Josef Albers, Tlaloc, 1944
Desconfie do Homem Ligeiramente Mais
Na maior nação futebolística do mundo, um escritor ligeiramente mais jovem escreve para outro ligeiramente mais velho a solicitar manuscritos. São para sua nova revista. Entre outras discrições, pede sigilo sobre a revista. Afinal, ambos moram na mesma cidade. Na mesma filosofia. E o mais velho bem sabe como são essas coisas de revista. De primeiro número de revista. Até mesmo ele – que segue uma existência ao largo de prêmios, academias – sabe. “De toda a parvoice que envolve a vida literária como o verniz termosselante acondiciona o chocolate”, afiança o ligeiramente mais jovem.
O ligeiramente mais velho, junto ao monitor, pondera o pedido enquanto corta as unhas: infelizmente os manuscritos que o ligeiramente mais jovem quer já estão comprometidos. E passa do anular para o mindinho. Sairão em breve numa outra revista, na cidade de São X., em uma província mais ao Sul do império onde o futebol nunca se põe. As presilhas do cortador de unhas dirigem-se com diligência às cutículas.
Sugere outros nomes. Faz uma pequena lista. Verdade que eles escrevem outra coisa. Mas ainda são jovens... Uma tardia apara de unha cai sobre o teclado entre o h e o j. Ele a remove caprichosamente e prossegue digitando. Até que o mouse clica sobre “enviar”.
Depois de ler a mensagem do outro, o ligeiramente mais jovem manda dizer que conhece os outros. Todos. E que não são maus. Mas são apenas eles. E imprecisos, por vezes. E o que ele quer mesmo: a mestria de seu conterrâneo.
Num transe de contentamento, o mais velho envia manuscritos vários, em formato Word. Até em maior número do que ele próprio esperava remeter.
Porém, para seu pasmo, o ligeiramente mais jovem os devolve três horas depois cheios de notas e correções gramaticais impertinentes. Havia até ironia.
“Ah, então é assim?”. Ergue-se. Saca da prateleira o livro de contos do ligeiramente mais jovem. Um volume magro, que lhe fora ofertado quando ainda resenhava para o segundo caderno: “Ao Amigo L. M. M. V.”. A dedicatória vazava para o verso da folha.
Pela primeira vez em tantos anos, lê umas poucas páginas, debruçado à escrivaninha, sem reter um grama de trama. E toma algumas notas. Compila treze erros de português: “solecismos, más silepses...” E os envia em anexo, junto com seus arrazoados e uma batida de porta.
O ligeiramente mais jovem sente-se arrasado. Como ousa o outro. Fazer isso com ele! Afinal, já fora adotado no Vestibular, apontado duas vezes para o Jabuti, ganhara o prêmio da Radio France, o do Município de Caucaia. Ele assopra os cacos de unhas acumulados ao lado do mouse. E sapeca ao teclado: “Sua mensagem traduz a medida de seu coração. Debochar de meu português aprendido na escola pública...” E como fecho: “Cioran também dizia: 'desconfie do homem que vira as costas ao amor, à fama e ao dinheiro: ele se vingará!'".
Após ler essa mensagem, perplexo, o ligeiramente mais velho desfaz a janela. Estende o braço, toma o telefone. Liga para o secretário da cultura da província.
E cancela a revista da qual seria editor.
Uma revista assim, tão a ponto de agravar uma funda cisão nele próprio, já nasceria amaldiçoada.
O ligeiramente mais velho, junto ao monitor, pondera o pedido enquanto corta as unhas: infelizmente os manuscritos que o ligeiramente mais jovem quer já estão comprometidos. E passa do anular para o mindinho. Sairão em breve numa outra revista, na cidade de São X., em uma província mais ao Sul do império onde o futebol nunca se põe. As presilhas do cortador de unhas dirigem-se com diligência às cutículas.
Sugere outros nomes. Faz uma pequena lista. Verdade que eles escrevem outra coisa. Mas ainda são jovens... Uma tardia apara de unha cai sobre o teclado entre o h e o j. Ele a remove caprichosamente e prossegue digitando. Até que o mouse clica sobre “enviar”.
Depois de ler a mensagem do outro, o ligeiramente mais jovem manda dizer que conhece os outros. Todos. E que não são maus. Mas são apenas eles. E imprecisos, por vezes. E o que ele quer mesmo: a mestria de seu conterrâneo.
Num transe de contentamento, o mais velho envia manuscritos vários, em formato Word. Até em maior número do que ele próprio esperava remeter.
Porém, para seu pasmo, o ligeiramente mais jovem os devolve três horas depois cheios de notas e correções gramaticais impertinentes. Havia até ironia.
“Ah, então é assim?”. Ergue-se. Saca da prateleira o livro de contos do ligeiramente mais jovem. Um volume magro, que lhe fora ofertado quando ainda resenhava para o segundo caderno: “Ao Amigo L. M. M. V.”. A dedicatória vazava para o verso da folha.
Pela primeira vez em tantos anos, lê umas poucas páginas, debruçado à escrivaninha, sem reter um grama de trama. E toma algumas notas. Compila treze erros de português: “solecismos, más silepses...” E os envia em anexo, junto com seus arrazoados e uma batida de porta.
O ligeiramente mais jovem sente-se arrasado. Como ousa o outro. Fazer isso com ele! Afinal, já fora adotado no Vestibular, apontado duas vezes para o Jabuti, ganhara o prêmio da Radio France, o do Município de Caucaia. Ele assopra os cacos de unhas acumulados ao lado do mouse. E sapeca ao teclado: “Sua mensagem traduz a medida de seu coração. Debochar de meu português aprendido na escola pública...” E como fecho: “Cioran também dizia: 'desconfie do homem que vira as costas ao amor, à fama e ao dinheiro: ele se vingará!'".
Após ler essa mensagem, perplexo, o ligeiramente mais velho desfaz a janela. Estende o braço, toma o telefone. Liga para o secretário da cultura da província.
E cancela a revista da qual seria editor.
Uma revista assim, tão a ponto de agravar uma funda cisão nele próprio, já nasceria amaldiçoada.
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