quinta-feira, 29 de março de 2012

Vão Gogo, o descendido Guru do Méier



O desagradável de abrir esses necrológios é ouvir dizer que Millôr Fernandes foi um artista multimídia antes do tempo. Não foi, não. O conceito de multimídia é que segue sendo um Millôr Fernandes tardio. O que surge é bem outra coisa, pautada por novas facilidades técnicas e gera novas percepções. Ora, desde que há artistas, há multimídias. O que pensar de Da Vinci? Ou antes dele do universalismo dos medievais? Não poderia ser diferente. E há praticamente uma sinonímia aqui. É de artistas transitar por todas esferas de sensibilidade ou canais de expressão, embora nem sempre precisem falar a respeito ou agir assim. Ou ainda explorar todos os veios com especialização. E seja até mais prudente não fazê-lo, em determinados circuitos. 
De resto, Millôr Fernandes não é propriamente um artista. Ele é um jornalista postado à porta de ideias férteis, um diarista da criação, um artesão bem informado sobre seu tempo. Sujeito de grande vivacidade de expressão, antes do sujeito ser morto por Barthes. De ganas expressivas. Só isso? Como o são ou foram Sérgio Porto, Ivan Lessa, Ruy Castro, Paulo Francis e alguns cronistas mineiros. Como o foi Rubem Braga. Como em certo sentido o foi um professor dessa geração: Otto Maria Carpeaux. 
Carpeaux, sim, talvez haja transcendido o jornalismo, a crônica na direção de esferas mais abstratas. Ou seja, de uma obra. Como, de resto, Lúcio Cardoso o fez. Ou Mário Faustino. É por isso que se ouve dizer que as frases de Millôr serão lidas daqui a cem anos. Mas não que Millôr será lido daqui a cem anos. 

Livre pensar foi só pensar. E uma vez Millôr Fernandes disse: quem me encontrar, me entregue para a Sílvia Pfeifer”. Outra vez, disse que "um idiota nunca aproveita a oportunidade. Na verdade muitas vezes o idiota é a oportunidade que os outros aproveitam".
Há três problemas com as frases de Millôr: 1) elas portam um excedente de wit; 2) funcionam melhor atadas a um contexto estrito de actualidade ou conjuntura política, tempo, lugar - ou seja, pouco conversam entre si; e 3) não suscitam que se vá atrás do solo que as fez germinar. Até porque esse solo não existe sob forma de obra consolidada.
Há autores que fizeram muito pouco para consolidar uma obra, no sentido convencional. Mas a obra está lá. A despeito deles. Mesmo não impressa em livro, gravada em disco, registrada em filme, instalação, vídeo, editada em partitura. A obra, claro, não é só um rol, um acervo de coisas feitas, materializadas, da qual se pode partir uma lasca. É algo menos ostensivo, mais misterioso. Sensibilidade que se nota para além da materialidade do realizado. Do organizado, vamos dizer assim. Obra é algo mais desorganizado. Que ocorre a despeito de uma vontade de controle. A obra, quem diria, é também algo mais virtual. 
Basta pensar em Torquato Neto. Em Ana Cristina Cesar. Leminski poderia ter sido mais sistemático com a sua? (E, no entanto, entenda-se, não é esse esforço de sistematização, no frigir, o que determina se será lida ou não lida. Nem mesmo se será obra.) 
Há, aqui, uma rarefação. Sobretudo os dois primeiros, Torquato e Cesar, publicaram pouco ou esparsamente em livro. E, no entanto sentimos: ambos têm uma obra. Ao contrário deles, Millôr Fernandes não tem. Millôr Fernandes, que escreveu e montou peças; publicou dezenas de livros; colaborou copiosamente em revistas e jornais; foi cartunista para veículos da grande imprensa; e é um tradutor considerável. Ele, que participou diretamente da vida cultural do Rio de Janeiro, desde quando a cidade ainda era ou recém-deixava de ser a capital do país, regurgitava com bossas, cinemas e neo-concretismos novinhos em folha. Ele que, a rigor, tem uma obra. Mas, a despeito de tudo isso, vejamos, ninguém nomeia qual seu livro predileto entre os de Fernandes. E por quê? Porque esse livro, a rigor, não existe. Todos falam de frases. De algo isolado. De mônada. Ou remetem-se a charges e cartoons pontuais. Ou ainda, à presença de espírito de Fernandes, que seria, segundo os íntimos, inclusive maior em sua fala que em sua escrita. 
Ok, nada ok. Os caras estão morrendo todos e a rodo. Ainda bem que ainda temos Ivan Lessa e Veríssimo. Por quanto tempo? Quantas frases mais? Saudades de Fernandes. Em especial, daquele de Veja aí pelos anos 70.
Bashevis Singer chamou a um de seus personagens "o Espinosa da Rua do Mercado". E para indicar essas figuras que ficam a meio termo entre certa erudição autodidata e o conhecimento mais pé-no-chão, senso-comum, terra-à-terra, concreto, local. Hoje, ambos, erudição auto-inflingida - sem orientador, sem guia turístico que "facilita" as teorias - e conhecimento do local são tão mais raros e urgentemente necessários a uma sociedade cuja inteligência inviabilizou-se no rito hierático dos departamentos. Um tanto assim como antes do logro das pós em humanidades, fôra o ambiente bacharel que necrosara o literário meio. Hoje ser pós-graduado equivale a antigamente ser bacharel. É a mesma esparrela onde se encontra mais casca que sumo.
Fernandes, no entanto, era alguém que passava ao largo disso. Quer dizer, vivia nesse meio-termo entre calçada e cátedra. Ainda na hesitação entre o bonde e a árvore, para lançar mão da fórmula de Drummond. Fernandes fez o primeiro grau incompleto. Mas traduzia do alemão. Não fez pós-graduação e, ainda assim, era detentor de meios, conhecia conceitos, dominava línguas, histórias, geografias, noções de estética que a maioria dos atuais doutores em letras desconhece. Daí que os apostos que incidem sobre ele contenham a fórmula agregada por Singer: conjugar província e cosmos. Fernandes era "o guru do Méier", "o La Fontaine de Ipanema", etc. E ele próprio, claro, estendia isso a alguns de seus personagens, caso do Vão Gogo, pseudônimo sob o qual assinou seus textos e cartuns nos primeiros anos de carreira. [Aqui, de resto, a insistência em chamá-lo de Fernandes vai em calculada contramão. Numa que não quer render-se à deslavada, especiosa, intimidade de tratá-lo por Millôr, um tanto como se refere a uma sorte de grife. Uma grife em piloto automático da mente. Pois Millôr infelizmente foi convertido muito nisso. Numa grife].
Se existe certo grau de obviedade, de organicidade intelecutal no humor de Millôr Fernandes - como existe no de Chico Anysio ou no de Chico Buarque - essa obviedade é expressa, em frequência, de uma forma mais atraente que nos queixumes pseudo-eruditos de gente como Diogo Mainardi, para um recorte analógico, desgeracional e entre os que se situam na crista da mídia. Agora, o amor de Fernandes pelas formas curtas, sintéticas, seu conhecimento delas - que responde por sua verdadeira instância moral, digamos assim - também o vacinaram contra aquele horrendo sentimentalismo mais meloso, que a gente encontra em nove de dez blogues que visita rede a meio hoje em dia. Fernandes manejava forjas de frases. Coisa de efeiteiro. De mestre do blague. De phrase-maker. De capataz das formas breves. Isso ele tinha em comum com os argentinos. [Ou com José Paulo Paes, que 'todomundo' já esqueceu, inclusive seus amigos concretistas.] Essa oficina feroz para chegar ao enxuto. O gosto por certa pose da palavra. Uma pose e uma posse da frase pequena, da respiração curta, que vai por haikos e epigramas, que pode ser lida também em Paulo Leminski - um que partiu de premissas tão distantes das de Fernandes. E, contudo, em um ou outro avulso passo, como os dois escrevem perto. Para depois distanciarem-se abissalmente. Para depois mergulharem em diferentes rumos na Fossa das Marianas.
O certo é que um a um, os nomes que faziam as revistas, os jornais, a TV, de meios a fins do passado século - meios de comunicação tremendamente mais hegemônicos e oligarcas que os de agora, pós-internet - seguem desaparecendo nestes inícios de anos 10. Eles são, ainda que não queiram, aquelas últimas versões de intelectuais à francesa, com a respeitabilidade paternal, patriarcal de consciência e nação. Capazes de assinar manifestos e análogas firulas ou esparrelas. Uma beleza desaparece com eles no instante em que surge uma outra. Também vulnerável. Efêmera. Como  para confirmar este curta-metragem de Fernandes que Leminski assinaria: 

não é segredo
somos feitos de pó
validade e muito medo

E, de outro modo, muito provavelmente a impressão de que eles eram eternos provinha apenas do prosaico fato de que a geração Pasquim  - e depois dela a geração MPB -  jamais se aposentou, embora haja sido precedida por uma geração em que o artista saía de cena à medida em que ficava velho ou mesmo atingia a meia-idade. Pensem nas vedetes, nas cantoras do rádio, em Dick Farney. E até esse envelhecer já comporta distâncias que não se medem a gritos entre, por exemplo, um Millôr Fernandes e um Chico Buarque. Ou seja, o que desapareceu efetivamente foi a figura do ancião, sábio e unânime. Um pouco inofensivo sexualmente. Algo que Fernandes, a seu modo, talvez ainda haja involuntariamente encarnado. E justo ele, que almejava ser o contrário de um pai, por iconoclastia.
No fundo, Millôr Fernandes era um moralista. Mais do que ele gostaria. E nem sempre no melhor senso da palavra. Seu livre-pensar rendia-se amplamente aos programas e projetos de esquerda. Quer dizer, àquele comunismozinho requentado, ralo, tacanho, à brasileira, louco para prospectar "alienações", para patrulhar ideologicamente - a exemplo do que faz o politicamente correto hoje com os "preconceitos". Foi o ambiente em que esteve imerso até a medula. Em que é mais razoável encontrá-lo. Mais até do que ele próprio, em seu auto-reivindicado anarquismo, poderia situar-se. É necessário, no mínimo, ter a lucidez de um Graciliano para escapar incólume a um ambiente assim. Nem todo mundo consegue.
À altura do desbunde, quando o sopro da contracultura finalmente lufou por aqui, aí pelos anos 70, tivemos retratos mais nítidos de quem era Millôr Fernandes. Reparem abaixo como - parodiando em reserva certo preceito de Catatau (em que Leminski indagava se "na bunada não vai dinha?) - Millôr Fernandes tanto escreveu em tom de censura (vejam que apela para uma espiritual "alminha"!), quanto rotulou de "permissiva" a maior liberalidade da recém-ética sexual dos jovens:

Eu também gosto
De permissividade, 
Garotada.
Mas, aqui entre nós,
E na alminha,
Não vai nada?

Não é assim também o recado (e o recato) de um intelectual que assume a condição do pai, do grande pai, do Padre, dirigindo-se com alguma complacência à "garotada", a solicitar-lhe um pouco mais de espiritualidade? Pois foi assim. De recato em recato. E, no entanto, se há um mérito na "mimeógrafo generation", é justamente o de um pluralidade de vozes que racha. Uma pluralidade como se não vai achar, então, nem entre os pasquins e engagés, nem entre os beletristas e bachareis da academia, nem entre os trotskistas, nem entre os católicos,  nem entre o udenistas ilustrados, nem entre os neo-concretistas, muito menos entre os concretistas. Nem mesmo entre os letristas da MPB. A "mimeógrafo generation" tem, assim, o mérito de, um tanto a despeito de si própria, haver sido a primeira geração de intelectuais no Brasil recortada para além da hegemonia. Para além de um certo consenso ou centralismo democrático à Gramsci. Ela rompe com esse centralismo um pouco programático e maniqueísta. Com essa hegemonia ainda tão deliberadamente buscada, com o espontaneísmo de um projeto naturalista, pela geração de Millôr Fernandes e seus companheiros, nas já longínquas décadas em que, escrevendo contra a censura, produziam novas censuras. 

2 comentários:

  1. maneira a forma como tu tratas a coisa. a analogia millôr-leminski é insana! eu nunca tinha pensado nisso >:) mas acho que tu foste um pouco duro com ele também.

    Nanda

    ResponderExcluir
  2. sim, O artigo é deliberadamente injusto com Millôr Fernandes. Talvez porque outros artigos depois de sua morte não tocam em questões tocadas aqui. Agora, é injusto porque ele também compensou essas coroneladas, essas patrulhas da época da “Redentora”, por algumas posturas independentes que revelam outro homem. Menos ditador, monopolista, patriarcal, cordial (no senso buarqueano). Quando? Quando por exemplo o país inteiro desaba na cabeça de Marília Pêra, por ela haver apoiado Collor na ´primeira eleição direta – direito dela, de resto, pois, por mais que se discorde, onde está o senso de democracia? Millôr foi talvez um dos poucos a discordar dessa esparrela condenatória, que queria os ossos, o sangue da atriz. E um tanto sob o pretexto, o pano de fundo burro, purista, naïf de que não havia corrupção na esquerda. Ora, nesse campo, difícil perceber quem é mais “esperto”: Zé Dirceu ou Collor? Muito provavelmente o primeiro, que não foi pêgo. Há um lúcido artigo de Perry Anderson em que ele descreve Zé Dirceu como um “salteador”. Faz sentido.

    ResponderExcluir