Um dos raros retratos de Adolfo Caminha (1867-1897)
Há
um entremear melhor da trama em A Normalista que no Bom-Crioulo. E
por uma questão de proporções e situação, se entendermos por
situação a paisagem do entorno. E não só a paisagem física como
também a humana. E há, por igual, uma contradição interessante: o
fato de João da Mata, que mais adiante irá deflorar a própria
afilhada, ser um simpatizante do positivismo, das ideias modernas e
francesas. Um entusiasta da ciência, anticlerical e leigo. Então, o
romance não é nada unidimensional, como costumam ser algumas obras
dessa fase de poesia simbolista ou parnasiana, e meio insuportável. Ou previsíveis
romancezinhos predeterministas, positivistas, pseudo-científicos. Ou
então, francamente insípidos, feito A Fome, de Rodolfo Teófilo.
A
Normalista (1893) surge, então, mais arrematado, e mesmo mais romance que
Bom-Crioulo (1895). Este, apesar de ser posterior, deve seus méritos, sobretudo, ao fato de tocar num
tema completamente estigmatizado e tabu, à época. E, ainda assim,
como estrutura literária oscila entre a concepção da novela e a do
romance. Embora seja uma oscilação que vale a pena seguir.
No
entanto, há algo de ainda mais moderno em Adolfo Caminha, que
tematizar incesto ou homoerotismo. E é uma espécie de natural
cuidado ao tratar da questão do imigrante. Ele próprio um migrante,
do Ceará para o Rio, e então, de volta ao Ceará - e depois errante
um pouco por toda parte na Marinha de Guerra - Caminha não se exime
de demonstrar uma sorte de cuidado com seus personagens imigrantes e
trânsfugas. Como se boa parte da respiração do mundo não se desse
sem o arranco transformador e desestabilizador que só os imigrantes
portam.
Há
alusões à imigração por toda parte em suas páginas. E um de seus dois
romances - ou esboços em prosa - inacabados leva o sugestivo título de O Emigrado. Então, já há em sua obra uma compreensão intuitiva desse fenômeno da
imigração e do desenraizamento como vital para a confecção da
época em que vivemos. No Cap. II de Bom-Crioulo, por exemplo, em que
Amaro, marujo passado na casca do alho, tenta aliciar o jovem grumete
Aleixo, para que more consigo, tão logo retornem ao Rio, há a
presença, não muito longe, desse senso de migração e moto
perpétuo. Ou mesmo, se quiserem, peregrinação sobre a terra; pois
no exato instante da proposição, em alto-mar, imigrantes passam, no
convés de um transatlântico inglês, como testemunhas distantes,
involuntárias dos acontecimentos. Eles não testemunham
propriamente, mas demarcam o tempo. Acercam-se dele com sua presença
insuspeitada:
Um mundo de
gente movia-se na proa do [transatlântico] inglês, decerto
imigrantes italianos que chegavam ao Brasil. Distinguia-se bem o
comandante, em uniforme branco, chapéu de cortiça, no passadiço,
empunhando o óculo. Lenços acenavam para a corveta que ia ficando
atrás, toda em panos, lenta e soberba.
E o paquete
desapareceu como uma sombra, e ela continuou na sua derrota, sozinha
no meio do mar, desolada e lúgubre. Os marinheiros tinham se
espalhado pela tolda e pelas cobertas, entregues à labuta, esperando
o rancho das quatro horas.
[Bom-Crioulo,
Cap. II]
Praticamente
todos os protagonistas de Adolfo Caminha são imigrantes. Maria do
Carmo, a normalista, é filha de criadores de gado, da região do
Jaguaribe. Estes, tendo perdido tudo na Grande Seca de 1877, buscam
inicialmente Fortaleza e, depois, a Amazônia. A exceção, em termos
de rumo, é a do irmão mais velho, ido previamente em sentido contrário, por
mero acaso de temperamento: recrutado compulsoriamente pelo exército,
e a serviço no Sul – mas, de algum modo, próximo à carreira
militar que o próprio Caminha acabou empreendendo até ser afastado
por uma escandalosa união com uma mulher casada. E casada com um oficial.
O
Capítulo II de A Normalista que trata da viagem da família de Maria do Carmo dos
currais de Campo Alegre para Fortaleza é, por sinal, dos mais
vívidos e conta com uma qualidade de simpatia que destoa nesse autor
usualmente mais seco ou misantropo:
Bernardino
de Mendonça foi dos últimos que abalaram do interior da província
para o litoral na pista de socorros públicos. Totalmente desiludido,
quase arruinado, vendo todos os dias passarem por sua porta, em Campo
Alegre, magotes de emigrantes andrajosos que batiam do sertão num
êxodo pungente, acossados pela necessidade, resolvera também ir-se
com a família para Fortaleza, embora mais tarde fosse obrigado a
procurar outros climas. Era homem sadio, vigoroso, excessivamente
trabalhador e dedicado. Contava a esse tempo quarenta anos, nada mais
nada menos, e dizia com soberba, gabando o peito rijo, não se trocar
por muito rapazola pimpão que aí vive nas cidades grandes caindo de
tédio e preguiça, cheio de vícios secretos. Corria-lhe nas veias
largas e azuis de matuto inteligente, puro e abundante sangue
português. Nunca sofrera a mais leve dor de cabeça. Conhecia a
sífilis por ouvir falar. Casara muito moço, imberbe ainda, aos
dezesseis anos, com uma prima colateral, D. Eulália de Mendonça
Furtado, de uma família de Furtados da Telha.
Que
Mendonça não conhecesse a sífilis, não se entregasse ao tédio, à
masturbação, assim como a menção aos casamentos endógenos - tão
comuns em famílias sertanejas dos ranchos e currais do Jaguaribe, do Cariri,
dos Inhamuns - revela algumas crenças em comum com os naturalistas
em qualquer parte do mundo. Coisa dos pré-condicionantes físicos e
sociais ditando os espirituais. E, no entanto, é notável essa
exaltação do sangue português associado – mais ou menos como
entre os de língua espanhola aos galegos - com a disposição para a
faina incessante e pesada. Esta última observação, no entanto, é
mais cultural que “científica”. Ou seja, que naturalista. E há
muitas delas em Caminha. E exatamente por isso ele escapa de ser o naturalista padrão. O mesmo de quem Machado de Assis ainda vai detectar traços no Eça de Queiroz do Primo Basílio em uma brilhante página de crítica.
De outro modo, é notável que seja justamente O Primo Basílio o romance que Maria do Carmo lia às escondidas, no banheiro de casa. E comentava com uma colega da Escola Normal, que a havia emprestado. E o contrapunha à literatura xarope reservada para as moçoilas da época numa Fortaleza ainda de um provincianismo exemplar. Como se fosse uma espécie de modelo de leitura a se sugerir.
De outro modo, é notável que seja justamente O Primo Basílio o romance que Maria do Carmo lia às escondidas, no banheiro de casa. E comentava com uma colega da Escola Normal, que a havia emprestado. E o contrapunha à literatura xarope reservada para as moçoilas da época numa Fortaleza ainda de um provincianismo exemplar. Como se fosse uma espécie de modelo de leitura a se sugerir.
Adolfo
Caminho, ainda mais em A Normalista mas também em Bom-Crioulo, é um
escritor que dá o que pensar. E se não houvesse morrido com apenas
29 anos, é possível que a gente ouvisse falar mais dele. E melhor.
E é uma pena que só seja lembrado para provas de Literatura no
secundário ou exames vestibulares.
*
No
presente, Adolfo Caminha é apenas a dor de cabeça de muitos
colegiais brasileiros forçados a ler seus dois romances, que
sobreviveram - A Normalista e Bom-Crioulo. Ele é
mais que isso, no entanto. Compartimentalizado entre os naturalistas,
com todas as reduções e prejuízos que isso implica, há em seus
livros suficiente vida própria para serem lidos ao largo de se
pensar em escolas ou movimentos. E, em especial, pelo que agregam da
história social do Brasil de fins do séc. XIX. E de um esboço de
Brasil urbano. Um esboço tênue, incipiente, que segue sendo
protagonizado sobretudo pela figura de um pária: o imigrante. Como
contemporâneo do maior escritor brasileiro, Machado de Assis, não é
nada natural – mas certamente naturalista – que se esqueçam dele
por ofuscamento. Ou que, ao menos, ele não seja posto no devido
lugar, para alguém que antes de contar trinta anos, escreveu
romances sobre homossexualidade e incesto quando a resposta da
sociedade a tais temas era um pesado silêncio.
*
Há uma
etnografia de um Brasil urbano em que o peso do rural ainda era
demasiado. Em A Normalista, Maria do Carmo, embora morasse em
Fortaleza, era filha de rancheiros das margens do Jaguaribe. Chegou à
cidade com seis anos, fugindo da estiagem. Amaro, o Bom-Crioulo, um
escravo fugido. E que até achava os primeiros tempos da duríssima
vida na Marinha como um mar-de-rosas se comparados à extenuante faina na
fazenda, da qual ele se lembra apenas fugazmente, muito em raro, e
sem nenhuma saudade.¹ Aleixo vem das aldeias de pescadores, de
extração açoriana, fixados em torno da Baía de Florianópolis
(então, Desterro). Carolina, a senhoria que alcovitava o caso dos marinheiros num cortiço carioca, e depois tornar-se-ia amante de um deles, era uma imigrante portuguesa que também fora prostituta quando mais jovem. E o próprio quartinho no sobrado usado pelos amantes gays fora previamente ocupado por um jovem português recém-chegado que morrera de febre amarela. Ainda tresandava a ácido fênico. Como a aproximar, ainda uma vez, amor e morte. Zuza, o pretendente de Maria do Carmo, parece a
exceção. Era amigo do presidente da província e bacharel. Mas seu
pai, no entanto, vinha da truculenta cepa dos coronéis do Nordeste - e, portanto, tinha um pé no interior.
E o próprio Zuza estudara Direito no Recife. E ao comparar Fortaleza com o Recife,
deixava entrever uma situação que, por si, não prognosticava que
essas cidades no futuro teriam mais ou menos o mesmo peso nacional,
tal a dessimetria em favor do Recife, de meio para fim do séc. XIX:
Uma vidinha
estúpida aquela! pensava o estudante estendendo-se na rede.
Morria-se de tédio e calor. Vieram-lhe saudades do Recife. Oh! o
Recife, o Prado aos domingos, os passeios, belos piqueniques a
Caxangá... Lembrou-se de sua última conquista amorosa — a Rosita,
uma espanhola com quem estivera seguramente seis meses. Um peixão!
Morava na Madalena. Vira-a uma vez no teatrinho da Nova Hamburgo,
sozinha num camarote, muito bem vestida, com um rico leque de plumas,
anéis de brilhantes, esplêndida: era argentina. Que de cerveja e
ceatas e passeios de carro e pagodeiras nos hotéis! Relembrava a
primeira noite que passara com a Rosita, por sinal tinha tomado muita
champanha, tinha feito um figurão. A rapariga compreendeu que
tratava com gente fina e entregou-se. Uma noite deliciosa! Começou
por uma ceia em casa dela na Madalena, um chalezinho de porta e
janela com varanda, forrado a papel sangue de boi e jardinzinho na
frente. A sala de visitas era um mimo com a sua mobília mignon de
assento estufado, piano, quadros do paganismo, bibelô... E a alcova?
Um ninho, um perfeito ninho de amores. Zuzinha – era como ela o
tratava com toda ternura, cobrindo-o de beijos, suspendendo-o nos
braços como se levantasse uma criança, sentando-o no colo — ela
de peignoir de fustão com fitinhas azuis, uns olhos matadores,
úmidos de sensualidade, e ele à frescata, em mangas de camisa, sem
colarinho – um deboche!
É,
a vida em Recife parecia mais viva. Mas o próprio modo abrupto com
que Zuza propõe a comparação com a acanhada Fortaleza de então
aponta um pouco às suas origens:
Às seis
horas da tarde já lá estava ele, no Trilho, em casa do amanuense,
queixando-se da monotonia da vida cearense e gabando, com ares de
fidalgo, a capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode viver, pode
gozar. Muito progresso, muito divertimento: corridas de cavalos, uma
sociedade papa-fina muitíssimo bem-educada, magníficos arrabaldes,
certo bom gosto nas toaletes, nos costumes, certas comodidades que
ainda não havia no Ceará...
— Ao que
parece o Sr. Zuza não gosta do Ceará... disse-lhe um dia D.
Terezinha.
— Absolutamente
não, minha senhora. Sou meio exigente em matéria de civilização;
isto me parece ainda uma terra de bugres...
— De
bugres?!
— ...Sim,
uma terra em que só se fala nas secas e no preço da carne verde. V.
Exª compreende, não pode corresponder à expectativa de um rapaz de
certa ordem, por assim dizer educado na Veneza Americana...
— Deste
modo o Sr. Zuza ofende os seus conterrâneos, os seus parentes...
— Absolutamente
não.
O que dizia
é que o Recife está num plano muito superior a Fortaleza. Apenas
estabelecia um paralelo.
É
interessante essa ressalva final do autor: um pouco condescendente
com a personagem, mas absolutamente realista em relação ao assunto.
E, no atacado, o que dizem ser sombrio é, na verdade, apenas mais realista
em Adolfo Caminha. Ocorre que, por temperamento, ele não suaviza
nada. E de outra modo, ele só fala daquilo que conhece por dentro,
com uso e vezo de uma experiência voraz e apaixonada. Caminha, entre
outras, apaixonou-se pela esposa de um alferes. Foi correspondido.
Passaram a viver juntos. Um escândalo na pequena Fortaleza do final
do séc. XIX. Teve de renunciar a seu cargo de oficial da Marinha. E
partir em definitivo para o Rio, onde passara parte dos anos de
formação e estudos na Escola Naval. Tiveram duas filhas.
Quando
escreve sobre homossexualismo na Marinha, em Bom-Crioulo, escreve
sobre um fenômeno que sabia da existência por ter andado embarcado,
e conhecido meio mundo. E inclusive compilado, em uma obra menos
estudada, algumas vívidas impressões dos Estados Unidos (No País
dos Ianques, 1894). Não era geografia pequena para um escritor
àquela época.
Sua opção em tocar num assunto absolutamente tabu fez cair uma cortina de silêncio sobre Bom-Crioulo, onde, entre outras, há a insinuação de que alguns oficiais graduados da marinha eram homossexuais e mantinham casos com subordinados, a quem retribuíam com favores, quando embarcados. Não é pouca ousadia. Muitos daqueles críticos acadêmicos, bacharéis, um pouco empoeirados pelo vezo da classificação em escolas e a rigidez dos gêneros literários encaram essa opção temática como parte daquele apego à anomalia, ao defectivo, ao monstruoso, peculiar ao espírito naturalista. Outra impressão se tem quando se lê o livro e constata a naturalidade com que o caso entre os dois grumetes é narrado, descontados obviamente alguma observação de asco por força de época. Se essas observações ocorrem, são de todo infrequentes, no entanto. Pode-se mesmo dizer que talvez em nenhuma outra parte do planeta àquela altura falava-se de homossexualidade com a naturalidade - e não o naturalismo - presente em Bom-Crioulo²:
Sua opção em tocar num assunto absolutamente tabu fez cair uma cortina de silêncio sobre Bom-Crioulo, onde, entre outras, há a insinuação de que alguns oficiais graduados da marinha eram homossexuais e mantinham casos com subordinados, a quem retribuíam com favores, quando embarcados. Não é pouca ousadia. Muitos daqueles críticos acadêmicos, bacharéis, um pouco empoeirados pelo vezo da classificação em escolas e a rigidez dos gêneros literários encaram essa opção temática como parte daquele apego à anomalia, ao defectivo, ao monstruoso, peculiar ao espírito naturalista. Outra impressão se tem quando se lê o livro e constata a naturalidade com que o caso entre os dois grumetes é narrado, descontados obviamente alguma observação de asco por força de época. Se essas observações ocorrem, são de todo infrequentes, no entanto. Pode-se mesmo dizer que talvez em nenhuma outra parte do planeta àquela altura falava-se de homossexualidade com a naturalidade - e não o naturalismo - presente em Bom-Crioulo²:
Decorreu
quase um ano sem que o fio tenaz dessa amizade misteriosa, cultivada
no alto da Rua da Misericórdia, sofresse o mais leve abalo. Os dois
marinheiros viviam um para o outro: completavam-se.
—
Vocês acabam tendo filhos,
gracejava D. Carolina.
Nunca
vira dois homens gostarem-se tanto!
Há cenas da intimidade, e mesmo das carícias entre Amaro e Aleixo. Algo ousado mesmo para os padrões de hoje. Mas é custoso a críticos do Sul - ou a esses papagaios de pirata pós-modernos, que por toda parte propagam pós-estruturalismos - reconhecer que tamanha coragem, independência de espírito e ousadia tenham vindo de um escritor da suposta "periferia", do Nordeste, e bastante afetado por ideais positivistas. Quando no futuro se reler a enormidade de bobagens escritas sob os eflúvios de Barthes, Blanchot, Baudrillard, Deleuze, Derrida & Cia. talvez, então, se tenha a dimensão do ridículo que constitui no presente a absorção acrítica, em pororoca, dessas teorias.
É mais ou menos como tornar ao passado e vislumbrar aquele entusiasmo meio doentio mas contagiante que os escritores e intelectuais nutriam pelo positivismo. E lembrar que Fortaleza, através de um grpo de rapazes formados na Faculdade de Direito do Recife e capitaneados por Rocha Lima - só alguns poucos anos antes de Caminha - foi um dos centros pioneiros na absorção do ideário positivista em língua portuguesa. Aportes teóricos que tanto tem a ver com o naturalismo em literatura. E, no entanto, ao contrário dessa festividade insípida e pouco consistente de hoje, eles realmente sabiam da matéria que tinham em mãos e do solo em que estavam pisando.³ Mais importante que isso: sabiam tecer uma solução de continuidade e chegar a uma síntese entre esse pensamento importado e os cotidianos e realidades locais. Uma tarefa de tradução diante da qual as pós-graduações de hoje deviam voltar-se para esmiuçar e aprender com, com pés no chão e um mínimo senso de humildade intelectual.
Também conta a favor de Caminha haver participado da Padaria Espiritual, sob o pseudônimo de Félix Guanabarino. E como alguém que escolhe para pseudônimo Félix ou luta por um amor comprometido, quase impossível à época, poderia ser esse misantropo caricatural que nossos velhos professores de literatura nos impingiam? Entre outras coisas, Caminha editou praticamente sozinho um jornal em seus anos de Fortaleza. Na verdade, ia dizer: em seus anos de maturidade em Fortaleza. Mas como falar em maturidade para um homem que morreu aos vinte e nove anos?
E, então, é bem mais real colher impressões da atmosfera dos arrabaldes pobres e cortiços em Fortaleza ou no Rio de Janeiro nos capítulos de Caminha que em alguma página de Manuel Antônio de Almeida ou Joaquim Manoel de Macedo, cronistas anteriores, românticos, e de uma Corte mais alegre, bonachona ou dos salões. Mas também, mesmo nas tavernas, becos e vielas de Almeida - onde há tanta graça e povo - há menos escória que em Caminha. Quer dizer, em Caminha os personagens são ainda mais pobres e relegados ao esquecimento e à desesperança: uma filha de retirantes da seca violada pelo padrinho; um filho de humildes pescadores da costa de Santa Catarina que vê na Marinha a possibilidade de fugir da miséria; uma imigrante portuguesa fazendo a vida no Rio de Janeiro; e, por fim, o pária dos párias, Amaro: homossexual, negro, pobre, ex-escravo e militar subordinado numa Marinha onde ainda imperavam pesados castigos físicos.
Os personagens de Caminha, no entanto, tem uma rica vida interior. E, evidente, também carregada de sordidez. Parecem tramar coisas más quase o tempo inteiro, ao ruminar em torno de seus pequenos desejos egoístas ou limitadíssimos pela estreiteza da vida na faixa social reservada a eles num instante em que à classe-média baixa urbana cabia um papel um bocado mesquinho na vida do país. Ao contrário de hoje. Mas isso, no entanto, não é algo determinista ou isolado. Se dá em contíguo com alegrias, pequenas conquistas e contentamentos, na vida e no amor.
É mais ou menos como tornar ao passado e vislumbrar aquele entusiasmo meio doentio mas contagiante que os escritores e intelectuais nutriam pelo positivismo. E lembrar que Fortaleza, através de um grpo de rapazes formados na Faculdade de Direito do Recife e capitaneados por Rocha Lima - só alguns poucos anos antes de Caminha - foi um dos centros pioneiros na absorção do ideário positivista em língua portuguesa. Aportes teóricos que tanto tem a ver com o naturalismo em literatura. E, no entanto, ao contrário dessa festividade insípida e pouco consistente de hoje, eles realmente sabiam da matéria que tinham em mãos e do solo em que estavam pisando.³ Mais importante que isso: sabiam tecer uma solução de continuidade e chegar a uma síntese entre esse pensamento importado e os cotidianos e realidades locais. Uma tarefa de tradução diante da qual as pós-graduações de hoje deviam voltar-se para esmiuçar e aprender com, com pés no chão e um mínimo senso de humildade intelectual.
Também conta a favor de Caminha haver participado da Padaria Espiritual, sob o pseudônimo de Félix Guanabarino. E como alguém que escolhe para pseudônimo Félix ou luta por um amor comprometido, quase impossível à época, poderia ser esse misantropo caricatural que nossos velhos professores de literatura nos impingiam? Entre outras coisas, Caminha editou praticamente sozinho um jornal em seus anos de Fortaleza. Na verdade, ia dizer: em seus anos de maturidade em Fortaleza. Mas como falar em maturidade para um homem que morreu aos vinte e nove anos?
E, então, é bem mais real colher impressões da atmosfera dos arrabaldes pobres e cortiços em Fortaleza ou no Rio de Janeiro nos capítulos de Caminha que em alguma página de Manuel Antônio de Almeida ou Joaquim Manoel de Macedo, cronistas anteriores, românticos, e de uma Corte mais alegre, bonachona ou dos salões. Mas também, mesmo nas tavernas, becos e vielas de Almeida - onde há tanta graça e povo - há menos escória que em Caminha. Quer dizer, em Caminha os personagens são ainda mais pobres e relegados ao esquecimento e à desesperança: uma filha de retirantes da seca violada pelo padrinho; um filho de humildes pescadores da costa de Santa Catarina que vê na Marinha a possibilidade de fugir da miséria; uma imigrante portuguesa fazendo a vida no Rio de Janeiro; e, por fim, o pária dos párias, Amaro: homossexual, negro, pobre, ex-escravo e militar subordinado numa Marinha onde ainda imperavam pesados castigos físicos.
Os personagens de Caminha, no entanto, tem uma rica vida interior. E, evidente, também carregada de sordidez. Parecem tramar coisas más quase o tempo inteiro, ao ruminar em torno de seus pequenos desejos egoístas ou limitadíssimos pela estreiteza da vida na faixa social reservada a eles num instante em que à classe-média baixa urbana cabia um papel um bocado mesquinho na vida do país. Ao contrário de hoje. Mas isso, no entanto, não é algo determinista ou isolado. Se dá em contíguo com alegrias, pequenas conquistas e contentamentos, na vida e no amor.
E mesmo em
Caminha há humor. Um humor menos ostensivo que o temperamento geral
brasileiro. E, por isso mesmo, mais abrasivo e pleno de sugestões. O
momento em que a senhoria portuguesa e Aleixo fazem sexo à borda do
tanque, no quintal do pequeno sobrado em Bom-Crioulo é hilário: extremamente
visual e deslavadamente cômico. Mais que uma notação de roteiro,
surge como o próprio filme em edição final e irrevisável. Ou
antes disso quando ela - que na juventude tivera a sugestiva alcunha
de Carola Bunda - praticamente deflora o jovem grumete com um calor
de meio-dia em Teresina:
Ela, de
ordinário tão meiga, tão comedida, tão escrupulosa mesmo,
aparecia-lhe como um animal formidável, cheio de sensualidade, como
uma vaca do campo extraordinariamente excitada, que se atira ao macho
antes que ele prepare o bote...
Era
incrível aquilo! A mulher só faltava urrar. E a sua admiração
cresceu ainda mais quando ela, sacando fora a camisa ensopada de
suor, caiu nua no leito, arquejante, segurando os seios moles, com um
estranho fulgor no olhar de basilisco.
[…]
E
com fingida ternura, ameigando a voz:
-Fica, meu
bonitinho, fica, junto à tua negra...
Mas há
também o instante na Normalista em que João da Mata, roído de ciúmes, especula
na cama se o Zuza passou ou não um bilhete à Maria do Carmo - a
jovem afilhada por quem ele nutria um desejo reprimido - por baixo da mesa do
jogo de víspora. E a mulher, depois de ouvir por largo trecho a
arenga, tasca um:
—Homem,
trate das suas hemorroidas que é melhor...
— Ora,
sabe que mais? Você é outra!
E deram-se
as costas fazendo ranger a cama.
Com pouco
ambos roncavam no discreto silêncio da alcova.
Sobre a
cômoda, ao pé do oratório, ardia uma lamparina de azeite.
Adolfo Caminha
vale tanto pela observação mordaz da esposa quanto pelo ranger da
cama ao gesto de repelência do casal para a noite. Ou pelo ronco e o
silêncio. Ele é mesmo essa lamparina de azeite acesa sobre a face
menos luminosa de nossa cultura urbana. Um caldo de cultura, aliás,
assaltado pelo medo. Ou que vive de janelas atrás de grades, ainda
longe da propalada pós-história. A vida dura, no improviso dos
cortiços, depois propagada pelo tamanho e a miséria das favelas e
zonas de anomia, onde uma espécie de seleção não natural decretou
que a lei do mais forte é ainda mais forte.
___________________________
¹Aliás, essa imprecisão geográfica da localização, uma falta de nitidez do cotidiano na fazenda da qual fugira Amaro é uma das evidentes debilidades de Bom-Crioulo. É sobre isso que falamos ao nos referir a "proporções e situação" no início mesmo do texto. Pois ao contrário de Aleixo, do qual se tem esse contexto na descrição da vida de pescadores na costa catarinense; ou do que se pode presumir do Portugal de Dona Carolina; ou ainda da sina de imigrantes de Maria do Carmo e sua família, em A Normalista; o que se sabe do contexto rural de Amaro é um bocado vago, lacunar. E por outra, não é tão árduo perceber que em alguns personagens se processam verdadeiras inversões de mitos ou clichês mais ou menos naturalistas. Ou mesmo senso-comuns. Como o fato de Amaro, apesar de negro e bem constituído fisicamente - era um jovem forte, bem apessoado - não se haver revelado amante dos mais solicitados pelas mulheres, quando o clichê ainda hoje é o de que negros são mais desenvoltos na cama do que brancos - isso também se estendendo a uma suposta volúpia e maior licenciosidade da mulher negra. E, logo, Caminha opera por meio de Amaro uma verdadeira inversão de valores. Ou quebra de clichês. Ora, os africanos é que eram tidos como mais lascivos e próximos de certa fixidez sexual. (Em palavras diretas: como melhores na cama pelas mulheres, como, aliás, registra Gilberto Freyre em certo passo de Sobrados e Mocambos, numa observação sobre o Rio Grande do Sul, que bem pode ser estendida ao senso comum do Brasil inteiro àquela altura e depois. A observação, aliás, é cristalizada numa citação de Saint-Hillaire, o naturalista - e, entenda-se, porta-voz por excelência do positivismo científico: "as índias dizem que se entregam aos de sua raça por dever; aos brancos por interesse; e aos negros por prazer" (Cap. VIII, p. 489). Ora Amaro, negro, mas posto na condição de mau amante de mulheres, não é precisamente algo que fere certo senso-comum da desenvoltura sexual do africano? Isso, ao invés de aproximar o ponto de vista de Caminha dos determinismos naturalistas, ou mesmo de uma dedução um tanto senso-comum, o afasta deles. Abre a Amaro uma perspectiva que segue para além de qualquer determinismo racial ou atávico, pondo ao plano praticamente da opção a condição homossexual. Ou mesmo facultando ao arbítrio pessoal a escolha dessa orientação. E não é isso justamente o oposto dos determinismos naturalistas? Quer dizer, a visão de Caminha é excepcionalmente moderna. E há miopia em quem não assim a reconhece apenas para tentar encostá-lo aos traços gerais que caracterizam uma "escola literária".
²De outro modo, à baixa auto-estima dos escritores e críticos brasileiros e fortalezenses não ocorre supor que, de dentro da modorra provinciana de Fortaleza, aparentemente estanque, sem nenhum dinamismo mais à tona, surja um escritor que trata de temas tão deslavadamente modernos, temas que não recebiam tratamento em nenhum outro lugar do país, ou mesmo da ex-metrópole (Portugal) e de quase qualquer outro lugar do mundo. Ou seja, algo não está nos gonzos: como surgir um escritor assim - ou um movimento como a Padaria Espiritual - se não houvesse um mínimo de dinamismo, transitividade intelectual e algum cosmopolitismo ambiente? E quem ainda virá um dia, quem sabe num futuro mais distante, perceber que devia haver algum mérito na composição social da cidade de Fortaleza, a ponto de permitir a efervescência cultural de figuras literárias desse grau de modernidade e impacto?
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¹Aliás, essa imprecisão geográfica da localização, uma falta de nitidez do cotidiano na fazenda da qual fugira Amaro é uma das evidentes debilidades de Bom-Crioulo. É sobre isso que falamos ao nos referir a "proporções e situação" no início mesmo do texto. Pois ao contrário de Aleixo, do qual se tem esse contexto na descrição da vida de pescadores na costa catarinense; ou do que se pode presumir do Portugal de Dona Carolina; ou ainda da sina de imigrantes de Maria do Carmo e sua família, em A Normalista; o que se sabe do contexto rural de Amaro é um bocado vago, lacunar. E por outra, não é tão árduo perceber que em alguns personagens se processam verdadeiras inversões de mitos ou clichês mais ou menos naturalistas. Ou mesmo senso-comuns. Como o fato de Amaro, apesar de negro e bem constituído fisicamente - era um jovem forte, bem apessoado - não se haver revelado amante dos mais solicitados pelas mulheres, quando o clichê ainda hoje é o de que negros são mais desenvoltos na cama do que brancos - isso também se estendendo a uma suposta volúpia e maior licenciosidade da mulher negra. E, logo, Caminha opera por meio de Amaro uma verdadeira inversão de valores. Ou quebra de clichês. Ora, os africanos é que eram tidos como mais lascivos e próximos de certa fixidez sexual. (Em palavras diretas: como melhores na cama pelas mulheres, como, aliás, registra Gilberto Freyre em certo passo de Sobrados e Mocambos, numa observação sobre o Rio Grande do Sul, que bem pode ser estendida ao senso comum do Brasil inteiro àquela altura e depois. A observação, aliás, é cristalizada numa citação de Saint-Hillaire, o naturalista - e, entenda-se, porta-voz por excelência do positivismo científico: "as índias dizem que se entregam aos de sua raça por dever; aos brancos por interesse; e aos negros por prazer" (Cap. VIII, p. 489). Ora Amaro, negro, mas posto na condição de mau amante de mulheres, não é precisamente algo que fere certo senso-comum da desenvoltura sexual do africano? Isso, ao invés de aproximar o ponto de vista de Caminha dos determinismos naturalistas, ou mesmo de uma dedução um tanto senso-comum, o afasta deles. Abre a Amaro uma perspectiva que segue para além de qualquer determinismo racial ou atávico, pondo ao plano praticamente da opção a condição homossexual. Ou mesmo facultando ao arbítrio pessoal a escolha dessa orientação. E não é isso justamente o oposto dos determinismos naturalistas? Quer dizer, a visão de Caminha é excepcionalmente moderna. E há miopia em quem não assim a reconhece apenas para tentar encostá-lo aos traços gerais que caracterizam uma "escola literária".
²De outro modo, à baixa auto-estima dos escritores e críticos brasileiros e fortalezenses não ocorre supor que, de dentro da modorra provinciana de Fortaleza, aparentemente estanque, sem nenhum dinamismo mais à tona, surja um escritor que trata de temas tão deslavadamente modernos, temas que não recebiam tratamento em nenhum outro lugar do país, ou mesmo da ex-metrópole (Portugal) e de quase qualquer outro lugar do mundo. Ou seja, algo não está nos gonzos: como surgir um escritor assim - ou um movimento como a Padaria Espiritual - se não houvesse um mínimo de dinamismo, transitividade intelectual e algum cosmopolitismo ambiente? E quem ainda virá um dia, quem sabe num futuro mais distante, perceber que devia haver algum mérito na composição social da cidade de Fortaleza, a ponto de permitir a efervescência cultural de figuras literárias desse grau de modernidade e impacto?
³Rotulados de Geração de 77 ou referidos por certa Academia Francesa do Ceará, com toda a carga cômica que isso repassa. Contavam entre seus adeptos mais destacados: Capistrano de Abreu, Araripe Júnior, Felino Barroso, Tomás Pompeu, João Lopes e Xilderico Farias, além de Rocha Lima.
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