Cindy Sherman, Untitled Film Still #3, 1998
Segue a tradução de trecho de um famoso ensaio de David Foster Wallace escrito em 1993. O artigo dá testemunho da fertilidade da mente de Foster Wallace. E de o quanto ele não se eximia de pensar em bloco a questão do escritor de ficção desde dentro. Concebendo-se a si próprio como parte do bando [bunch]. Não menos é comovente que haja uma visceral busca de verdade no que escreve. Como no trecho de artigo que se segue onde se toca na relação entre ficção e televisão via voyeurismo. Talvez por tudo isso, Foster Wallace seja um dos mais amados escritores americanos dos últimos tempos, e sua morte prematura, aos 46 anos, em setembro de 2008, tenha despertado tanta comoção. O título original do artigo é E Unibus Pluram: Television and Ficction in U.S. e pode ser lido na íntegra, em inglês, aqui: http://jsomers.net/DFW_TV.pdf. Encontra-se dividido em duas metades: 1. Act Natural (Aja Natural; ou Seja Natural, se quiserem) e 2. The Finger (O Dedo). O que segue abaixo é a tradução de um considerável excerto da primeira parte:
E Unibus Pluram: Televisão e Ficção nos Estados Unidos.
Aja Natural
Escritores de ficção, como espécie, tendem a comer com os olhos. Tendem a esconder-se e encarar. No momento em que escritores de ficção cessam de mover-se, começam a esconder-se e encarar. São observadores natos. São espectadores. São aqueles no metrô cuja desinteressada fixidez guarda, de algum modo, algo repugnante. Quase predatório. Isto se dá porque as situações humanas são o repasto dos escritores. Ficcionistas observam outros seres humanos do modo como basbaques diminuem o passo ante batidas de carro: eles cobiçam uma visão de si próprios como testemunhos.
Porém ficcionistas como espécie tendem a ser terrivelmente auto-conscientes. Mesmo para padrões norte-americanos. Dedicando jardas de tempo produtivo ao estudo meticuloso de como as pessoas deles se aproximam, ficcionistas também gastam um horror de tempo produtivo a especular achacosamente como eles se aproximam das outras pessoas. Como aparecem, como parecem, como a borda de suas jaquetas deve flutuar à solta, ou se há marcas de batom em seus dentes, ou se as pessoas que eles estão observando podem eventualmente surpreendê-los como repugnantes espiões e bisbilhoteiros.
O resultado é que a maioria dos escritores de ficção, observadores natos, tendem a não apreciar serem objetos da atenção alheia. Serem observados. As exceções à regra –Mailer, McInerney, Janowitz – criam a especiosa impressão que muitos tipos de beletristas gostam da atenção das pessoas. Não é assim com a maioria. Os poucos que gostam de atenção a obtêm naturalmente em maiores doses. O resto de nós, menos, e comemos com os olhos.
Muitos dos ficcionistas que conheço são americanos com menos de quarenta. Não sei se ficcionistas com menos de quarenta assistem mais televisão do que outras espécies americanas. Os estatísticos reportam que se assiste cerca de seis horas de televisão em um lar americano médio. Eu não conheço um único ficcionista que viva em um lar americano médio. Suspeito que Louise Erdrich talvez viva. Falar a verdade, eu nunca vi um lar americano médio. Exceto na TV.
Assim meio de cara se pode divisar um par de coisas que assomam potencialmente relevantes, quanto aos ficcionistas americanos e sua relação com a televisão nos Estados Unidos. Primeiro, a TV opera um bocado de pesquisa predatória por nós. Como seres humanos, americanos conformam um bando evasivo e proteico, na vida real, dificilmente passíveis de serem tratados univocamente por um território literário que moveu-se de um naturalismo darwinista a uma cibernetismo pós-posmoderno em oitenta anos. Mas a televisão sobrevêm equipada com esse trato sintético. Se desejarmos saber o que é a normalidade americana – o que os americanos aspiram encarar como normal – podemos confiar na televisão. Pois toda raison da televisão é refratar o que as pessoas querem ver. É um espelho. Não um espelho à Stendhal refletindo o azul do céu e a poça enlameada. Está mais para o espelho do armário de banheiro diante do qual o adolescente monitora seu bíceps e determina seu melhor perfil. Essa espécie de janela sobre a tensa auto-percepção norte-americana é de fato inestimável, friccionável em sabedoria. E escritores podem ter fé na televisão. Há um bocado de dinheiro em jogo, afinal; e a televisão contém a melhor amostra que demógrafos dedicados às ciências sociais aplicadas têm a oferecer, e esses pesquisadores podem assim determinar precisamente o que os americanos nos anos 90 são, querem, veem: o modo que nós como audiência desejamos nos entrever. A televisão, da superfície ao fundo, diz respeito a desejo. Falando ficcionalmente, desejo é o açúcar da dieta humana.
A segunda coisa notável é que a televisão parece ser uma absoluta dádiva divina para uma subespécie humana que adora observar as pessoas mas detesta ser observada. Pois a tela da TV propicia um acesso em mão única. Uma válvula física de teste para bolas. NÓS podemos vê-LOS; ELES não podem NOS ver. Podemos relaxar, desapercebidos, enquanto comemos com os olhos. Creio que é por isso que a televisão tem também tanto apelo para solitários. Para enclausuramentos voluntários. Cada ser humano solitário que conheço assiste bem mais que a seis horas médias diárias dos outros americanos. O solitário, como o ficcionista, adora a observação de mão única. Pois as pessoas solitárias são em geral solitárias não por conta de horrendas deformações ou odores ou algo que as torna repulsivas – de fato hoje existem grupos de suporte social para pessoas com essas precisas características. Solitários tendem a ser solitários porque se recusam a enfrentar o custo emocional associado a se estar cercado de outros seres humanos. Eles são alérgicos a pessoas. As pessoas os afetam de modo forte em excesso. Chamemos o americano solitário médio de Joe Briefcase [Nota do tr.: algo como Zé Pasta (de documentos, dessas usadas por executivos. Mas a expressão também pode ser traduzida como "breve caso": Zé Brevecaso.)]. Joe Briefcase tão-só detesta o fluxo de auto-consciência que tão estranhamente surge somente quando outros seres humanos reais estão à volta, fixando, suas antenas-humanas eriçadas. Joe B. teme o modo como ele pode aparecer para observadores. Ele se põe ao largo do estressante jogo americano do pôquer da aparência.
Mas solitários, em casa, sozinhos, ainda anseiam por visões e cenas. Daí a televisão. Joe pode encará-LOS, na tela; ELES permanecem cegos para Joe. É quase como voyeurismo. Conheço pessoas solitárias que enxergam a televisão como uma verdadeira deus ex machina para voyeurs. E boa parte da crítica, da virulenta crítica, menos ponderada e mais salpicada sobre as redes, anúncios comerciais, e os espectadores indistintamente, tem a ver com a acusação de que a televisão nos tornou uma nação de complacentes voyeurs de queixo caído. A acusação constitui uma inverdade, mas por estranhas razões.
O clássico voyeurismo é espiacional: observar pessoas que não sabem que você está lá no que prosseguem com as prosaicas mas eroticamente densas tarefas da vida privada. É interessante a medida de o quanto o clássico voyeurismo envolve instrumentos de janelas emolduradas por vidros, telescópios, etc. Talvez essa moldura vítrea é o que faz a analogia com a TV tão tentadora. Mas a assistência da TV é um animal diferente do peeping tourism. Porque as pessoas que assistimos pelo vidro emoldurado da TV não são realmente ignorantes do fato de que há alguém as assistindo. Em verdade, uma vasta porção de alguéns. Em verdade, as pessoas na televisão sabem que é em virtude dessa enorme massa de alguens comedores com os olhos que se dá a própria razão de elas estarem na tela, ocupadas com gestos largos, de nenhum modo prosaicos. A televisão não propicia o verdadeiro espiacionalismo, porque a televisão é performance, espetáculo, o que por definição requer observadores. Não somos voyeurs, aqui, portanto. Somos meros espectadores. Somos a Audiência, megametricamente numerosa, embora com frequência a assistamos sozinhos. E Unibus Pluram.
Uma das razões pelas quais escritores de ficção parecem repelentes no plano pessoal é o fato de serem realmente voyeurs por vocação. Eles precisam desse direto furto visual de observar alguém sem ter de contrapor uma individualidade especialmente assistível. A única real ilusão no espionalismo é sofrida pelo voyeurizado, que desconhece que está fornecendo imagens e impressões. Um problema para muitos de nós, escritores de ficção com menos de 40, lançando mão da televisão como substituto do verdadeiro espionalismo, no entanto, é o de que o voyeurismo da TV envolve toda uma opulenta orgia de ilusões para o pseudo-espião, quando o assistimos. Ilusões é tudo que voyeurizamos aqui: os voyeurizados do lado de lá da tela estão apenas insinuando uma ignorância de serem vistos. Eles sabem perfeitamente que estamos do lado de cá. E a instância de nos encontrarmos aqui está por igual bem enfronhado nas mentes dos que se postam por detrás da segunda camada de vidros, as lentes e os monitores por intermeio dos quais técnicos e diretores desdobram-se sem nenhuma ingenuidade para lançar a imagem até nós. O que nós vemos está longe de ser roubado. É ofertada – ilusão. E ilusão que assistimos pela moldura envidraçada; não se trata de pessoas em situações reais que agem ou mesmo movem-se sem a consciência da audiência. O que jovens escritores estão vasculhando, os dados de certas realidades a ficcionalizar, já se encontram compostos por personagens em narrativas altamente ritualizadas. E mais, nós não estamos sequer vendo personagens
[…]
A aparição auto-consciente da ausência de auto-consciência é a grande ilusão por detrás da sala de espelhos de ilusões da TV; e para nós, a audiência, é simultaneamente remédio e veneno. […] Pois reparamos nessas pessoas raras, altamente treinadas, aparentemente não assistidas, seis horas por dia. E adoramos esse pessoal. Ao ponto de atribuí-los verdadeiras propriedades sobrenaturais e desejarmos emulá-los, nós como que os veneramos.
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Esse faz falta mesmo. E traduzir esse
ResponderExcluirensaio é serviço de utilidade pública. Que bom que você voltou a postar, Ruy! Abraço,