuados de vez, morreram com semelhada entrega, em seus sonos, num espaço de seis meses de um para o outro. Mas nunca houvera nada de cansado nas mãos de seu pai, e nenhum amontoar de tempo e esquecimento turvaram a imagem delas à luz de sua mente".
O livro é exuberante. E inclusive foi adaptado para o cinema. Numa versão um tanto blockbuster, no entanto. Ressalto este aspecto para deixar bem claro que assistir um filme baseado numa obra literária nada tem a ver com lê-la – algo tão moeda corrente entre nós.
Na verdade são duas coisas completamente diversas. Inclusive quanto ao ritmo, a concentração, o suporte, a linguagem (em termos semióticos), etc. Ou seja, nenhum filme, por mais acabado que se apresente, quanto a suplementar uma obra literária, exime o espectador de ler essa obra. Não constitui um sucedâneo dela. Não se pode discuti-la, tomando como base o filme. O filme é outra coisa que não ela. [Aqui, talvez a única exceção a confirmar a regra seja justamente o Journal d'un curé de campagne (1951), o filme de Robert Bresson decalcado do romance de Georges Bernanos].
De outro modo, em vida, Yates  jamais teve a ressonância de Hemingway ou Fitzgerald. Seus livros que mais vendiam, não vendiam mais que 12.000 exemplares e estiveram fora de catálogo até o início da década de 90, quando, então, a partir do esforço de um crítico, foram sucessivamente reimpressos. Inclusive seus contos.  De momento, suas ações conhecem estável alta na bolsa de valores literária. E, embora não os reivindique, Yates assoma como alguém que deriva, de um modo bastante próprio, as lições desses dois mestres da prosa.


* * *

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Como tinha sido tomar nos braços: Auster

 E. McKnight Kauffer, Contact With the World, Use the Telephone, 1934






'The Telephone Ringing Three Times in the Dead of Night'



1.

It was a wrong number that started it, the telephone ringing three times in the dead of night, and the voice on the other end asking for someone he was not. Much later, when he was able to think about the things that happened to him, he would conclude that nothing was real except chance. But that was much later. In the beginning, there was simply the event and its consequences. Whether it might have turned out differently, or whether it was all predetermined with the first word that came from the stranger's mouth, is not the question. The question is the story itself, and whether or not it means something is not for the story to tell.

As for Quinn, there is little that need detain us. Who he was, where he came from, and what he did are of no great importance. We know, for example, that he was thirty-five years old. We know that he had once been married, had once been a father, and that both his wife and son were now dead. We also know that he wrote books. To be precise, we know that he wrote mystery novels. These works were written under the name of William Wilson, and he produced them at the rate of about one a year, which brought in enough money for him to live modestly in a small New York apartment. Because he spent no more than five or six months on a novel, for the rest of the year he was free to do as he wished. He read many books, he looked at paintings, he went to the movies. In the summer he watched baseball on television; in the winter he went to the opera. More than anything else, however, what he liked to do was walk. Nearly every day, rain or shine, hot or cold, he would leave his apartment to walk through the city—never really going anywhere, but simply going wherever his legs happened to take him.

New York was an inexhaustible space, a labyrinth of endless steps, and no matter how far he walked, no matter how well he came to know its neighborhoods and streets, it always left him with the feeling of being lost. Lost, not only in the city, but within himself as well. Each time he took a walk, he felt as though he were leaving himself behind, and by giving himself up to the movement of the streets, by reducing himself to a seeing eye, he was able to escape the obligation to think, and this, more than anything else, brought him a measure of peace, a salutary emptiness within. The world was outside of him, around him, before him, and the speed with which it kept changing made it impossible for him to dwell on any one thing for very long. Motion was of the essence, the act of putting one foot in front of the other and allowing himself to follow the drift of his own body. By wandering aimlessly, all places became equal, and it no longer mattered where he was. On his best walks, he was able to feel that he was nowhere. And this, finally, was all he ever asked of things: to be nowhere. New York was the nowhere he had built around himself, and he realized that he had no intention of ever leaving it again.

In the past, Quinn had been more ambitious. As a young man he had published several books of poetry, had written plays, critical essays, and had worked on a number of long translations. But quite abruptly, he had given up all that. A part of him had died, he told his friends, and he did not want it coming back to haunt him. It was then that he had taken on the name of William Wilson. Quinn was no longer that part of him that could write books, and although in many ways Quinn continued to exist, he no longer existed for anyone but himself.

He had continued to write because it was the only thing he felt he could do. Mystery novels seemed a reasonable solution. He had little trouble inventing the intricate stories they required, and he wrote well, often in spite of himself, as if without having to make an effort. Because he did not consider himself to be the author of what he wrote, he did not feel responsible for it and therefore was not compelled to defend it in his heart. William Wilson, after all, was an invention, and even though he had been born within Quinn himself, he now led an independent life. Quinn treated him with deference, at times even admiration, but he never went so far as to believe that he and William Wilson were the same man. It was for this reason that he did not emerge from behind the mask of his pseudonym. He had an agent, but they had never met. Their contacts were confined to the mail, for which purpose Quinn had rented a numbered box at the post office. The same was true of the publisher, who paid all fees, monies, and royalties to Quinn through the agent. No book by William Wilson ever included an author's photograph or biographical note. William Wilson was not listed in any writers' directory, he did not give interviews, and all the letters he received were answered by his agent's secretary. As far as Quinn could tell, no one knew his secret. In the beginning, when his friends learned that he had given up writing, they would ask him how he was planning to live. He told them all the same thing: that he had inherited a trust fund from his wife. But the fact was that his wife had never had any money. And the fact was that he no longer had any friends.

It had been more than five years now. He did not think about his son very much anymore, and only recently he had removed the photograph of his wife from the wall. Every once in a while, he would suddenly feel what it had been like to hold the three-year-old boy in his arms—but that was not exactly thinking, nor was it even remembering. It was a physical sensation, an imprint of the past that had been left in his body, and he had no control over it. These moments came less often now, and for the most part it seemed as though things had begun to change for him. He no longer wished to be dead. At the same time, it cannot be said that he was glad to be alive. But at least he did not resent it. He was alive, and the stubbornness of this fact had little by little begun to fascinate him—as if he had managed to outlive himself, as if he were somehow living a posthumous life. He did not sleep with the lamp on anymore, and for many months now he had not remembered any of his dreams.

Paul Auster [The New York Trylogy (A Trilogia de Nova York), © Paul Auster, 1987]



'O telefone tocando três vezes na calada da noite'


1.


Foi um número errado que começou a coisa, o telefone tocando três vezes na calada da noite, e a voz do outro lado da linha chamando por alguém que não era ele. Muito depois, quando foi capaz de pensar a respeito das coisas que lhe ocorreram, concluiria que nada fora real exceto o acaso. Mas isto foi muito depois. No princípio, era apenas o evento e suas consequências. Se as coisas poderiam haver tomado um outro rumo, ou se tudo fora predeterminado pela primeira palavra a sair da boca do estranho, não é a questão. A questão é a história em si. E se o evento significa ou não algo não é da história a ser contada.
Quanto a Quinn, há pouco em que nos deter. Quem ele era, de onde veio, e o que fez não agregam muita importância. Sabemos, por exemplo, que tinha trinta e cinco anos. Sabemos que um dia fora casado, que um dia fora pai, e que tanto sua esposa quanto seu filho já estavam mortos. Também sabemos que escrevia livros. Para ser preciso, sabemos que escrevia romances de mistério. Essas obras eram escritas sob a rubrica de William Wilson, e ele os produzia a um média de um por ano, o que fornecia o dinheiro suficiente para viver modestamente num pequeno apartamento em Nova York. Porque ele não gastava mais do que cinco ou seis meses em um romance, estava livre o resto do ano para fazer o que bem entendesse. Lia muitos livros, apreciava pinturas, ia aos filmes. No verão, assistia ao beisebol na televisão; no inverno seguia à ópera. Mais do que qualquer coisa, no entanto, o que ele gostava de fazer era caminhar. Quase todo dia, sob chuva ou sol, calor ou frio, deixava seu apartamento para caminhar pela cidade—nunca de fato indo a lugar algum, mas simplesmente seguindo para onde suas pernas entendiam conduzi-lo.
Nova York era um espaço inesgotável, um labirinto de passos sem fim, e não importa quão distante fosse, não importa o quanto viesse a conhecer as vizinhanças e suas ruas, experimentava sempre o sentimento de estar perdido. Perdido, não só na cidade, mas dentro de si por igual. A cada vez que saía a caminhar, sentia como se estivesse deixando-se para trás, e ao entregar-se ao burburinho das ruas, reduzir-se a um simples olho alerta, apto a escapar da obrigação de pensar, e isto, mais do que qualquer coisa, trazia-lhe uma medida de paz, um salutar vazio consigo. O mundo estava fora dele, a seu redor, adiante, atrás, o ritmo que seguia cambiando possibilitava-lhe obsedar-se menos com o que quer que fosse por um longo lapso. Mover-se estava na essência, o ato de pôr um pé depois do outro e permitir-lhe seguir o fluxo de seu próprio corpo. Por caminhar sem destino aparente, todos os locais tornavam-se iguais, e não importava aonde ele estivesse. Nas suas melhores caminhadas, ele podia pressentir que estava alhures. E isto, enfim, era o que ele demandava das coisas: estar alhures. Nova York era o alhures que ele construíra à volta de si, e ele concluíra que não tinha qualquer intenção de deixá-la novamente.
No passado, Quinn havia sido mais ambicioso. Quando mais jovem publicara vários livros de poesia, havia escrito peças, ensaios críticos, e trabalhado num vasto número de traduções. Mas quase abruptamente, deixara tudo isso de lado. Uma parte dele havia morrido, disse aos amigos, e ele não queria ser assombrado por essa morte. Foi por essa época que assumiu o nome de William Wilson. Quinn não era mais a parte dele que podia escrever livros, e embora em muitos aspectos Quinn continuasse a existir, não existia senão para si próprio.
Ele continuara a escrever porque era a única coisa que pensava que podia fazer. Romances de mistério pareciam uma solução factível. Ele não tinha maiores problemas em inventar as intrincadas tramas que eles requeriam, e ele escrevia bem, com frequência a despeito de si, como se não dispendesse naquilo qualquer esforço. Porque não se considerava o autor do que escrevia, não se sentia responsável e portanto pouco compelido a defender aquilo em seu coração. William Wilson, no fim de tudo, era uma invenção, e mesmo que houvesse nascido do próprio Quinn, levava agora uma vida própria. Quinn tratava-o com deferência, por vezes até admiração, mas ele nunca chegava ao ponto de acreditar que ele e William Wilson eram o mesmo homem. Era por isso que ele nunca emergia além da máscara de seu pseudônimo. Ele possuía um agente, que nunca encontrara. Seus contatos limitavam-se a cartas, para cujo propósito Quinn alugara uma caixa postal numerada numa agência dos correios. O mesmo estendia-se ao editor, que pagava todos os honorários, verbas e royalties a Quinn através do agente. Nenhum livro de William Wilson incluía uma foto ou uma nota biográfica do autor. William Wilson não se encontrava incluído em nenhum catálogo de autores, não concedia entrevistas, e todas as cartas que recebia eram respondidas pela secretária de seu agente. Até onde Quinn podia contar, ninguém sabia de seu segredo. No princípio, quando seus amigos souberam que deixara de escrever, indagaram-lhe como planejava viver. Ele sempre lhes respondia a mesma coisa: que herdara um fundo de previdência de sua esposa. Mas em verdade sua mulher nunca tivera dinheiro. E em verdade ele não tinha mais amigos.
Agora se haviam ido mais de cinco anos. Ele já não pensava muito em seu filho, e só recentemente havia retirado o retrato de sua mulher da parede. De vez em quando, ele sentia súbito como tinha sido tomar nos braços uma criança de três anos—mas isto não era exatamente um pensamento, nem sequer uma lembrança. Era uma sensação física, um carimbo do passado que havia permanecido em seu corpo, e sobre o qual ele não tinha controle. Esses momentos sobrevinham com menos frequência agora, e em geral as coisas como que pareciam mudar para ele. Não mais desejava estar morto. Ao mesmo tempo, não se pode dizer que estivesse satisfeito de estar vivo. Mas ao menos ele não se ressentia. Estava vivo, e a insistência desse fato havia pouco a pouco começado a fasciná-lo—como se ele houvesse sobrevivido a si próprio, como se ele houvesse obtido de algum modo uma vida póstuma. Não mais dormia com a luz acesa, e por meses a fio era incapaz de lembrar-se de seus sonhos.



* * *