sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Muito mais que esses quinze minutos


Francis Bacon, Study of a Dog, 1958


Carlos e eu


Não gosto de lembrar de Carlos. Não gosto da palavra trauma. Mas o que aconteceu entre nós, percebo hoje, foi quase isso. 

 Já tive namoradas. Reparti o mesmo espaço com uma mulher por anos, em duas ocasiões. E sei dos infernos e delícias disso. A todas prezo. Mesmo ao lembrar os momentos de maior azedume.

Mas o que ocorreu entre Carlos e eu foi um bocado forte. 

 Em 1999, precisava de um sítio isolado. Sair da bagunça de São Paulo, com suas permanentes tentações boêmias, para algo menos frenético. E para escrever um texto longo: a tal tese de doutoramento. Uma colega de turma, da PUC, me sugeriu um apartamento, em Florianópolis, que podia me alugar a um preço acessível.  

Na verdade, o imóvel era em Canasvieiras, uma praia que vaza argentinos pelo ladrão e outras gentes de sortidas nacionalidades e distintas paixões futebolísticas. Isso no verão. No inverno, é uma ilha de isolamento dentro da Ilha de Santa Catarina. 

O nome original de Florianópolis é Desterro. E chega ser uma ironia que a homenagem ao nosso segundo presidente, Floriano Peixoto, um caudilho no melhor estilo Latinoamérica, lhe tenha legado esse nome solar, floral, exuberante – não raro abreviado carinhosamente para Floripa. E, em especial, se contraposto à melancolia exílica de Desterro.  

 Mas era de um desterro do que eu precisava. E os preços dos aluguéis em Canasvieiras despencavam no inverno. E o espaço era bom. Um apartamento no térreo, com o mar quebrando a menos de cem metros adiante, uma pequena ilhota no horizonte, duchas aquecidas, boa mobília, servidor de internet 24hs, televisão a cabo…

Mudei-me.

 As novidades dos primeiros dias. Comprei um caniço de pesca. E às vezes pescava na madrugada. Nunca havia vivido à beira-mar no Sul do Brasil. Ou seja, naquelas costas em que o resto mínimo de floresta atlântica, densa e viçosa, agarrada ao lombo das serras, literalmente mergulha no mar. E adiante se entrevê ilhotas pontuando o horizonte. Achava aquilo lindo. De uma beleza diferente das praias de dunas ou falésias barrentas do litoral do Nordeste. Quase peladas de vegetação – a não ser por coqueiros, bredos, cajueiros-da-praia ou manguezais de quando em vez.  

E quinze dias depois morria de tédio. 

Passava o dia lendo e escrevendo. Havia apenas um vizinho, que morava no terceiro e último andar do prédio, e cujas janelas davam para a rua oposta à praia. Às vezes, quando saía para comprar cigarros na birosca mais próxima, sua filha – e era uma bela adolescente – trocava carícias com o namorado na pequena, sombria, escadaria de entrada. E o casal se continha um pouco e me cumprimentava protocolarmente em meio à penumbra. 

Gosto de solidão. Acho que todos tem direito a seu quinhão de estar sozinho por pelo menos quinze minutos ao dia. O mundo seria menos selvagem. Talvez. O que sei é que até hoje cultivo muito mais que esses quinze minutos, dia após dia. Mas nessa época eram quase as 24hs. Na íntegra. Sem direito a diálogos, nem que de plano e contraplano. 

Por vezes, me revoltava contra esse desterro. Tomava o ônibus e cortava os 27 Km de belas paisagens até Florianópolis propriamente dita. A cidade, mesmo no inverno, possuía uma vida moderadamente pulsante, à noite. Especialmente nos fins-de-semana. 

Mas logo numa dessas primeiras noites de revolta contra o tédio, dei com meu vizinho numa danceteria. Ele se chamava Rui, assim com “i”; e era um advogado bem sucedido. Tinha quase mais que a meia-idade. E se encontrava tão expansivo, que volta e meia era repreendido, debalde, pela esposa. Rui já se encontrava naquele estágio bebum de quem não ouve mais ninguém a não ser a si próprio. De quem fala e ouve pelos demais. Quem não conhecesse Rui, ou visse apenas seu vulto em meio a semi-obscuridade multicor da pista de dança, julgaria tratar-se de um adolescente. Um tanto corpulento. Mas ainda assim um adolescente.

Ao fim da noite, Rui insistiu – e não pouco – para que eu voltasse de carona com eles até Canasvieiras. Fui, um tanto a contragosto, para não ferir suscetibilidades entre vizinhos que mal se viam e não tinham outros vizinhos. 

O problema é que logo à saída do clube, Rui jogou seu carro na traseira de outro. E, como todos sabemos, advogados não perdem causas no Brasil se a pendência se dá com eles. Ainda quando bêbados e sem razão. E, quando eu estava observando a cena, em desolamento, Rui, achegou-se aos trancos, abraçou-me, como a um velho amigo, e disse: “Xará, você vai ser meu testemunho. O caso tá ganho”. 

Mas a coisa não era tão simples. Seria preciso aguardar a Perícia de Trânsito, sempre morosa. E, enquanto isso, a mulher de Rui lhe enfiava uma garrafa de café amargo goela abaixo na esperança de que ele se recompusesse um pouco. Ou ao menos cambaleasse menos. E, sabendo que a responsabilidade pelo incidente fora inteiramente de meu “xará”, dei um jeito de esquivar-me. E voltei de táxi para Canasvieiras. 

O episódio, não só estremeceu um tanto a relação entre os vizinhos, como também me retirou o gosto pelas noitadas em Floripa. Quando muito ia ao cinema ou a um café. E voltava cedo, ainda no horário dos ônibus. Isto é, antes de onze. 

Percebendo meu excesso de isolamento, uma conhecida, professora de antropologia na Federal de Santa Catarina, propôs-me adotar um cachorro. É que sua cadela, uma labrador, tivera ninhada. 

Disse que não, quase automaticamente. Em criança, à exceção de alguns pássaros, que cedo se foram, e de um coelho que vivia escondendo-se atrás de uma caixa de madeira, no quintal, nunca tivemos animais de estimação.

 Mas certa tarde ela apareceu com o pequeno cão. E era tão pequeno e tão belo. Tinha os olhos tão doces, e um modo de erguer a cabeça assim com a suavidade de quem pede entregando, que não pude resistir. O cãozinho dormiu na sala, a primeira noite, numa caixa com trapos, um pouco de água e comida. Ainda assim gemia. E não sei porque cargas d’água comecei a me preocupar com os gemidos daquela criatura. Ainda cogitei devolvê-lo na manhã seguinte. Mas a doçura de seus olhos nunca que deixariam. E, assim, armei um nicho para ele rente ao balcão da cozinha.

Pus-lhe o nome de Carlos. Em homenagem a Drummond e Williams. Talvez Drummond e Williams não tivessem a doçura dos olhos do meu Carlos. Mas o meu Carlos, a seu modo, podia ser tão poeta quanto os outros dois. Ao passearmos pela praia, por exemplo. Ele, sempre comedido, até na alegria. No perseguir o bando de gaivotas. Ou do contrário no rosnar piano para um bêbado que certa vez aproximou-se com um porrete na mão mascando ameaças desconexas. 

Era também um cão de uma natural inclinação para disciplina. Perto de nosso horário de caminhada, pela manhã, se eu não ia até ele, postava-se ao lado de minha cadeira. Sentado, em circunspeção. E, por vezes, me entrolhava. Mas sem transparecer aborrecimento. Apenas com aquela insinuação tácita no negro dos olhos: “você não vê que está atrasado? Não vê que tem ficado demais com esses livros e a praia nos espera lá fora?” 

Carlos era um lindo cão. Um labrador de porte. Pelo branco-gris. Patas traseiras bem constituídas. Havia uma nobreza em seu sentar. Ou no ganhar corrida pela areia úmida, sempre embalando, de pouco mas continuadamente, a velocidade. Havia em sua personalidade a inata qualidade do cuidar. Do cuidar sem reclamos. Sem ter de puxar algo de volta. Fosse o carinho do dono, fosse o biscoito canino mais raro que sua usual ração, fosse uma nova coleira, porque a anterior ficara pequena para sua compleição. Ele ainda crescia.

E assim, com essa mesma têmpera, vi-o ficar adolescente. E recém-adulto.

 Não que ele fosse um santo. Uma ocasião, entendeu de ficar cercando e pulando em torno de um siri já na calçada do prédio. Eu tinha o que fazer. E quando o pus para dentro de casa, à força e com alguns tapinhas nas ilhargas. Amuou-se. Passou dias assim. Embora sempre cumprindo seus deveres de companheiro de caminhadas e seus horários habituais. Reservou-se. Correu mais lentamente para apanhar os gravetos. Passou ao largo das gaivotas.  

 Eram dias longos. Abreviados pelo cedo do entardecer sobre as ondas. O hotel, erguido em estilo balneário francês, sugeria que estávamos numa estação termal ou algo assim. Havia molhes e traineiras. Uma bela restinga, que, na baixa-mar mal fendia a praia até a angra. Era sobrelevada por uma ponte de madeira, que, às vezes, atravessávamos se a caminhada para mais longe se estendia. E tudo isso ele observava com a densidade alerta de seu olhar.

A última vez que vi Carlos, ele estava sentado sobre si, naquela postura que só ele tinha, no amplo bagageiro de uma vagonete Renault da família que o adotara. Eu tinha de tornar a São Paulo e ele não poderia seguir comigo. 

 Havia em seu olhar negro, úmido, uma chispa de acusação. De desdém, talvez. Que só não eram maiores que a inata bondade.

Tive outras namoradas. E duas mulheres. Amigos. Inimigos. Li uns tantos outros livros. Nunca plantei uma árvore. Me nasceram duas filhas. Morei outras cidades. Visitei outros países. Escrevi a tal tese.

Por causa de Carlos, jamais tive outro cão. 

Não sei se ainda vive. 



* * *

2 comentários:

  1. Tenho um labrador. Sei exatamente como é. Não me desfaço dele por nada. Mas também... nunca mais. :)

    Que belo texto!

    Abraço.

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  2. Ruy, meu caro Ruy...
    Belíssimo.
    Abraços.

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