Joan Miró, 1952
As
estrelas em torno da lua, escondem-se de novo diante da luminosa,
enquanto ela, plena, luz sobre a terra. No céu de sua mente, as
ideias e as coisas eram também ofuscadas por uma lua assim.
*
Sete
e vinte.
Os
skatistas não cessavam de saltar do alto dos degraus. Em diferentes
níveis. Tão rentes aos passantes que quando um deles levou um tombo
mais escabroso, isso satisfez a ele. De alguma forma. E foi um dos
poucos instantes em que vazou-se para fora da redoma.
Havia
casais ocupando o banco em meia-lua em torno da estátua,
erroneamente voltada para o mar, quando deveria ter sido posta para o
lado da avenida, assim que se pudesse admirá-la em primeiro plano,
de alguma perspectiva, e com o oceano ao fundo.
Ainda
que não houvesse muito o que admirar, pensou ele. E inquieto
consultou o relógio e o smartphone sucessivamente, ainda uma vez, em
meio ao chafurdo incessante dos skatistas. Unhas eram roídas
mentalmente, será que mortalhas teciam-se em reverso a partir da
mesma abstração?
Um
grupo de turistas, sentados nos degraus consultava seus guias como
crentes consultam a parábola no Novo Testamento, em brochuras
baratas. Um outro grupo de motoristas de furgão, escorados nos
parapeitos à altura dos degraus onde se aboletavam os turistas,
volta e meia ofereciam - a quem achavam com o biotipo e indumentária
mais ou menos de turista – parábolas de roteiros para as praias do
Leste, distribuindo os folhetos como se distribui santinhos em
Fátima, Lourdes, Aparecida, Canindé ou Juazeiro do Norte.
No
calçadão, as pessoas passavam. Em geral, pisando os ladrilhos com
os seus tênis, sapatilhas e sandálias. Mas também sobre patins,
bicicletas, triciclos, skates, patinetes. Andar por ali tornara-se
também um exercício de desviar-se. Uma espécie de desviobol. Um
novo esporte, em que a velocidade do desvio empatava com a
necessidade de olhar nos olhos de quem se desviava, de acordo com a
carência de cada um. Ou com a beleza do observado. E, então,
olhares topavam-se.
Para
logo em seguida destoparem-se. Bruscos. Ou não. E muito não. Como
em quase qualquer estranha química nesta vida. Em alguns, sobravam
um anjo, uma iara. Em outros, um cifrão. Em outros tantos, um
canivete. Em não poucos: a embalagem, os preservativos. Nos mais
decididos uma suíte na penumbra com decoração de duvidoso gosto.
Mas, enfim.
Ele,
como um pássaro preso, circulava entre os diferentes planos do
monumento. Quase sempre de pé, mas às vezes sentado por um pouco
nos balaustres e observando em torno ou mais ao longe. Num
desolamento em que não se previa melhor gávea ou garantia de
panorama. Numa toda espécie particular de greve.
Mais
acima, junto ao mar, abrigando-se na semi-penumbra, os casais.
Sentados no semi-círculo da insuficiente esplanada, idealizada para
se contemplar acima do pedestal de granito, a grande índia vergando,
não se sabe bem por que, a ponta de um enorme arco que devia ser de
uso exclusivo de seu companheiro por aquelas eras imemoriais. Uma
mulher loira, metida num jeans um tanto sumário para sua silhueta um
pouco excessiva, contorcia-se lubricamente no colo de um sujeito
calvo e contente como o Imperador do Sacro Império:
-Cada
qual, com seu cada qual – ele pensou.
No
plano do meio, os grupos de skatistas - que permanentemente
imaginavam que a índia devia ser da tribo dos Apaches -
permanentemente desembestava-se em carreiras e saltos até o passeio,
lá, abaixo. E, claro, ocupando permanentemente uma suposta rampa
para pessoas com necessidades especiais:
-Talvez
os skatistas se julguem mais especiais que essas pessoas, então -
ele pensou.
Depois,
nos degraus rentes ao calçadão, os grupos de turistas, dos
motoristas de furgões de turismo. E para lá do meio fio, as vans e
trêileres estacionados, e de onde emanava um olor de gordura,
salsicha, carne de hambúrguer, atum, maionese e mostarda.
Oito
e quarenta.
Então,
os casais, os skatistas, os motoristas de furgões de turismo, os
turistas, os que trabalhavam nos trêileres de lanches, os garçons,
os comensais dos restaurantes fronteiros, os frequentadores dos
clubes de ginástica e os passantes sobre seus tênis, sandálias,
patins, bicicletas, triciclos, skates, patinetes, carrinhos de bebê,
tróleres para catar lixo reciclável disseram em perfeito uníssono,
voltando-se para ele:
-Enfim,
está ali um homem só.
E
ele tomou o smartphone e discou o número.
Ainda
uma vez.
Seu Ruy,
ResponderExcluirO velho (blog) parado no tempo, onde me levaram as moscas e as microscópicas cartas (que eu penso serem letras), acabou por me trazer ao novo, onde o pulsar está em dia com os últimos acontecimentos. Escrever aqui parece ser muito triste ;-)
curi ÔsÔ
é, de início, faz todo sentido serem 'letras' em vez de 'cartas', não é? o contexto é o de prisioneiros políticos, conspirações, salazarismos, códigos, cifras. além disso 'letras' dá uma aliteração e tanto com 'liam': "moscas liam letras microscópicas". mas parece que tanto no alemão quanto no sueco o termo em contexto segue mais perto de 'cartas' mesmo.´
ResponderExcluirde, qualquer forma, a hipótese é considerável, irmão de olhos do dr. t.j. eckleburg.