terça-feira, 8 de maio de 2012

Para uma Poserfahrungologia da Experiência

Gerhard Richter

Quando a vida não vive
-Notícia sobre o conceito de 'experiência' em quatro autores 

A sensibilidade no mundo pós-industrial, como alertam autores como Benjamin, Lévinas, Agamben ou Flusser, não provêm mais da experiência. Cada um dos quatro glosa a rarefação da experiência, a desertificação de seu jardim ou éden, o interdito de acesso a seu acervo, de forma distinta. Mas intercambiável. Ou para empregar uma imagem que Walter Benjamin aprovaria: como fichas na mesa de jogo. Ou ainda uma outra, mais perto da rua da infância: como figurinhas do álbum de futebol.

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i. Walter Benjamin - e, por tabela, Kracauer e Bazin
Benjamin, que foi um dos primeiros a atentar para o impacto da serialidade, de início, lamenta essa perda da própria possibilidade de uma experiência comunal, coletiva, partilhada, fortemente assentada em uma tradição, embora pareça posteriormente atraído por essa nova forma, pobre, moderna de experimentar, que ele classifica como bárbara.
Siegfried Kracauer parece temer menos essa forma - pobre e moderna, da experiência - a ponto de dignificá-la a contento em seu O Ornamento da Massa; e depois em sua teoria do cinema. Kracauer entrevê algo de contracorrente, de subversor na balconista que vai ao cinema e, ao impregnar-se de suas imagens, tece com elas devaneios à luz do dia, vazando o cinema para a vida, e salpicando-a de poesia, de alguma forma um tanto misteriosa e intensa. É um ponto de vista bastante otimista e que, em certo sentido, lembra a posterior assertividade de um Flusser. 
Porém é André Bazin que mais estavelmente se aproxima em tangências do ponto de vista de Benjamin, tal como transposto para a investigação específica do cinema, com figuras e tropos próximos do mestre de Frankfurt e, no entanto, transposto para certa tradição cristã de pensar combinada a uma visada política existencialista e à esquerda. Há, aliás, dois textos-chaves desses dois mestres que dizem praticamente a mesma coisa, por meio de um jogo dialético análogo, de um modo muito semelhante e, no entanto, próprio: "Le journal d'un curé de campagne e a estilística de Robert Bresson" (Bazin) e "A Tarefa do Tradutor" (Benjamin). Ambos versam sobre a questão da tradução e também investigam conceitos como fidelidade / infidelidade; original / cópia; fixidez / transposição; literalidade / livre-adaptação, etc.
O fato é que essa nova experiência [Erlebnis] contraposta à experiência tradicional [Erfahrung], de acordo com Benjamin, é posse do indivíduo isolado, que não recebe conselhos da tradição nem sabe dá-los. Não sabe conversar com essa tradição, articulá-la. Dizê-la de uma outra forma. Dizer de outra forma ainda é o modo mais saudável que encontramos para retransmitir-nos. Benjamin, em suas tipologias, entrevê essa nova experiência, entre outros, no romancista moderno, como que indicando que todos somos potencialmente esse romancista. E ele nos é. Seus protótipos por excelência são Proust e Kafka. Mas não é menos fascinante quando o autor de Rua de Mão Única versa sobre escritores menos prototípicos, que ainda oscilam nas franjas da modernidade, caso de Robert Walser.
ii. Emmanuel Lévinas - e, por tabela, Huizinga e Elias
Lévinas, à sua vez, propõe uma estranha concepção da experiência: mística, talmúdica e simultaneamente secular e heideggeriana. Ele vai ao mesmo ponto que Benjamin ao situar a morte como a fiadora última da experiência, de sua transmissão. Espécie de momento-Aleph. Talvez mergulhe mais fundo nessa viagem ao dimensionar a aridez que cerca o ato de morrer hoje em dia no Ocidente. E nessa empreitada avizinha-se de certo livro de Nobert Elias, a propósito de uma forma menos indigna de envelhecer e morrer na contemporaneidade. Próximo dele também encosta-se, em anterioridade, o Huizinga que versa sobre os ritmos cotidianos da Baixa Idade Média, assim como sobre uma dimensão do lúdico que foi subtraída à sensibilidade moderna. E, no entanto, a visada judaica de Lévinas, embora estimulante, é um tanto restrita ou singular, se comparada ao universalismo desbragado de Benjamin. Não vou insistir em parafraseá-la aqui, o que seria decerto empobrecê-la de um jeito indevido e mau. E, então, é como se em nome de um 'interdito' - e, lembrem-se, vamos voltar a falar de 'interdito', em nota à parte ainda antes do fim deste mês [ver postagem acima] - seja mais salutar calar. E ao menos por ora. 
iii. Giorgio Agamben
Agamben é dos que vêm depois um dos que melhor formulam e fundamentam um desdobramento instigante do conceito de experiência da tradição [Erfahrung] em Benjamin. E obtêm isso em um ensaio já bastante conhecido: “Infância e História”. 
Enquanto Benjamin entrevê na exceção catastrófica da guerra moderna um das razões do “encolhimento” da experiência, da sua “atrofia”, Agamben repõe mais o dia-a-dia, o prosaico e o comezinho (afetados pelos modernos aparatos), ao centro dessa perspectiva. Benjamin ainda lamenta – de um modo hesitante, como de seu temperamento – o desaparecimento da experiência consolidada na tradição e cristalizada nos chavões e provérbios [Erfahrung]. Agamben já aponta para o fato de o slogan publicitário haver tomado o lugar dessas conclusões morais. Ele nos alerta: “a questão não é deplorar esse estado de coisas, mas tomar nota dele”, percebê-lo. 
À sua vez, só o leitor mais obtuso não irá perceber o quanto até certo estágio Agamben deplora essa rarefação. E, no entanto, há um dado novo: ele nos diz que é só através do dimensionamento dela - o que nos faz mirar um mar de indigência - que é possível seguir adiante, atrás da possibilidade de uma "nova sabedoria". Ou ao menos da sabedoria compatível com nosso cotidiano hipermediado. Uma experiência, de resto, que não se envergonha mais de ser profundamente parasitada, filtrada pela tecnologia e pela produção em série. Pelo apparatus. Uma experiência que se dá predominantemente fora do homem. E, portanto no âmago de uma máquina plena de feitiços - como, aliás, a visada de Flusser não cessa de ressaltar. Mas, ainda assim, Agamben crê, enfim, em certa possibilidade de detectar, mesmo aqui – nesse ambiente supertecnologizado, hipermediado, serial - efêmeras cargas comuns de contrariedade e afecções em sínodos novos, de onde chegar a uma solução de experiência que brota justamente do conviver nesse meio padronizado, rarefeito, previsível, quantificado, insípido, e, de dentro dele extrair cargas de prazer, artesania, bem-estar, e até de bondade.
iv. Vilém Flusser
E há o caso de Flusser que redimensiona e revaloriza a questão a partir da mais radical das experiências posmodernas: a do exílio. Flusser nos diz que “nós vivemos numa época de expulsão. E se essa instância for valorizada positivamente, o futuro assomará menos sombrio”. Bem entendido, essa 'expulsão' não se trata de uma circunstância apenas geográfica. O autor da Filosofia da Caixa Preta nos diz também que “não só cada expulso é forçado a ser criativo, mas também quem quer que seja criativo é forçado a ser expulso”. Há, assim, uma crença nos poderes da criatividade ou, não menos, da capacidade de aferição do estranhamento do comum, que cada um porta em si, que chega a ser ingênuo em seu otimismo, não fosse por outro lado estranhamente instigante.
De momento, estamos muito mais empenhados em virtualizar o mundo. Representá-lo caiu para segundo plano. E seria como que preciso trocar a cabeça dos semioticistas. 
Se no campo da literatura, a primeira tarefa, representar, ainda foi investigada brilhante e exaustivamente por um autor que pode ser considerado uma sorte de anti-Flusser, Auerbach; a segunda ainda é recente demais para que se possa extrair dela algum subsídio mais notável, à parte de intuições luminosas. Chispas. E isso vale mesmo para Flusser, que parece mais (pré-)anunciá-la, prefaciá-la que qualquer outra coisa. 
Nesse sentido, ninguém - tampouco autores como Baudrillard ou Pierre Lévy - escreveu uma teoria das novas mídias consentânea com os impactos dilapidadores, devastadores que esses novos aportes tecnológicos têm causado em nossos cotidianos poscibernéticos. E as tentativas só não têm sido menores que os erros. Algo também indica que será cada vez mais assim. Uma miríade de teorias de um lado, e uma rarefação de razoabilidade ou adequabilidade do outro. Esse descompasso entre novos aportes tecnológicos para ontem, e uma teoria que, quando se debruça sobre eles, eles já "mutaram". 
Algumas dessas teorias, no entanto, são fascinantes. Não menos como narrativa. E surgem mesmo como a jangada que pode transpor Robison Crusoe para novas ilhas, exílios e aventuras. E só para esboroarem-se contra os arrecifes dos novos aparatos cinco minutos depois. Se há uma mínima consequência nelas - para além de um jogo conceitual oco e vazio (ou expressamente neobacharelizante, como no caso do discurso "médio", nas posgraduações, em seus simpósios e livros de compilação) - o tempo nos dirá. 
E mais breve do que se espera. 

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