Deslocamento
e dessincronia. A tradução é o campo em que a linguagem é mais
provisória nos domínios da literatura. Na tradução, tudo reflecte
desconforto, inadaptação, estranhamento, insatisfação, nostalgia,
foras de hora e lugar. Ela é um gênero literário de extrema
importância, mas quase nunca é olhada assim.
Na
verdade, ela sequer é investigada como gênero. Ou tomada como
relevante em estudos especializados, salvo raras excepções. E a tradução pode
ser tão transparente que vemos através dela sem nos darmos conta
desse através. Ou sem lembrarmos que estamos lendo não apenas Dostoiévski, mas também Paulo Bezerra. Ou não só e.e. cummings, mas Augusto de Campos. Não Homero, mas Odorico Mendes. Algo análogo ocorre com a montagem invisível em
filmes clássicos. Assim ela é tomada como um naturalismo que não
corresponde ao/ ou estranha o/ grau de artificialidade e convenção
necessário à tarefa de produzi-la.
Boa
parte da importância da tradução reside em prosseguir a ser um
corpo a corpo com a linguagem ainda não exaurido pela diarreia das
teorias literárias contemporâneas ou pelo exercício oco da criação,
por si, de conceitos, apenas para retroalimentação acadêmica.
A tradução, enquanto gênero, foi uma dos poucos aposentos na
vivenda da literatura a não ser ocupado inteiramente, a escapar de ser colonizado ou parasitado pela teoria acadêmica e, assim, posto a serviço de uma ideia. Ideologizada de algum modo. E ideologizada, a mais das
vezes, desviando-se do texto. Ou propondo-o a serviço de algo
supostamente “mais estratégico”: seja político, seja ambiental
ou comportamental. E, assim, mais urgente, em hipótese. Porém, na verdade, atirando o texto a uma servidão sectária, de algum modo. Pois vivemos num tempo em que os estudos
literários são precedentes à literatura. A primazia recai sobre eles, não sobre a letra dos textos. E, no caso, por suas especificidades, a tradução
permaneceu uma das poucas formas de literatura imunes a essa
hiper-ideologização. [1] E, portanto, apontando para o texto em sua letra mais letra.
É
preciso entender que tais causas ou temas - feminismo, opções sexuais,
imigrantes, populações em meio pré-industrial, desenvolvimento
sustentável, potencialidade dos hipertextos, máquinas de traduzir, acessibilidade ao virtual - são sumamente importantes. E não se deve perdê-los
de vista. Mas que nem sempre os melhores textos literários são os
que necessariamente os reflectem ou passam por eles. Já que eles são
conjunturais. E não há nada que nos assegure que serão
prioritários daqui a cinquenta anos. Ou que não se prestem a profundas manipulações e inverdades. Isto é, manipulações e inverdades a serviço de "causas políticas" pontuais e um tanto facciosas ou intransigentes, tal como é possível encontrá-las em algumas aparas dos ditos Estudos Culturais.
A
tradução, do contrário, é um derradeiro corpo a corpo com a
linguagem, onde se refugiaram aqueles para quem o trato com ela ainda
está envolto em certo pudor. Em certas reservas e interditos de se
estar tratando com algo às raias do sagrado. Um bom combate. Um
embate ao modo de Jacob. E não há forma de humor verdadeira que exclua a
dimensão do sagrado. Huizinga, em seu Homo Ludens aponta bastante
bem para tal: o atrofiamento da dimensão lúdica na modernidade.
De
outro modo, em meio a isso tudo, quando se volta para a arquitetura,
a ideia de poder sempre esteve nitidamente vinculada a edifícios
grandiosos. Que ameaçam arranhar o céu ou desfazer a linha do horizonte. Daí a tradução -
mediante o esfacelamento da língua única em várias línguas - ser
apresentada como uma espécie de segunda queda ou segunda expulsão
do Éden. Ser proposta como resultado do soerguimento de uma torre,
que ameaçava o monopólio das alturas e da sabedoria celestial. É a
imagem bíblica e recorrente dessa ambição insatisfeita: a torre.
Mas o verdadeiro tradutor também pensa por peças de Lego. Ou muito
mais por meio delas que pela opressora totalidade da torre.
O
que há de fálico, fáustico e arranha-céu em Babel, há também de
saudades da terra, do chão, do ctônico, da água, dos canteiros de
flores. Do pisar o chão e ser de manhã. Do mergulhar em fluxo e
rio. Do encontrar-se exilado das possibilidade de estrada. E das
encruzilhadas e outras ciladas da linguagem. Em particular, daquelas
que qualquer imigrante experimenta no exílio. Estar no alto da torre é solitário e insosso.
Mas também tudo
mais torna-se provisório ou des-urgente diante dessa instância do
exílio. A precariedade vaza por todo lado. Traduzir, então, é esse
estar o tempo inteiro consciente dos limites - de nenhum modo apenas
metafóricos - dos idiomas. Ou seja, é estar o tempo inteiro indo e
vindo através das fronteiras deles. Percebendo não só a
suplementaridade dos diversos idiomas, mas, sobretudo, o tanto que
essa suplementaridade aponta para uma espécie de idioma ideal, que
de nenhum modo pode ser expresso. A não ser imperfeitamente, através dos cacos, dos
pedaços de Lego, imperfeitos - e nem sempre amoldáveis entre si - dos
idiomas concretos.
Pelas
labilidades, virtudes e falências desses idiomas, quando
contrapostos a essa língua total, ideal e perfeita - que só pode ser mobilizada
nas junções e articulações das línguas particulares - segue o
tradutor. É preciso importar e exportar bastante de um para outro
idioma, no plano do sentido e no da forma, para consolidar uma
tradução estimável.
O
contrabando não é pequeno. Pela astúcia, faz lembrar o de uma
contrabandista idosa, em certa crônica de Stanislaw Ponte Preta. A
obstinada velhinha cruza diariamente, ida e volta, várias vezes, a
fronteira do Rio Grande com o Uruguai, montada numa lambreta com um
saco à garupa. Não há nada no saco, a não ser areia, que o guarda
aduaneiro já mandou para análise mais de uma vez. É terra mesmo,
com esterco, minhocas e tudo de direito. Mas então, pergunta ele: o
que contrabandeia?
Fácil,
numa segunda leitura, perceber que ela contrabandeia lambretas. E o
fato de a velhinha importar e exportar o próprio veículo em que se
movimenta nos remete para esses veículos supremos, sem fim, que são
os idiomas.
Mas também para outras questões à beira do tráfego do
traduzir. Ou seja, à beira da auto-insuficiência. Ou ainda seja,
para o malogro e aparente modéstia exemplar dessa tarefa, se ela não
consistisse também numa das mais ambiciosas: levar e trazer, re-levar e re-trazer, os
grandes textos de um para outro idioma, e não especificamente apenas
em função daqueles que não podem lê-los em fluência no idioma em
que foram escritos inicialmente. Mas, sobretudo, pela importância intrínseca
desses textos. Daí que o número de versões traduzidas seja proporcional à
relevância do texto. Ao modo como o texto, por si, clama para ser posto em outras
línguas, porque está prenhe de sentidos e belezas.
Por que uma canção como "Águas de Março" ainda precisaria ser gravada após a versão de Elis e Jobim? Não está tudo lá? E, contudo, a canção é tão misteriosamente plena, que necessário ressoar sua beleza sob outros prismas e concepções de arranjo, atmosfera, timbre, instrumentação. E pois então, qual a necessidade de se traduzir de novo um texto que já se encontra traduzido, a não ser pela sensação de que a tradução deixou algo de fora, ou não ressonou determinados aspectos da forma ou do fundo? Ou segue muito veloz? Ou por demais lenta? Ou não refrata as mudanças de andamento, apresentando-se em insossa uniformidade? E isso se dá porque o resultado final, flagrante da tradução é visivelmente, em sua imediatez, o retrato do provisório e da incompletude. Ou ainda, deve-se
recordar da insatisfação gerada pelos resultados imediatos dessa
tarefa: quando todos dirigem sua atenção para um detalhe mais
lustroso, e a proeza do tradutor propôs outro, muito mais árduo e
sutil – mas, diacho, esse outro passa despercebido.
*
Entre
muitas outras coisas, Susan Sontag, a ensaísta norte-americana,
também foi tradutora. Mais que isso, ela leu bastante, vorazmente
em traduções. (E o que é o tradutor, senão um leitor elevado à
máxima potência?) E leu abrindo-se a novos autores, que se
encontravam bem ao largo de um cânone sedimentado, onde, aliás,
Sontag tinha tudo para ter ficado, numa zona de conforto. Pois o aconchego
não era dos menores, e o ar refrigerado amenizava os rigores do
verão, assim como a calefação central, os do inverno. Em torno todos falavam inglês: a vida já nascera mais ganha que outras, digamos assim. E, no
entanto, ela resolveu seguir para outras latitudes. E até demorou-se, com inusual vagar, nos trópicos. Ela, que nasceu e esteve bem ao centro mesmo
desse cânone, e, astuciosamente, percebeu o logro dessa
centralidade.
Essas
leituras de Sontag pela “periferia” do Ocidente, esses seus
passeios pelo “lixo Ocidental” - na expressão pop e precisa que
Fernando Brant cunhou em anterioridade e na outra face mesma da moeda - a fizeram amar autores que só muito
superficialmente são conhecidos no todo-poderoso universo de língua
inglesa. Sontag deleitou-se com a leitura de ensaístas, ficcionistas
e poetas do Leste Europeu, ainda pouco conhecidos ou divulgados à
época em que escreveu sobre eles. E eles parecem conformar a sua última paixão - ela morreu em 2004.
Mora
aqui um paradoxo. Nos seus últimos anos, Sontag propunha um estranho
diagrama da Europa enquanto ideia. A de que os países “periféricos”
no Velho Continente – os mais pobres, os recém-saídos de
ferrenhas ditaduras stalinizantes, alargadas por décadas de estúpida
satelização em torno da União Soviética - pareciam, contraditoriamente, mais vivos,
decentes, únicos e mesmo diversos, culturalmente falando, que os da
propalada União Europeia.
Estes tinham um quê de novos-ricos, de
América má re-transplantada ou regurgitada à Europa. Deleitavam-se
em consumir, entregar-se à bandeja dos novos triques e brinquedinhos
tecnológicos. Ao mar de consumo: régias consultorias, preguiçosos
bem-estares, e aposentadorias que ainda não eram quando Buñuel
filmou Las Urdes, na Extremadura espanhola, com europeus morrendo
como piolhos de fome e malária, e sequer com um tostão furado para
migrar para Luxemburgo, França, Alemanha, Brasil, Canadá ou
Austrália. Nesses mesmos tempos, adolescentes transmontanos eram
fotografados no estuário do Tejo, sob roupas rotas e semblantes descarnados - embora
cheios de esperança - a aguardar a saída do vapor para o Rio ou
Durban.
Sontag
também manteve um vivo caso de amor com a língua portuguesa,
sobretudo via Machado de Assis, a quem ela dedicou um texto, ao final
do anos de 1980, e a quem fez questão de nomear em um ensaio tardio
e um tanto subestimado: “O Mundo Enquanto Índia – A Conferência
São Jerônimo Sobre Tradução Literária” [presente na coletânea
publicada três anos após sua morte (Ao Mesmo Tempo: Ensaios e
Discursos, p. 167, 2007 - na edição brasileira, Companhia das
Letras)].
Nesse
sumário de posições sobre a tradução, ou mais especificamente
sobre a tradução literária – o que chamamos de “os importados
que importam” - Sontag alerta para o que há de nefasto na
excessiva centralidade do inglês enquanto idioma da modernidade.
Quer dizer, aponta para o que há de injusto no peso desigual das
línguas, ainda esteado em pesados preconceitos (aqui, sim,
justificáveis serem mencionados como preconceitos, ao contrário de
muita coisa no político e no escorreito), que reduzem o cânone e
impedem novos alargamentos de fronteiras. E, por que não, da própria
inclusão dessas culturas um tanto estigmatizadas, superficializadas,
aclichezadas, puerilizadas na categoria de humanidade. Na humanidade
densa, para lá de Ocidental.
As
preocupações de Sontag são relevantes. O diagrama que traça da
modernidade segue esteado em autores imprescindíveis, como
Nietzsche, Benjamin, Bazin, Barthes, Ciorán... Mas, como já ressalvado,
passando também por escritores do Leste Europeu, obscuros ou relativamente
pouco conhecidos. Ou mesmo por ocidentais que não chegaram a um público mais amplo, caso do alemão W. G. Sebald. E, no entanto, tão essenciais quanto os mais
famosos. Ou por Machado de Assis, que – para o azar mais deles que
nosso - poucos conhecem em Paris.
Ela
parece divisar com nitidez um ponto de vista: onde o Ocidente
enxergar possibilidades de poder - mínimas que sejam - essa possibilidade será captada e potencializada, de modo a extrair da situação em crivo uma espécie de
“vantagem ética”. Coringa a ser mantido na manga e em estratégia. Argumento em proveito próprio. Falácia. E,
nítido, é a partir dessa espécie de mais-valia, desse excedente de
“ética”, que relatos como os de V. S. Naipaul ou Marjane Satrapi - que não são mencionados por Sontag, mas bem poderiam - prestam-se tanto a serem laureados - sagrados que foram como
prepostos da herança do Ocidente em terras outras - pois também
calam, miseravelmente, sobre a outra metade da empresa: o grau de
barbárie exercido pelo Ocidente para operacionalizar essas outra
formas de civilização.
Quer dizer, autores como Naipaul ou Satrapi
são muito eficientes quanto a denunciar a pasmaceira
terceiro-mundista - corrupta, ineficiente, retrógrada, autoritária - que grassa
nos países ditos “periféricos”. Ou os maus tratos desses países
aos recursos naturais, um tanto como se a história nos países ditos “centrais” fosse de todo diferente. Ou ainda o aparente barbarismo que reveste certos hábitos e costumes, mais próximos de uma visada menos laica, ocidentalizante.
E, no entanto, pontos de vista
consagrados como os de Naipaul ou Satrapi, conveniente e rapidamente
absorvidos e premiados, são simultaneamente incapazes de vislumbrar
que é exatamente esse estado de coisas - esse status quo que os
premia - o que sustenta e, em larga medida, legitima o consumismo
cínico, deslavado, refrigerado, aquecido e aparentemente
auto-suficiente e colarinho-branco dos países ditos pós-industriais.
Lá, onde, não é de hoje, o outsoursing empurra aos
imigrantes o trabalho de facto. E o trabalho sujo, o de suar e
deformar-se, é, por seu turno, cada vez mais transferido para a periferia do mundo, junto com as fábricas e as fazendas.
Tarefas de se encher de hérnias e acidentes de
trabalho na execução das mesmas. A de executar repetições
aviltantes à beira da linha de produção, do fone de telemarketing,
ou da apuração da informação na internet. O trabalho, enfim, que embrutece. Que lembra o instrumento de tortura que está na raiz latina da palavra.
Enquanto isso um adolescente em Nova York consome mais os recursos
não renováveis do planeta durante um ano que uma família de sete
pessoas em Bangladesh durante cinco. E, no entanto, é o adolescente novaiorquino quem está vinculado a uma organização contra o desmatamento da
floresta tropical na Indonésia. Ou se indigna e protesta contra isso.
Será que algo está errado?
A
análise de Sontag a respeito de como jovens indianos são educados
em call-centers para agirem, portarem-se e até possuírem tiques,
emitirem gracejos e dados biográficos de norte-americanos, é
impagável. Uma análise muito pouco condescendente, complacente,
concessiva, como usam ser investigações do gênero. Ou ainda, muito
longe da unilateralidade confortável das soluções de Naipaul ou
Satrapi. Nestas, todos os valores “legítimos” e estimáveis são
ocidentais. E os “maus” encontram guarida fora deles.
Outrossim,
é aqui que Sontag clama para um aspecto pouco evidente: a vontade
que todos temos de sermos – o quanto mais possível – de língua
inglesa. De uma ou de outra forma. Ou da forma mais disponível. Como
no caso desses jovens indianos desdobrando-se em horas
extraordinárias nos call-centers e fazendo-se passar por
norte-americanos. E não apenas por contexto de trabalho.
No íntimo,
desejando ardentemente um visto de residência e uma vida sob as benesses do idioma inglês, longe de seus cotidianos na Índia. Ou uma biografia menos ficcionada do que
as que lhes foram repassadas pelas firmas contratantes, para
amenizar, maquiar a terceirização desse trabalho sub-pago desde
matrizes no dito Primeiro Mundo. E, então, fazer de conta que os consumidores
norte-americanos são, ao fim de tudo, atendidos ao telefone por norte-americanos
e não por jovens indianos sub-pagos e treinados às pressas em Mumbai ou Calcutá. E, ainda aqui, o que aguça
nos indianos é o real desejo de se converterem em...americanos. Quer
dizer, a possibilidade de passar, via língua inglesa, de Bollywood a
Hollywood.
De
fato, muito pouco restou enquanto pro-jecto a um europeu num país
qualquer da União Europeia [à excepção talvez da Alemanha, onde o
pro-jecto nitidamente rima com dominação], além de dizer: “pelo
menos eu não nasci na Índia”. Atualmente, ser europeu e receber
essa chancela, esse prêmio de consolação, já parece ser alguma
coisa, junto com haver passado pouco mais de meio-século sem
deflagrar guerras de escala continental ou mundial. Por enquanto esse tem sido, aliás, o grande feito da União Europeia enquanto projecto. Vamos até onde vai dar a atual crise com seus componentes crônicos, e é tratar do imponderável.
E
há o futuro, sem o qual ninguém vive. E todo ser humano precisa de
algum senso de grandeza. E de sentir-se parte da construção dessa
grandeza. Uma das poucas casas que um homem tem é a sua geração: o sentir-se um pouco mais ao abrigo entre aqueles que passaram por experiências e eventos mais ou menos comuns. E, se o mundo tem globalizado esses eventos, é de se supor que certo senso de experiências comuns também se tenha internacionalizado. E uma referência a elas pode suscitar empatias e impulsos de companhia.
Ora,
o paradoxo, aqui, é que cada vez mais indianos adentram nas
classes-médias e perigam, no correr dos anos, levar padrões de vida
similares aos europeus em termos de conforto material. E com isso,
junto com os chineses e outros emergentes, levar a um paroxismo a
exploração dos recursos naturais do planeta. E, convenhamos, eles
têm todo o direito de aspirarem um padrão de vida confortável. Quem
não o tem?
Muitos – mas ainda uma flagrante minoria - já vão além: vivem igual ou
melhor que a média dos europeus. Mas estes são uma elite de
empreendedores, líderes do processo: políticos, empresários de
grupos transnacionais, funcionários comissionados, especuladores da bolsa,
profissionais liberais bem sucedidos, et alli. Em geral, não são
nem mais, nem menos corruptos que seus pares ocidentais. Mas são
fortemente taxados como tais. E assim postos na mídia. O homem mais rico do Reino Unido nos
diascorrentes é, por sinal, um bilionário indiano. Talvez se
comparado à lisura de um Berlusconi ambos não saiam exatamente
limpos da revista. E, no entanto, o Ocidente no momento de criticar os desmandos políticos e a corrupção no dito terceiro-mundo, bem que esquece de seus Berlusconis ou de seus banqueiros de Wall Street.
Então,
a partir de Sontag, pode-se propor algumas outras questões. E quem sabe a
violenta alteridade cultural presente nas instigantes narrativas de
V. S. Naipaul deva ser observada como apenas uma das faces da moeda.
E que ao calar sobre a hedionda outra face, sobre a coroa dos
imperialismos, que trouxe até Trinidad, nas costas da América do
Sul, um punhado de indianos para operar melhor, sob gerência
britânica, as plantações de cana-de-açúcar, movidas por braços
africanos, talvez Naipaul nos indique à imaginação o suplementar as
lacunas desses horrores.
Aliás,
o trecho em que Sontag menciona Machado de Assis, em “O Mundo
Enquanto Índia”, bastante esclarecedor, nos dá mostras da
perspicácia, da astúcia de alguém que reconhece-se no especioso
centro de um império equivocado:
But,
as many have observed, globalization is a process that brings quite
uneven benefits to the various peoples that make up the human
population, and the globalization of English has not altered the
history of prejudices about national identities, one result of which
is that some languages – and the literature produced in them –
have always been considered more important than others. An example.
Surely Machado de Assis’s The Posthumous Memories of Brás Cubas
and Dom Casmurro and Aluísio Azevedo’s The Slum, three of the best
novels written anywhere in the last part of the nineteenth century,
would be as famous as a late-nineteenth-century literary masterpiece
can be now had they been written not in Portuguese by Brazilians but
in German or French or Russian. Or English. (It is not a question of
big versus small languages. Brazil hardly lacks for inhabitants, and
Portuguese is the sixth most widely spoken language in the world.) I
hasten to add that these wonderful books are translated, excellently,
into English. The problem is that they don’t get mentioned. It has
not – at least not yet – been deemed necessary for someone
cultivated, someone looking for the ecstasy that only fiction can
bring, to read them.
[Porém,
como muitos observaram, a globalização é um processo que traz
resultados um tanto desiguais para os vários povos que compõem a
população humana, e a globalização do inglês não alterou a
história dos preconceitos sobre identidades nacionais, cujo
corolário é o de que algumas línguas – e a literatura produzida
nelas – têm sempre sido consideradas mais importantes que outras.
Um exemplo. Está claro que Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom
Casmurro, de Machado de Assis, assim como O Cortiço, de Aluísio
Azevedo, três dos melhores romances escritos ao final do sec. XIX,
deveriam ser tão famosos quanto qualquer obra-prima desse tempo, não
houvessem sido escritos em português por brasileiros, mas em alemão,
francês ou russo. Ou inglês. (Aqui, não é uma questão de línguas
grandes contra pequenas. O Brasil não tem poucos habitantes, e o
português é o sexto idioma mais falado no mundo). Apresso-me a
acrescentar que essas obras estão traduzidas, esplendidamente, em
inglês. O problema é que elas não são mencionadas. Que elas não
foram propostas – pelo menos até o momento – como necessárias
para alguém cultivado, alguém em busca do êxtase que só a boa
ficção pode ofertar.]
Susan
Sontag teve a lucidez e a coragem de nos indicar que quem não domina o inglês em nosso tempo é não só uma sorte de analfabeto,
mas também de excluído do mundo digital. E, por outro lado, quem só
o domina (ou apenas se obceca por esse domínio) é,
possivelmente, um analfabeto ainda mais rematado.
__________________
[1] Entenda-se, aqui, a tradução enquanto tarefa, enquanto prática. O resultado do ato de traduzir. O que lemos, quando tomamos o texto de uma autor escrito inicialmente em outro idioma. Pois é até inferível que o tremendo grau de ideologização movido por uma necessidade de teleologizar tudo em volta como justificação de um sistema de pensamento que não se mantém de pé por mais de uma década, teria que deixar suas marcas também na teoria da tradução como a boca do bebê nos mamilos da mãe.