sábado, 21 de julho de 2012

Condomínio Eurídice




um oceano com alzheimer, querido: plácido, sem ondas, ideal para se brincar de nadar ao modo do tanque na fazenda dos avós. pés ante pés de água esquecidos das terras que lamberam, das quilhas que os chagaram. e onde não foram bem-vindos, a sandália da onda enxotou da sola qualquer resquício, para que não se misturassem os sóbrios e os insanos sob as mesmas árvores à praia. mas agora, que a sombra e o corpo têm algo em comum - a temperança, o riso - evade-se do esquecimento à crista rubra da onda, sob a primeira réstia, um nome (qual mesmo? - ela indaga) enquanto o galo escava o dia com a aspereza de esporas.
*
Às vezes, ia até o pequeno apartamento dela sem nenhum propósito. Era raro.
Deitava-se um pouco. Sentia o cheiro dos panos. Remexia nas gavetas: cartas, postais, fotos. E deixava as coisas numa perfeição incondicionada: copos e pratos lavados, cortina semi-cerradas. Exatamente como quando se encontravam, em outro dia da semana, e a presença dela.
A noção de tudo estar no lugar sob a penumbra, bem vincado nos armários. O aroma de imaculada ordem, limpeza. Mas também de algo indizível: uma espécie de cheiro de mulher ambiente.
Certa tarde, após um almoço de negócio e uma dose com amigos, largado na poltrona, o nó da gravata lasso, revirava um livro com a caligrafia dela nas observações, e uma flor aromática desidratada, em cheio, nas costuras. O disco na vitrola revirava trompetes. O trânsito a seguir ao largo, tenso, muito lá abaixo e branco. Embora às vezes reverberasse tênue, nos vidros da janela.
Foi quando a fechadura deu o alarme. Ele estava na própria saleta, sem sapatos. Convulsionou-se e ergueu-se a meio. Ligeiramente tonto. Sabia, não podia ser a faxineira. Mas de lá não arredou: respiração entrecortada; olhar longo, de flagrante, rumo a porta.
Porém não era ela, senão uma jovem loira, abundante - uns dois anos a diferença? - ligeiramente sobremaquiada.
Tomaram café no balcãozinho da cozinha. Virados para os azulejos da parede. Uma nesga de cidade doze andares lá fora.
A loira, casada, era amante do atual marido da inquilina. Eles eventualmente encontravam-se por lá, também. Do mesmo modo que eles outros. Quase no mesmo horário deles outros. Só que em outro dia da semana. Não deixava de ser conveniente, ponderaram.
Enquanto enxugavam a louça, riam muito daquele inusitado arranjo.
Propiciado, no caso dela, pela prontidão com que uma mensagem no celular cancelara o rendez-vous aos quarenta e cinco do segundo. E, então, ela que já se encontrava no quarteirão, resolveu subir, pousar um pouco. Tomar um banho, um café.
Riram muito daquilo tudo.
Depois foram para a vasta cama, que ocupava o quarto quase inteiro, e na penumbra urdiram surpreendentes núpcias.
Eles, os outros.
Ela apreciou bastante certa carícia. Embora não tenha confessado que já a havia praticado. Uma única vez. Faz tempo. Em outra cidade.
Talvez. Talvez tivesse contado em um tempo mais para trás. Na idade deles, quem tem mais disposição para contar detalhes? Podem ser tão pequenos, embora sejam bem ao contrário. E, contudo, parece que é melhor vivê-los avidamente:
-E o que seria da gente: se não esquecesse, lembrava? - ela disse. E penteou, prendeu o cabelo, retocou o batom com uma rapidez surpreendente. Parecia suave, profissional.

Levou de lembrança o pequeno chaveiro, com a estrela endentada na meia-lua. 

4 comentários:

  1. Achei seu blog hoje, por um acaso.
    E por um acaso, fiquei feliz.

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  2. por um acaso, eu também. e embora deva postar bem menos nos próximos dias, agradeço de coração a gentileza de suas palavras.
    a casa é vossa.

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  3. Salomão Santana4/8/12 5:34 AM

    ruy, incrível.
    abraço.

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  4. opa, salomão!
    um abraço, amigo!

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