[s/i/c]
A Revolução Tranquila [¹]
As motocicletas estão chegando. Primeiro aos poucos. Depois, nem tanto. O sol ainda não saiu. A república do essencial conversa a observar a nova cidade que está sendo erguida. Ela é feita pelas mãos de alguns dos motociclistas. O que produzimos é secundário diante dessa essencialidade que é morar. Ter uma gruta. Toldo mais bem fechado a zíper de tijolos, que deixa de fora chuvas e ventos.
Você ouve os barulhos da cidade. E eles, de momento, são de marretas, maçaricos, bombas, betoneiras.
Um dia futuro dirão que vivemos os tempos da inocência digital. Da segunda ilustração. Da segunda Renascença. Tempo de partilhas e delicadezas. De enciclopédias livres, arquivos de música e imagem à disposição do usuário da Sibéria à Patagônia. E duas décadas em que a disciplina capitalista penou para pôr preços nisso tudo e segmentar melhor uma mercadoria ainda mais abstrata. Em que a ilustração esteve mais à mão de todos, justo porque o mercado deu com uma mercadoria ainda mais dobrada sobre si. Colhido de surpresa diante do inesperado. Do imponderável. Do impossível de se tocar com a ponta dos dedos. E, despreparado, assistiu a derrocada de impérios da música. E pop-stars serem atropelados pelo dinheiro dos jogadores de futebol.
E foi nesse ínterim que o Brasil viveu sua revolução.
Ainda ontem, caminhando supermarcado pelo sol da manhã, do supermercado para casa, ao passar em frente a uma de todas as construções que se erguem por um bairro que mais se assemelha a um canteiro de obras, aquele enxame de motocicletas. Bem podia ser uma convenção de motociclistas. Mas não. Eram as motocicletas dos peões da obra, Hells Angels vindos da Jurema, de Maracanaú. Eles agora podem comprá-las, revendê-las. Passear nelas nas horas de folga. E a cidade segue entupindo-se de veículos até o gargalo do gargalo.
A classe-média, nova ou velha, reluz seus lustrosos zeros quilômetros ao sol. Ostenta seus iphones. E muito se tem falado dos malefícios dessa verdadeira explosão automobilística, total falta de infra-estrutura dos transportes públicos ou da ubíqua superfluidade da informação. No Dia Mundial Sem Carro, vereadores seguiram de bicicleta para a Câmara. Como são abnegados! Eles fazem isso uma vez por ano. Embora ninguém noticie como eles chegam até a Praça da Imprensa para, então, devidamente sob as câmeras dos canais de TV, tomar seu legislativo rumo.
Logo, efetivamente, quase nada se tem feito. Tanto no plano pessoal – pois mesmo os que reclamam do automóvel ou da informação supranumerária são seus usu(r)ários mais recorrentes (e até que ponto é possível deixar de sê-lo?) – quanto, o que é bem pior, no plano coletivo.
Os sistemas de metrô são irrisórios. Os já implantados, tímidos, mesquinhos diante da monstruosa escala das megacidades, como em São Paulo. Do Rio, nem falar: ainda uma incipiência. Ou, quando em construção, eles estão mais para poços de pré-sal da corrupção e procrastinação, que beiram certo sado-masoquismo masturbatório tão a gosto de nossa ilustrada elite, como em Brasília ou Fortaleza.
Não há ciclovias. Ou vontade política de tomá-las a sério. Tanto por parte da população, como do poder público. E haveria categoria profissional mais acomodada, pouco criativa e preguiçosa que a dos estudantes universitários? Eles morrem para ir às aulas de carro: por que reclamariam ciclovias ou boicotariam automóveis? Por que seriam criativos entre si e consignariam uma extensa rede de caronas solidárias ao mesmo tempo que formariam comissões para pressionar rotundos deputados e vereadores nas respectivas Assembleias e Câmaras? Por que pressionariam por metrôs, tramways, vlts, corredores de ônibus articulados? E há tempo para isso, se todos posam de personalidade no Twitter, a revelar ao mundo a que horas voaram para Recife ou foram passar o feriado no Porto das Dunas? Ou o que ganharam na promoção da Peugeot? [²] Quanto tempo até considerarem que as coisas realmente relevantes feitas na vida de cada ser humano não podem ser postas num CV? Ou qual o mérito de tantos encontros e colóquios país afora se a vida fica do lado de fora dessas conversas?
No plano da informação, tome-se um portal como O Uol e verifique-se o quanto ele amoldou-se ao gosto mais amplo e plano da recém-classe média. Ou o quanto há de supérfluo e tabela de consumo no leque de informação que ostenta na sua folha de rosto: “Teste para cheerleaders corintianas tem fanatismo, tombos e código para boas meninas”; “Estimular cérebro com eletricidade acelera aprendizado, diz estudo”, “Análise mostra as semelhanças entre iPad 2 e Galaxy Tab”; “Casados, Paulo Vilhena e Thaila vivem em casas separadas”; “Gigantes, girafas se abaixam para comer nas mãos do tratador”; “Em Fina Estampa, Antenor rouba beijo de Patrícia” “Falta de vacinação de adultos impulsiona surto de coqueluche”; “Rihanna vai até a sacada de hotel no Rio usando pijamas”.
Poderia ser diferente?
Outrossim, todos sabemos que enquanto cérebros são estimulados pela eletricidade; parlamentares de siglas obscuras preenchem sua cota de segundo escalão com afilhados sem preparo profissional; girafas se abaixam para comer; Antenor rouba um beijo de Patrícia; posseiros são mortos como piolhos no sul do Pará; e Riahanna e seu pijama deslocam-se até a sacada do hotel carioca; uma revolução silenciosa se processa país afora. Uma revolução que atravessa todo o dia o país. Aparentemente de pijama. Mas paramos muito pouco para nos dar conta dela. Ainda que, por sua conta, dentro em breve, categorias profissionais inteiras, como a das empregadas domésticas, sigam desaparecendo.
Uma das luzes cultivadas nas brenhas dos anos de chumbo foi o cuidado que os militares – os mais esclarecidos dentre eles, é verdade, como Golbery & Cia – tiveram com a infra-estrutura. Rasgaram estradas. Construíram hidrelétricas. Modernizaram portos. Ergueram e ampliaram aeroportos. Deram deciso impulso à nossa indústria aeronáutica - que é, hoje, uma das mais sofisticadas e competitivas do planeta. Fomentaram projetos estratégicos que possibilitaram ao Nordeste e ao Norte uma industrialização e um crescimento que segue, de momento, acima da média do país – casos de Pernambuco e do Ceará, que cresceram mais de 8%, em 2010. Então, parece óbvio: o principal gargalo a entravar um crescimento mais amplo e equitativo da república brasileira é, de momento, a morosidade, os entraves, a corrupção e a degradação ambiental em torno dos projetos de infra-estrutura, que simplesmente andam a passo de tartaruga. E é essa incapacidade de infraestuturar-se que impede um crescimento e uma expansão ainda mais dinâmica da economia brasileira.
O império do kitsch, o denuncismo profuso como herança de uma esquerda que já não tem uma ditadura para culpar (embora não haja dado conta disso), o crédito pequeno e fácil, o portentoso enriquecimento de poucos, o suor de muitos. O carreirismo desenfreado, o pseudointelectualismo na academia, a rigidez dos títulos, a complacência da teoria. A teoria a serviço de si mesma. A inadequação de teorias e categorias importadas acriticamente. De todo um mundo incapaz de seguir para além dos muros do campus – ainda que esses sejam acossados pelos medonhos condomínios verticais, que sobre eles debruçam seus estacionamentos alpendrados e indigentes áreas de lazer para uma infância cada vez mais sequestrada ao rio, à flora, à fauna, ao futebol de várzea, ao quintal, ao açude, ao curral, à serra, ou à lenta comunidade das farinhadas e despescas.
Quanto mais houver espaço para a suavização das desigualdades regionais e sociais, todos sairão ganhando. Ainda sob a égide da perda de delicadas formas regionais de fala, escuta e convivências. Se o modo de se atingir isso passa por certas degradações temporárias – tanto estruturais quanto culturais –, elas não devem, no entanto, passar incólumes, sem escrutínio. E nesse entreato, é necessário que Shakira e Luan Santana, Claudia Leitte e Restart, Michel Teló e Nx Zero comandem a folia, e toquem até os dígitos se confundirem e emergir um terceiro excluído: uma classe média que, devidamente educada, inclusive musicalmente, resolva destruir seus antigos ídolos de barro e parca coreografia.
A classe C, motor dessa revolução silenciosa, ao atingir ser consumidora, também sofisticará, progressiva e penosamente, seus gostos. Pacotes turísticos para os Estados Unidos, Iquitos, Bariloche, Aruba. O sabor da uvaia, do mirtilo, dos bombons de cupuaçu, do alfajor. O estilo de mise-en-scène das telenovelas. As posturas do Pilates. A conjugação de certos verbos irregulares em francês. Mais além, fará pressão por melhores escolas, hospitais, transporte. Porque efetivamente precisará – por vezes desesperadamente – disso. De forma concreta.
Uma das fontes de esperança do país está investida nessa necessidade. Nessas mulheres que, graças a seu próprio suor, são cada vez menos faxineiras, cozinheiras. São independentes e guerreiras. Nesses homens que fazem cada vez menos biscate e passeiam certa auto-suficiência sobre motocicletas. Até que a curva do consumo estabilize uma classe. E conquistas se convertam em rematada acomodação nova-rica. Como no Québec, na Espanha, em Portugal.
O problema não é bem esse, no entanto. Desde que nossa criatividade vem de, com alguma sorte e algum improviso (às vezes involuntário), não sermos “cópias”, “traduções” ou "decalques" dessas velhas sociedades europeias, mas um derivativo de luz bem mais própria e com possibilidades muito mais amplas de descontinuá-las.[³]
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[¹] É por tudo isso que a expressão Revolução Tranquila [Révolution tranquile ou Quiet Revolution], utilizada para designar os movimentos modernizadores -- ou pós-modernizadores, se o gosto do freguês vem por Lyotard -- do Québec na década de 60, rompendo com anos de imobilismo oligárquico comandada pelo personalismo de Maurice DuPlessis e pela ala mais reacionária da Igreja Católica, cai como uma luva para designar dois momentos recentes, imbrincados, que experienciamos na carne e no espírito, atônitos: a própria revolução digital e a revolução brasileira, as quais abriram as perspectivas de consumo (inclusive cultural) e interação a milhões de pessoas. Isso não implica, no entanto, que ambas (e muito especialmente a segunda) tenham sido oceanos pacíficos nos sete mares da política convivência. Mas de os efeitos alcançados -- a despeito de enormes, grotescas imperfeições -- não comportarem, em seu processo, os grandes gestos palinódicos e sectários ou a sangrenta violência dos processos revolucionários do século passado. A violência, claro, está lá. Mas com outros rostos. E, com um pouco de sorte, sem o personalismo fascisto-comunistóide dos ridículos ditadores, grandes timoneiros. A revolução brasileira, a despeito das bases econômicas lançadas por PSDB's e PT's será, sempre e acima de tudo, uma conquista das classes indigentes, que passaram a consumidoras muito mais por esforço próprio e ao largo do assistencialismo das políticas públicas. Elas revelam, de outro modo, o imenso, subestimado potencial empreendedor da feirante que vende confecções, da sacoleira, do pequeno empresário, do comerciante do subúrbio, do mototaxista, etc.
[²] Ao que parece o que os jovens almejam no Twitter e outras rendas sociais são formas de comunicação outras, desesperadamente novas, que buscam codificação e cifra a todo custo, e que ainda não entendemos. E, portanto, tudo que se diz sobre elas parece precipitado, no mínimo. Que há nelas largo coeficiente de escapismo [do tipo "Inocentes do Leblon"] e matéria datada -- prestes a ser convertida em cemitérios e nostalgia -- no entanto, disso ninguém duvida. Pode-se ter essa sensação ao passar por redes sociais que começam a cair em desuso, como o Orkut - um insucesso em quase qualquer lugar à exceção da Índia e do Brasil. Ou então, quando, numa rede social, chega-se ao perfil de alguém que já morreu e, logo, dá-se aquele estranho contraste entre a supérflua imediatez das mensagens e a inexorabilidade da morte. Pois um dos aspectos mais atraentes nas novas mídias é a possibilidade praticamente universalizada de reverter processos e efeitos.
[³]Ou seja, de descontinuá-las para melhor, pois alguns de nossos traços históricos e culturais já nos asseguraram melhores trunfos societários em alguns aspectos. A miscigenação étnica, cultural é algo no qual estamos anos-luz à frente deles. É algo original e nosso, quando se pensa na xenofobia, na má-vontade de aceitar a outridade -- caso entre outros da forma torpe como é conduzida a convivência com os imigrantes, em particular os muçulmanos na França e um pouco por toda parte --, no avanço dos partidos de extrema-direita por todo a Europa. Ou no crescente receio dos Estados Unidos diante dos imigrantes latinos. Ou no recente massacre na Noruega. Quando se pensa que um dos maiores porta-vozes da cultura brasileira, Machado de Assis, é considerado "o maior escritor negro" pelo renomado crítico norte-americano Harold Bloom se colhe a exata noção disso. Não há espaço na mentalidade norte-americana para a categoria mulato -- ao menos como nós a entendemos. Quer dizer, existe a palavra em inglês [mulatto], mas ela reverbera outras coisas. Diferentes das que ecoa para nós. Há um forte receio de miscigenação ao redor da palavra mulato em inglês. Há um desejo de que ela seja sinônima de híbrido -- já que o híbrido não reproduz. Esse receio, como bem ensina Gilberto Freyre, já perdemos há muito tempo. Foi isso, aliás, o que possibilitou, já há cem anos atrás, que o maior expoente de nossa cultura, literariamente falando, seja um mulato. E isso dá testemunho do vigor que ela irradia.
[²] Ao que parece o que os jovens almejam no Twitter e outras rendas sociais são formas de comunicação outras, desesperadamente novas, que buscam codificação e cifra a todo custo, e que ainda não entendemos. E, portanto, tudo que se diz sobre elas parece precipitado, no mínimo. Que há nelas largo coeficiente de escapismo [do tipo "Inocentes do Leblon"] e matéria datada -- prestes a ser convertida em cemitérios e nostalgia -- no entanto, disso ninguém duvida. Pode-se ter essa sensação ao passar por redes sociais que começam a cair em desuso, como o Orkut - um insucesso em quase qualquer lugar à exceção da Índia e do Brasil. Ou então, quando, numa rede social, chega-se ao perfil de alguém que já morreu e, logo, dá-se aquele estranho contraste entre a supérflua imediatez das mensagens e a inexorabilidade da morte. Pois um dos aspectos mais atraentes nas novas mídias é a possibilidade praticamente universalizada de reverter processos e efeitos.
[³]Ou seja, de descontinuá-las para melhor, pois alguns de nossos traços históricos e culturais já nos asseguraram melhores trunfos societários em alguns aspectos. A miscigenação étnica, cultural é algo no qual estamos anos-luz à frente deles. É algo original e nosso, quando se pensa na xenofobia, na má-vontade de aceitar a outridade -- caso entre outros da forma torpe como é conduzida a convivência com os imigrantes, em particular os muçulmanos na França e um pouco por toda parte --, no avanço dos partidos de extrema-direita por todo a Europa. Ou no crescente receio dos Estados Unidos diante dos imigrantes latinos. Ou no recente massacre na Noruega. Quando se pensa que um dos maiores porta-vozes da cultura brasileira, Machado de Assis, é considerado "o maior escritor negro" pelo renomado crítico norte-americano Harold Bloom se colhe a exata noção disso. Não há espaço na mentalidade norte-americana para a categoria mulato -- ao menos como nós a entendemos. Quer dizer, existe a palavra em inglês [mulatto], mas ela reverbera outras coisas. Diferentes das que ecoa para nós. Há um forte receio de miscigenação ao redor da palavra mulato em inglês. Há um desejo de que ela seja sinônima de híbrido -- já que o híbrido não reproduz. Esse receio, como bem ensina Gilberto Freyre, já perdemos há muito tempo. Foi isso, aliás, o que possibilitou, já há cem anos atrás, que o maior expoente de nossa cultura, literariamente falando, seja um mulato. E isso dá testemunho do vigor que ela irradia.
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