sábado, 26 de maio de 2012

Peckinpah: poeta de um idílio sem saídas


Sam Peckinpah, Straw Dogs, 1971

Ternura e Brutalidade

"I can see him so plainly," she said, after a moment. "Such eyes as he had: big, dark eyes! And such an expression in them – an expression!"
"O, then, you are in love with him?" said Gabriel.
[James Joyce]

Dentro de um certo sentido, não seria propriamente uma heresia dizer que Peckinpah complementa Bergman. Ou melhor dito: é um Bergman mais próximo da sensibilidade americana - tal como a caracterizavam, entre outros, autores como Lezama Lima e Carlos Williams, que muito provavelmente jamais assistiram Peckinpah. E, assim, é como se todos os cristais e a metafísica de Bergman fossem lançados no ambiente poeirento da fronteira onde chafurdam as personagens de Peckinpah. Ou então, alcançassem uma vida no limiar da sobrevivência e do deserto, condenados a sair do circuito das ideias para viver no mundo das coisas.
Há armas e coiotes na espreita.
*
Peckinpah é uma senha.
Gosta-se ou detesta-se. E ele é um poeta. Um poeta, aliás, próximo de certa tradição de se entrever a relação entre mulher e homem – algo, portanto, um bocado fora dos guizos nos diascorrentes - de certo modo cru, sem muitos atavios. E através de lentes onde se mesclam lirismo e violência extremos. Erra quem pensa que ele representa apenas a chegada mais definitiva ou radical da literatura beat e da contracultura ao cinema. Ou que limitou-se a sublinhar a poesia de certa marginalidade. Um banditismo que medrou à margem dos monopólios capitalistas que conformaram a base das grandes fortunas, dos happy few que lucraram e acumularam de fato com a expansão para o Oeste: banqueiros, donos de ferrovias, especuladores de terras, grileiros contumazes, os primeiros magnatas do petróleo. 
No atacado, os personagens de Peckinpah querem roubá-los, mas acabam sempre roubados, aleijados ou mortos por eles, mais uma vez e irremissivelmente. De certo modo, os párias de Peckinpah são mais desgraçados que os índios. E só por isso é praticamente impossível não simpatizar com esses tratantes, e suas convulsões natimortas. Porque eles já nasceram para rodar à margem. Para serem os perdedores exemplares e da vez. Consumados losers ou motherfuckers. 
Em The Wild Bunch a palavra dos velhos pistoleiros vale mais que emissões de moeda. E talvez haja mais dignidade na ética estropiada desses assaltantes e pequenos patifes (que de resto também lembra a dos cangaceiros e a de outros bandidos sociais), que na respeitabilidade especiosa dos recém-financistas e seus exércitos particulares, equipados com modernas metralhadoras giratórias.
Peckinpah segue na mesma ala de cineastas-párias que tem em suas fileiras gente como Von Stroheim, Buñuel, Orson Welles, John Huston, Nicholas Ray, Robert Aldrich, Pasolini, Sergio Leone, Herzog, Fassbinder, Samuel Fuller e algum - mas não todo - Billy Wilder. O cinismo e a ambiguidade moral do baixo cinema noir preparam a chegada da violência lírica em Peckinpah. Filmes como The Asphalt Jungle (John Huston, 1950) já surgem bastante rentes a ele. E nas feições desse mestre da violência também se pode pressentir os primeiros traços dos Coen, de Tarantino, de Jarmusch e de Bela Tarr. Ou de romancistas como Roberto Bolaño ou David Foster Wallace.
Joyce, Hemingway e o primeiro Creeley, no campo da literatura, estão mais próximos de Peckinpah do que se imagina. Ou do que o último Creeley, mais polido e politicamente correto, gostaria. Hemingway e Joyce provavelmente se escusariam menos da semelhança.
Mas também os motivos nestes dois últimos são expressamente absorvíveis pelo cinema. Em Hemingway há a frustração permanente de haver sido magoado - ou como que "violentado" em sua ética de amante - na juventude. Isso gera insegurança e a necessidade de erguer códigos de fraternidade a partir de riscos comuns, não importa o sexo ou grau de envolvimento, assim como personagens femininos realmente fortes, encorpadas (como observou, entre outros, Simone de Beauvoir). E em Joyce, há essa necessidade de reafirmar a carnalidade do amor (que ronda assustadoramente o protagonista - aliás, alter ego do autor - em um conto como "The Dead"); assim como as dificuldades de repartir o cotidiano com uma mulher.
Joyce, sem dúvida, leva este último tema ao paroxismo. E é de uma simplicidade tão comovedora quanto grosseira, quando diz, por exemplo, sobre a figura de Jesus: ““He was a bachelor and he never lived with a woman. Surely living with a woman is one of the most difficult things a man has to do, and he never did it.” [Ele era um solteirão e jamais viveu com uma mulher. Decerto viver com uma mulher é uma das coisas mais difíceis que um homem tem por diante, e ele nunca teve”]. Um pouco por essa frase, pela ideia que ela concentra em constelação, surgiram filmes um tanto pueris a respeito. Como  The Last Temptation of Christ, de Scorsese.
Pode-se imaginar que Peckinpah gostava dessa frase de Joyce. Muito provavelmente sem a conhecer. E ele, no entanto, a ilustra (involuntariamente?) em alguns de seus filmes. Notadamente em Straw Dogs (1971), que ganhou uma digna refilmagem ano passado (Rod Lurie, 2011). Digna, sim, mas ao contrário do que sugere Roger Ebert, nem por sombras melhor que o original - onde tudo é mais sugerido e sutil. E os movimentos e motivos brotam menos expressos ou pirotécnicos que na refilmagem. O modo como seguem insinuadas a ambiguidade moral de Amy (Susan George), bem como a complacência, bisonha, um pouco tola, de David (Dustin Hoffman) é obra de mestre. Além do que, na versão de 2011, a locação é transmigrada do sul da Inglaterra para o sul dos Estados Unidos - algo que reforça gastos estereótipos e agrada ao politicamente correto. Algo que possivelmente entraria em rota de colisão com os propósitos de Peckinpah, que seguiam longe de estigmatizar ou caracterizar como retrógrada a vida no Sul, ao contrário do clichê mais moeda corrente. 
Como se não bastasse, Peckinpah desmonta qualquer ideia do feminino como heróico ou redentor. Como algo minimamente sábio ou mais salutar que a esfera do masculino. Para ele, a mulher não é mais do que a outra metade de uma humanidade degradada, torpe, sem remissão. E assim, ela é apenas obcecada por encantar. E só para logo em seguida deplorar os resultados nefastos desse exercício de sedução, que é também um exercício de poder. Mas de uma sedução e de um poder que automaticamente se voltam contra ela própria, mulher. Ou podem custar literalmente a cabeça do amante, como em Bring me the Head of Alfredo Garcia - assim como, ao seu tempo, já havia custado a de João Baptista. 
Bem entendido, o poder da mulher é poder. Corrompe da mesma forma. É em tudo análogo ao poder do homem. E é ao menos tão podre quanto, pois resulta apenas no aniquilamento do mundo em torno do poderoso e na sujeição e coisificação de quem se encontra abaixo desse poder e desse mando. E logo, depois de lançar as habituais bombas de Hiroshima e Nagasaki do encanto e da sensualidade, uma carnificina correspondente dissemina-se ao redor. Como uma hemorragia. E muito embora, nesse meio termo, os apaixonados nos filmes de Peckinpah, sigam tão livres, impetuosos e jovens quanto nas peças de Shakespeare; como nas peças de Shakespeare, a felicidade no amor - o breve idílio do encontro - ao invés de driblar a tragédia, é apenas um condimento essencial da própria tragédia. E então as mulheres - mais neuróticas e parecidas com as da vida real que nos filmes de Ford - à medida que instrumentalizam o poder à semelhança dos homens, incorrem nos mesmos erros do mundo machista. E, evidente, não se importam nem um pouco se sua conduta implica na destruição de tudo à volta delas, desde que elas se tornem o centro mesmo do mundo. 
Mas uma capital do mundo em nada original, porém como antes, os homens, a esfera do masculino, já a tinham erguido. Pois esse processo de sair da subalternidade estúpida e injusta a que as mulheres foram sujeitas por séculos não se tem caracterizado pela criação de um espaço novo, inventivo, díspar, transgressor, sugerente, descomprimido, arejado, não ressentido e especificamente feminino. Mas, do contrário e via de regra, apenas reproduzido os mesmíssimos vícios de procedimento e manipulação de poder característicos do mundo machista e capitalista. E pode-se entender que, se há um avanço em termos de igualdade de oportunidades, por outra via, o que a mulher perde em seu processo de liberação é justamente um de seus trunfos: a sutileza, a astúcia, a sabedoria de enxergar o mundo de outra maneira. Quer dizer, da maneira da(o) que esteve à margem. E por ser alguém que passou séculos na condição de 'outro' em relação às manipulações e corrupções inescapáveis ao poder e seu entorno, propostas pelas ratoeiras machistas. Desde que a mulher sai desse aperto, também perde a perspectiva dos apertados e injustiçados, para conformar-se ao conforto refrigerado dos vencedores e da norma constituída.
Algumas feministas mais sectárias acusaram Peckinpah de misoginia. Ou de glamurizar a violência na cena do estupro, em Straw Dogs - uma cena um tanto forte, controversa (para o tempo e o contexto em que foi proposta, acrescente-se). E, no entanto e sem se dar conta, o que elas hostilizam é menos a cena em si do que a desconcertante ambiguidade moral da vítima,  sobre a qual, bem entendido, o próprio Peckinpah cala-se, ao fim de tudo.
Um bom intinerário para se chegar a Peckinpah passa por começar ou com Straw Dogs (Sob o Domínio do Medo) ou com The Wild Bunch (Meu Ódio Será sua Herança) e seguir até Bring me the head of Alfredo Garcia. Neste último, ele pratica um cinema, aliás, muito próximo em tema e forma de alguns realizadores brasileiros da época em que o Cinema Novo deságua na Boca do Lixo. No mínimo, Bring me the head... é um dos mais estranhos road movies já concebidos. E onde ressalta ainda uma vez o antiheroísmo de um ator como Warren Oates. 
Oates está para Peckinpah como Liv Ullmann para Bergman, Mastroianni para Fellini ou Monica Vitti para Antonioni. E, de resto, pode-se reconhecer que há poucos filmes onde a ternura e a brutalidade são separadas por uma membrana tão tênue como nas películas de Peckinpah. Nelas a realidade debocha da fantasia em tal grau que se converte em fantástico pesadelo. E nelas, feito em certos contos de Kafka, algo na vida assoma amaldiçoado de um modo estranhamente espontâneo e irreversível. Embora essa maldição não torne o sol menos esplêndido. O sol que cai sobre as poeirentas trilhas de um Oeste já em franca modernização, e nem por isso mais justo. Muito ao contrário. E a maldição apenas está lá, como um atributo da vida. Ou como quando as crianças brincam com formigas e escorpiões ao início mesmo de The Wild Bunch.  E os malvados não são propriamente as formigas e os escorpiões.

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