quarta-feira, 1 de setembro de 2010

"O local não é um lugar, mas..."

Ruy Vasconcelos, Contraplano de Esfinge, 2008


Localia, uma desopressão
-ou Contra a Academia do modo como ela se organiza para entender a questão do local, em especial nos cursos de Humanidades.


A questão do local. O modo como essa questão é crucial. Como se pode abordá-la?
É claro que o local, por um vértice e entre outros, está contido em outra questão, primeira, anterior, mais básica e que pouco tem a ver com o que o termo local sugere no senso mais comum: o assunto. E, logo ao delicado equilíbrio entre o assunto e a forma de conversá-lo. Mesmo que o assunto, em circunstâncias determinadas, possa ser visto como um mero pretexto diante do modo como - seja ele qual for, seja em que parte do mundo se dê - é abordado a partir de uma série de dispositivos e preconcepções.
Ninguém pode abster-se de dispositivos, preconcepções. E eles podem ser resumidos sob a rubrica da mundividência de quem está realizando um projeto de criação ou pesquisa - não há separação entre essas duas instâncias, no fim de tudo. O pesquisador segue em sua pesquisa com o conhecimento que acumulou ao longo de um determinado lapso de tempo. E segue acumulando "em vínculo" com o assunto. Este "em vínculo" é importante porque dele surtem as associações mais inesperadas, que são as que realmente importam, valem a pena. As que portam mais mistério. E se desdobram por exegese. As mais intuitivas. As mais anômalas, vamos dizer.
O problema, aqui, no entanto, é que o estoque de ideias formadas a partir de um local -- isto é de um lugar subjetivado pela sensibilidade do pesquisador em conjunção com as formas coletivas estabelecidas pela memória (o que chamo de "formas da história") -- pode ser muito escasso a depender do grau de projeção e ressonância que esse dito local propicia. Uma cidade que é um centro regional, como Fortaleza, emite muito pouco se comparada com um centro regional em língua inglesa num país historicamente mais ao centro do que usualmente é rotulado de Ocidente. Isso equivale dizer que centros como Atlanta, Birmingham, Melbourne, San Diego ou mesmo Jaipur, Patna ou Durban emitem bem mais ressonância cultural do que Fortaleza. Estão mais presentes em outros cantos e fóruns do planeta.
Mas tornando à questão do local, em épocas passadas esse conhecimento, versátil e aberto às associações inusitadas (uma vez que pouco tutelado pelas normas acadêmicas) era chamado de "erudição". Ele pode ser encontrado, sobretudo, nas páginas de teóricos que assumiram uma postura radicalmente antiacadêmica, no sentido de manter uma "carreira": Simmel, Huizinga, Benjamin, Flusser, et alli.
Nos diascorrentes, ao que parece, "erudição", como termo, soa pretensioso, e guarda um travo, algo, arcaico. Infelizmente. Porém é a erudição quem possibilita essa ponte, ainda não avariada, entre as ideias mais abstratas, gerais e a riqueza de possibilidades contida nos diferentes planos de camadas, discursos e significados, coerências e incoerências, estoque de beleza e graça, ou de tédio, estagnação, fealdade do quotidiano de um determinado local.
Daí que soa sempre gratuito lançar mão das teorias de Benjamin, Barthes, Bazin, Borges, Bakhtin..., se esse lançar mão não mancha a teoria original com o tisnar mais prosaico do quotidiano e das sinestesias que só um profundo mergulho na instância do local pode propiciar. Ou seja, se o pesquisador, enquanto leitor, não conversa com o lido, apenas aceita-o ipsis litteris. E é o que ocorre com a maioria dos professores e orientandos. Essa pior sorte de reverência: subserviente. A reverência não desejada pelos próprios autores. Mas isto ocorre porque professores e orientandos mal são capazes de LÊ-LOS num corpo a corpo, recorrendo, quase sempre, a especialistas e intérpretes - "interpretação", essa palavra espúria que, ora, é mágica via psicanálise e seus transbordamentos. Pode-se defender a palavra exegese mas não a palavra interpretação. Toda a psicanálise assenta-se na idéia de "interpretação" e aqui reside um de seus - não poucos - equívocos, pois como diz George Oppen:










Um analista tem tanto direito quanto qualquer outra pessoa de ser um idiota. O que admira é a aptidão do paciente para aceitar isso [o trabalho de análise], meio como se todos estivéssemos jogando uma partida de xadrez em que tão-só fosse necessário que se observassem as regras do jogo. Da mãe, você tem ciúmes; do pai – ui, rapaz – esse é um perigo; o bispo move-se enviesado. Se não for louco, é certamente o consolador de Jó: “você deve ter pecado”. Acho que é bem insano. Acho que é bem medonho. O que me parece mais medonho é que tal prática tornará impossível que maridos e esposas, pais e filhos conversem entre si sobre coisas aterradoras e sérias, porque eles não podem, obviamente, falar desse jeito. Essas coisas só podem ser levadas a sério num ‘nível profissional’.
[OPPEN, Selected Letters - tradução nossa]

No entanto, na maioria dos casos, digamos, os universitários brasileiros [guiados por seus tutores ou "orientadores"], mesmo alguns daqueles com certa argúcia para a associação, mesmo os dotados do talento necessário para envolver seu assunto em uma heteronomia, no fim de tudo apenas produzem algo serial. E naufragam nos mares da interpretação. Pois negligenciam as associações entre teoria e quotidiano. Especialmente aquelas mais misteriosas, menos teleológicas ou tuteladas por um sistema apriorístico.
Ora, são as livres associações heteronômicas que salpicam o assunto de intuição, mistério, passando ao largo dos emasculados esquemas teóricos explicativos, redundantes, ocos se não enganchados nas realidades locais e específicas. Mas desgraçadamente, em geral, é apenas essa redundância teórica e más paráfrases o que se encontra em monografias, dissertações, teses. O que as converte em mera informação repassada em clichê. Informação fria, sem nenhuma poesia ou verdadeiro calor humano. E em intervalos cada vez mais breves - como na moda. Algo que, se posto à lupa, não expressa a subjetividade do autor da pesquisa conveniada a uma re-flexão sobre as circunstâncias reais e concretas do quotidiano em que o próprio autor/ realizador/ pesquisador insere-se - uma vez que por desconhecimento de causa histórico, antropológico, etnográfico, linguístico, esse quotidiano é mantido, na maioria dos casos, ao largo de sua re-flexão. É este manter ao largo o local - sem tomá-lo com exotismo folclórico ou ridículos espasmos ufanistas, ou a preocupação em achar no mapa algo que referende a sede da esquerda - que azeita a engrenagem gasta, cega, fechada sobre si, da academia. O basilisco que remorde o próprio rabo.
Isso vale para qualquer assunto. Vale para qualquer expressão. Ou para usar um termo mais prezado, hoje em dia: vale para qualquer suporte - som, imagem, formas no espaço, tipos no papel, etc. Os suportes constituem, na verdade, apenas veículos de expressão mas, em vez de fundar confinamentos especialistas, deveriam, do contrário, converter-se numa importante ferramenta para a mente arejada; a que, de fato, cria.
Podemos chamar essas criações de artesanias. E constatar que vivemos num tempo em que as artesanias, que compõem um leque muito vário de expressões com seus respectivos suportes, estão mais do que nunca ao alcance da mente criativa, se ela possui um mínimo domínio dos meios capazes de estruturar uma linguagem.
Aqui, a questão é simultaneamente semiótica e tecnológica.
Nos diascorrentes, é mais fácil ser ao mesmo tempo poeta, tradutor, cineasta, músico, sonoplasta e, vamos dizer, etnógrafo. E justo pela desnecessidade de especificamente pinçar uma dessas expressões como exponencial ou determinante. Porém, do contrário, sabendo de seus limiares, conjugá-las na medida certa de seus condimentos até o ponto em que se gratine o resultado final. Embora a maioria das pessoas teime em compreender a diversidade dessas expressões ao largo de uma instância da heterodoxia, que muitos tomam, erroneamente, tão-só como um sinal de dispersão ou fragmento vazio ou mau ecletismo - uma vez que não respaldam, sancionam ou resilenciam uma teoria integralmente. E uma teoria, em geral, gestada em latitudes muito distantes.
A tutela da conformidade com a teoria embute uma instância política. Uma instância de estagnação política.
O que é necessário: deformar essas teorias - em geral europeias ou norte-americanas - com a força de uma elocução local. Poucos têm tutano para tanto. Certamente não a academia en bloc.
Pois a academia, à sua vez, pouco tem feito para suavizar o grau desse confinamento. Do contrário, porquanto ela dá uma ênfase equívoca à questão da classificação. Com se a classificação dentro de redutores esquemas teóricos fosse a porta de saída. E não apenas uma, entre muitas janelas que se têm adiante. Para espiar o mundo.
O canto de sereia da classificação passa por uma palavra: especialização. "Fulano é um especialista em cinema francês da época da Nouvelle Vague". Ou "a especialidade de Fulano é cinema expandido". Ou ainda "fulano é músico". Mas, reparem, no último caso a coisa ainda segue vaga. E para a academia é importante decretar uma instância classificatória e especializada: "músico interessado em eletroacústica". Ou esticando o ainda: "músico que trabalha com samplers e com as facilidades e potencialidades dos softwares, editores e mixers de som virtuais aplicados à classificação dos ruídos urbanos".
No último caso, reparem ainda melhor, tudo é espoliado se pensarmos em termos de criatividade.
Pois algo que pode transformar qualquer unidade doméstica de PC ou Mac, razoavelmente bem calibrada, a downlodar softwares correlatos para a confecção de uma espécie de estúdio doméstico deixa de ser uma ferramenta da heterododoxia para converter-se num pilar da especialização. E no respaldo cego ou parafrásico da teoria.
Se tomado contra a especialização, esse "estúdio doméstico" - ao alcance de todos - nada mais se propõe a ser que uma ferramente de onde (e por intermeio da qual) se pode testar, experimentar e registrar uma grande variedade de procedimentos. Podemos chamá-lo de "suplemento material do pensamento". De resto, procedimentos e meios cada vez mais efêmeros, mas nem por isso menos importantes.
É por isso que a academia vem se constituindo no nicho menos interessante de análise das novas realidades - inclusive das virtuais -, em que os dispositivos convertem os artistas não em especialistas avulsos em música ou filme ou poesia ou arquitetura, mas, através deles, em fruidores de uma realidade local e de um circuito quotidiano de experimentos e ações. Na mão oposta, os procedimentos acadêmicos convertem roboticamente esses pesquisadores em operadores de linhas de montagem, em estúpidos manufatores de redundâncias, de más paráfrases. Incapazes de cerzir, coser linguagens várias em uma só, com real eficácia e deleite de expressão. Aquela eficácia, que nada tem a ver com eficiência ou com a recepção do público, e que, paradoxalmente, é hoje muito mais disponibilizada pelas tecnologias da informação. A eficácia que tem mais a ver com o que é 'witty'.
Essas tecnologias, sem embargo, são importantes apenas por intermediarem esse processo tornando-o menos dispendioso. E, no mais, serão, em breve, tão-só sucatas em um ferro velho.
Tomemos no caso um filme. Um filme documentário.
Chegamos num ponto em que se um documentário for apenas um documentário, nos moldes mais convencionais, ele se equivoca. Porque ele deve mais propriamente flertar com uma relação radicalmente rente ao quotidiano. E, como o quotidiano nada tem de "especializado" - o procedimento do pesquisador deveria muito mais cortejar essa 'desespecialização'. E jogar a teoria na fruição do cotidiano sinestesicamente.
Quer dizer, a poesia mais ortodoxa, a impressa nos livros é apenas um tempero a mais, para montar tudo que no filme a ver tem com a palavra. Para emprestar-lhe um selo de medida - poetas são, acima de tudo, grandes especialistas em, além de livres associações, intervalos, precisas unidades de ritmo. E mesmo que essa especialização seja de suma importância, ela assoma como apenas uma modesta parte de toda a tarefa de uma mente arejada.
Adiante, num filme, tão ou mais importante que palavra são sons desarticulados: os ruídos do mundo, que também carecem ser manipulados e orquestrados seguindo uma determinada ordem, um critério, de modo que soem com uma unidade análoga à de um arranjo musical. Eles constituem uma paleta de sons - assim como existe uma paleta de cores ou uma concepção de enquadro para as imagens. E, enfim, há nessas imagens algo que depende de muitos intervenientes, porém sobretudo do conhecimento de causa - em especial histórico - dos diversos modos de organizá-la e editá-la.
Somente a conjunção desses elementos de um modo lúcido - mas também intuitivo e heterônomo - pode conformar a base de um bom documentário. E, logo, esse documentário irá sempre assomar com uma sorte de ensaio antiacadêmico [desnecessário dizer que antitelevisivo]. Pois o modo como se organiza nossa academia fere de morte essa heteronomia: i) ao exigir que haja um extremado especialismo; ii) ao decretar que se deve comprovar a tese de modo explícito - uma visão determinista da relação causa/efeito e bastante herdeira de certo esquerdismo equívoco [enquanto maniqueísta] cultivado no nefasto enquanto da ditadura, cá no Brasil; iii) ao impor que a linguagem em que se dá essa expressão seja tutelada por uma notação burocrática de citação, referência bibliográfica, aposição de epígrafe, etc estritamente normatizadas. Dessas três instâncias, no entanto, de longe, a mais daninha constitui a exigência da confirmação quase cega da tese inicial - que em geral é lida pelo graduando em trabalho de final de curso, ou pelo pós-graduando, em livros traduzidos, nos quais boa parte - e por vezes a melhor parte - da questão da linguagem resta embutida na questão da tradução. Este último fenômeno, para o qual muito poucos estão atentos implica que muito do que é lido é tão-só parcialmente, tangencialmente o pensamento do autor, que está, de fato, proposto, em todas suas reverberâncias, no seu idioma de origem.
Postas estas questões simples e preliminares podemos passar a uma segunda questão, mais sutil, que diz respeito a instância do local. Como vimos, o que sai da academia não deve ser levado a sério - na vasta maioria dos casos - porque não constitui nenhum real compromisso entre o artesão ou autor e as realidades que o cercam para além da academia. Que o cercam em quotidiano, no prosaísmo de todas suas atividades, tanto acadêmicas, como sobretudo não acadêmicas - estas, muito mais numerosas, precedentes e urgentes - que qualquer teoria preconcebida ou tese a comprovar a partir de autores que, na vasta maioria dos casos, nada têm a ver com elas, em larga porção de suas obras.
Tudo isso converge para a questão, de facto, do local num estrato mais complexo. A que decreta, enfim, a crucialidade da coisa toda: por que essa teoria gestada na academia não tem a ver com essas realidades e com esses quotidianos? Resposta: porque não há ligações, interstícios, associações entre a teoria adotada e a realidade experienciada ao longo dos dias.
A universalidade do discurso, sabemos não é de hoje, passa pela modesta atenção que se pode dispensar ao local, em sua particularidade. Uma atenção exercida de espírito e corpo inteiros. De espírito e corpo intensos. Uma modéstia e gentileza de temperamento. Ela se dá sob o modo de sinestesias, associações (convocações de elementos aparentemente distintos, disparatados, distantes, enmonadados). Estas associações podem, a princípio, assomar despretensiosas; mas, se realmente bem sacadas, são, em verdade, as únicas que participam do cortejo majestoso através do qual se pode chegar aos circuitos da universalidade.
A questão do local é tão fascinante quanto negligenciada. Em parte pela falta de memória. Pois só a memória afetiva propicia essa sutil contradança entre teoria e quotidiano. Abre uma brecha para uma forma de elocução que, ao convocar as associações misteriosas e poéticas, os flertes entre o especialismo e o prosaico, criam novas artesanias. Esse, no entanto é um movimento, uma contradança quase sempre evitada pela maioria dos pesquisadores/ artesões/ estudiosos ao tratar de uma determinada questão - seja ela qual for. Pois toda questão encontra no local uma correlação sumarenta, distinta. O selo final de que a aplicação da pesquisa resguarda com o local um vínculo secreto e, por vezes, quase indizível  ou tão-só pressentível, implicitado, em sua pluralidade de fatos, belezas, empirias, bizarrices.
Ou evidentes antimaniqueísmos. O conhecimento do local, pode, por vezes, não ser prazeroso ou solar. É porém um processo pessoal de libertação. De firmar-se no mundo com a sola dos próprios pés.


NOTA - em geral, o "orientador" dota seu "orientando" de "ferramentas de carreira"; o verdadeiro artista, no entanto, aguça a capacidade dos sentidos. A sua própria, a do seu e a de outros povos. A primeira tarefa é burocrática, funcional. A segunda, no entanto, é física (no sentido do corpo: elastecer suas potencialidades perceptivas) e espiritual (no sentido de comprazer, deleitar a mente pela engenhosidade da ideia).


Fortaleza, 01/09/10

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