Steven Holl, World Trade Center Project, 2002
Las coordenadas del dia 11, siete años después
No dia 11 de setembro de 2001 eu estava em um apartamento em São Paulo. Passava muito tempo em casa e sozinho. Por duas razões. Primeiro, nem sempre tinha dinheiro para ir ao cinema ou receber amigos. Segundo, tinha de escrever uma tese de doutorado.
O apartamento ficava na esquina das Ruas Guiará e Raul Pompéia, na Pompéia, próximo de Perdizes, do Sumaré. E não distante de um dos locais mais tipicamente paulistanos: aquele trecho da Dr. Arnaldo à volta da Estação Clínicas do metrô. Onde há o velho hospital de um lado, com seu aspecto britânico, e, do outro, o imenso cemitério do Araçá, e os muitos quiosques de floristas.
Desde dias anteriores, eu desligava o telefone durante boa parte das horas, para não ser importunado. Conseguia escrever com certa fluência e era para tanto que estava ali. Antes de dormir, já quase pela manhã ou ao fim da tarde, entrava na internet, por uma precária conexão discada, para conferir e-mails e ler jornais. Inclusive as notícias do Ceará, no O Povo – jornal para o qual eu escrevia à época.
Quase todos meus colegas da PUC já haviam acabado os créditos e retornado aos seus estados. E os poucos que tinham ficado ou eram da cidade moravam longe, trabalhavam duro e, como eu, contavam seus trocos. Era uma vida solitária, em que eu só saía de casa para errar, sem muita direção, pelas ruas de Vila Romana, prestando atenção ao aspecto italianado das casas. Imaginando como seria o bairro à época de Alcântara Machado e Mário de Andrade, pois embora eles não fossem de lá havia algo deles nessas ruas. Ou algo dessas ruas na prosa deles. A Pompéia, à sua vez e fazendo jus ao nome percussivo, era bairro mais musical, em que dois adolescentes paulistanos, Arnaldo e Sérgio, ensaiavam no porão da casa dos pais. Depois o grupo deles veio a se chamar (como é mesmo?) Os Mutantes -- como se saído de um gibi, de um seriado televisivo, daqueles sobejamente bem dublados e que eu conhecia da tenra infância.
Ás vezes, eu descia para fazer compras num centro comercial de aspecto cansado próximo ao Palestra Itália. Ou seguia, caminhando, para a biblioteca da PUC. Ou ainda me sentava com uma revista nos pequenos cafés, em travessas da Alfonso Bovero. Era fácil manter a forma. Bastava sair de casa e caminhar o sobe-e-desce das íngremes ladeiras da Pompéia, um dos bairros mais acidentados de São Paulo. As quaresmeiras ao longo das calçadas e a quietude de certas ruas eram um bocado atraentes.
Não me lembro sequer se tinha vizinhos. O prédio era um pouco sombrio, mas guardava seu encanto. Um desses prediozinhos art-deco, da época do Estado Novo, composto de formas redondas, um pé-direito altíssimo no térreo, onde se encontravam duas pequenas lojas sem movimento ou charme. Apenas três andares. Não havia elevadores. Meu apartamento ficava no terceiro. E, como eu estava afastado de rotinas regulares, pouco cruzava com os outros moradores.
Esse endereço foi o meu último na cidade. E talvez o mais modesto. Mas eu não desgostava de todo. Especialmente por se situar numa região muito elevada. Da janela do quarto era possível ver algo que eu não via em meus outros endereços paulistanos: o fim de São Paulo, as encostas da Serra da Cantareira erguendo-se ao longe. Pois, embora não se pense em limiares quando se está em São Paulo -- e logo a cidade apareça infinita no dia-a-dia -- mesmo São Paulo tem um limite, um fim. E era um alento poder avistá-lo. Então o apartamento tinha esse arejamento. Essa sensação aeronáutica de se erguer pairando sobre as esquinas enladeiradas da Pompéia. Sobre a própria cidade de São Paulo. Á noite, eu podia chegar ao terraço descoberto, olhar para cima e saber que havia um espaço lá, acima, com galáxias, estrelas, vastidões de tempo, etc. Algo sideral, federal, universal, e até um pouquinho maior do que São Paulo. Ao invés de não sei quantos andares a mais sobre a cabeça, com dezenas de famílias, bichos de estimação, italianos e nisseis habitando-os.
Mas, voltando ao dia 11, com a tarde a meio, resolvi fazer uma pequena pausa. Acessei a internet. E, então, lá na página do Uol estava estampada a notícia. E também havia uma foto. Algo tão desmedido que assustava. Que parecia com São Paulo para quem só sonha com São Paulo ou para o neófito. E fazia crer de novo, nem que só por alguns décimos de segundo, não só em notícias, mas em contos de fadas, nas Mil Noites e Uma, no Sputnik, no Bicho-Papão, no primeiro amor, no coração batendo mais forte. Era, sem dúvida, estar diante de um fato histórico de proporções avassaladoras. E, se a queda do muro de Berlim ainda chegara pela televisão, o 11 de setembro foi o primeiro marco a chegar pela Internet. E foi um marco importante. Mesmo para quem gastava seu tempo -- em perfeita assincronia com o restante da cidade -- lendo Longino, San Juan de la Cruz, George Oppen e as teorias sobre o sublime.
Quando se está diante de algo daquelas dimensões, um gosto de Apocalipse te leva a perspectivar um monte de coisas. Há uma espécie de vertigem-ambiente que sabe a excitação. Uma sorte de corrente elétrica que impregnou, então, o ar do pequeno apartamento suspenso entre ruas e ladeiras da Pompéia. E assim, só depois de convencer-me de que aquilo tudo era real, pude religar-me com o mundo, telefonar para os amigos, trocar mensagens com gente que estava em Nova York. Ver as imagens em movimento na televisão.
Elas eram medonhas.
O apartamento ficava na esquina das Ruas Guiará e Raul Pompéia, na Pompéia, próximo de Perdizes, do Sumaré. E não distante de um dos locais mais tipicamente paulistanos: aquele trecho da Dr. Arnaldo à volta da Estação Clínicas do metrô. Onde há o velho hospital de um lado, com seu aspecto britânico, e, do outro, o imenso cemitério do Araçá, e os muitos quiosques de floristas.
Desde dias anteriores, eu desligava o telefone durante boa parte das horas, para não ser importunado. Conseguia escrever com certa fluência e era para tanto que estava ali. Antes de dormir, já quase pela manhã ou ao fim da tarde, entrava na internet, por uma precária conexão discada, para conferir e-mails e ler jornais. Inclusive as notícias do Ceará, no O Povo – jornal para o qual eu escrevia à época.
Quase todos meus colegas da PUC já haviam acabado os créditos e retornado aos seus estados. E os poucos que tinham ficado ou eram da cidade moravam longe, trabalhavam duro e, como eu, contavam seus trocos. Era uma vida solitária, em que eu só saía de casa para errar, sem muita direção, pelas ruas de Vila Romana, prestando atenção ao aspecto italianado das casas. Imaginando como seria o bairro à época de Alcântara Machado e Mário de Andrade, pois embora eles não fossem de lá havia algo deles nessas ruas. Ou algo dessas ruas na prosa deles. A Pompéia, à sua vez e fazendo jus ao nome percussivo, era bairro mais musical, em que dois adolescentes paulistanos, Arnaldo e Sérgio, ensaiavam no porão da casa dos pais. Depois o grupo deles veio a se chamar (como é mesmo?) Os Mutantes -- como se saído de um gibi, de um seriado televisivo, daqueles sobejamente bem dublados e que eu conhecia da tenra infância.
Ás vezes, eu descia para fazer compras num centro comercial de aspecto cansado próximo ao Palestra Itália. Ou seguia, caminhando, para a biblioteca da PUC. Ou ainda me sentava com uma revista nos pequenos cafés, em travessas da Alfonso Bovero. Era fácil manter a forma. Bastava sair de casa e caminhar o sobe-e-desce das íngremes ladeiras da Pompéia, um dos bairros mais acidentados de São Paulo. As quaresmeiras ao longo das calçadas e a quietude de certas ruas eram um bocado atraentes.
Não me lembro sequer se tinha vizinhos. O prédio era um pouco sombrio, mas guardava seu encanto. Um desses prediozinhos art-deco, da época do Estado Novo, composto de formas redondas, um pé-direito altíssimo no térreo, onde se encontravam duas pequenas lojas sem movimento ou charme. Apenas três andares. Não havia elevadores. Meu apartamento ficava no terceiro. E, como eu estava afastado de rotinas regulares, pouco cruzava com os outros moradores.
Esse endereço foi o meu último na cidade. E talvez o mais modesto. Mas eu não desgostava de todo. Especialmente por se situar numa região muito elevada. Da janela do quarto era possível ver algo que eu não via em meus outros endereços paulistanos: o fim de São Paulo, as encostas da Serra da Cantareira erguendo-se ao longe. Pois, embora não se pense em limiares quando se está em São Paulo -- e logo a cidade apareça infinita no dia-a-dia -- mesmo São Paulo tem um limite, um fim. E era um alento poder avistá-lo. Então o apartamento tinha esse arejamento. Essa sensação aeronáutica de se erguer pairando sobre as esquinas enladeiradas da Pompéia. Sobre a própria cidade de São Paulo. Á noite, eu podia chegar ao terraço descoberto, olhar para cima e saber que havia um espaço lá, acima, com galáxias, estrelas, vastidões de tempo, etc. Algo sideral, federal, universal, e até um pouquinho maior do que São Paulo. Ao invés de não sei quantos andares a mais sobre a cabeça, com dezenas de famílias, bichos de estimação, italianos e nisseis habitando-os.
Mas, voltando ao dia 11, com a tarde a meio, resolvi fazer uma pequena pausa. Acessei a internet. E, então, lá na página do Uol estava estampada a notícia. E também havia uma foto. Algo tão desmedido que assustava. Que parecia com São Paulo para quem só sonha com São Paulo ou para o neófito. E fazia crer de novo, nem que só por alguns décimos de segundo, não só em notícias, mas em contos de fadas, nas Mil Noites e Uma, no Sputnik, no Bicho-Papão, no primeiro amor, no coração batendo mais forte. Era, sem dúvida, estar diante de um fato histórico de proporções avassaladoras. E, se a queda do muro de Berlim ainda chegara pela televisão, o 11 de setembro foi o primeiro marco a chegar pela Internet. E foi um marco importante. Mesmo para quem gastava seu tempo -- em perfeita assincronia com o restante da cidade -- lendo Longino, San Juan de la Cruz, George Oppen e as teorias sobre o sublime.
Quando se está diante de algo daquelas dimensões, um gosto de Apocalipse te leva a perspectivar um monte de coisas. Há uma espécie de vertigem-ambiente que sabe a excitação. Uma sorte de corrente elétrica que impregnou, então, o ar do pequeno apartamento suspenso entre ruas e ladeiras da Pompéia. E assim, só depois de convencer-me de que aquilo tudo era real, pude religar-me com o mundo, telefonar para os amigos, trocar mensagens com gente que estava em Nova York. Ver as imagens em movimento na televisão.
Elas eram medonhas.
Interessante, Ruy. Vamos acompanhando a sua leitura como se tivéssemos com você. Gostei muito. Tem muito de você neste post. Tudo.
ResponderExcluirBeijos.
Bom dia.
*Por isso coloquei você no morenocris. Segue a linha dos outros links, principalmente do blog Da Literatura. Tem a sua linha.
pô, bacana, cris. vindo de você, vou dormir mais contente hoje. e acordar com uma fome de leão amanhã! GRRRRRRRRRRR!
ResponderExcluirbjs.
p.s. -- estou sempre passando pelo 'morenocris' e pelo 'crisblogando'. e tem um mar de coisas boas fluindo por ambos. q. bom q. nos achamos nessa emaranhada rede! opa!