[s/i/c]
5 banalidades sobre os primeiros capítulos do Primeiro Quixote e sobre o Quixote em geral
i.
Cervantes, ele mesmo, devia ser louco por romances de cavalaria, pois sabe tudo do assunto.
ii.
A questão da tradução é posta desde o início, uma vez que supostamente Don Quixote seria, segundo Cervantes, uma tradução de um original árabe: Historia de don Quixote de la Mancha, escrita por Cide Hamete Benengeli, historiador arábigo. Esse disfarce da tradução está proposto no início do capítulo 9:
Estando yo un día en el Alcaná de Toledo, llegó un muchacho a vender unos cartapacios y papeles viejos a un sendero; y como yo soy aficionado a leer aunque sean papeles rotos de las calles, llevado de esta mi natural inclinación tomé un cartapacio de los que el muchacho vendía y vile con carácteres que conocí ser arábigos. Y puesto que aunque los conocía no los sabía leer, anduvo mirando si parecía por allí algún morisco aljamiado [1] que los leyese, y no fue muy dificultoso hallar intérprete semejante, pues aunque le buscara de otra mejor y más antigua lengua le hallara. En fin, la suerte me deparó uno, que, diciéndole mi deseo y poniéndole el libro en las manos, le abrió por medio, leyendo un poco en él, se comenzó a reír.
[1] aljamiado = que falasse castelhano.
iii.
A linguagem de Don Quixote transcorre num castelhano muito mais próximo do português que o castelhano moderno. E, mais, do português brasileiro, que, em variados aspectos de sintaxe e vocabulário, é mais arcaico que o português europeu. Daí que o título original do livro seja Don Quixote, com esse “x” tão galaico e português – e assim é conhecido em inglês e em qualquer outra língua – enquanto no próprio castelhano virou Don Quijote, com “j”. Além disso, Cervantes era bilíngue, e chegou a escrever alguns poemas em português – que, de vir de uma geração de escritores mais notável que em castelhano no século anterior, com Camões & Cia. Ltda., era tido como língua culta mais elevada até que o próprio castelhano.
iv.
D. Quixote e Sancho frequentemente se expressam por provérbios. Mas enquanto a proverbialidade de Sancho é concreta e coloquial, provem da fala; a de D. Quixote é artificial e livresca, e deriva dos livros de cavalaria.
v.
O epíteto “o cavaleiro da triste figura” é dado por Sancho em certa passagem do Capítulo 19. Neste capítulo, após perder alguns dentes numa escaramuça e ter o rosto desfigurado por pancadas, D. Quixote exibia um aspecto nada atraente. E, no entanto, o que é atribuído por Sancho – o princípio de realidade do livro – como um atributo físico, é entendido por D. Quixote como atributo moral (i.e., triste, melancólico diante das imperfeições deste mundo). E, logo, ele prontamente adota a alcunha, como fórmula completa, comum entre os cavaleiros andantes de antes de seu tempo: D. Quixote de la Mancha, el Caballero de la Triste Figura.
CODA
Até erros de continuidade se pode perceber em Don Quixote. Ou interpolações bucólicas, como a história de Grisóstomo e da pastora Marcela, que interrompem e desviam brusca e artificialmente o fluxo da narrativa. No entanto, seja em prosa, seja em verso, não há obra mais sutil e deliciosamente bem tramada. Nenhuma outra que tenha deitado tamanho impacto sobre nossa mentalidade moderna. Unamuno a resume como o “enlouquecimento da pura maturidade do espírito”. Mas aqui, pode-se inverter a fórmula: “a pura espiritualidade do espírito maduro” – ou seja, do espírito que deixa de fora qualquer instância física, corpórea, porque D. Quixote habita um reino de ideias platônicas. Um mundo ideal. Não um real. E é dessa defasagem, naturalmente, que equilibra-se em funambulismo toda a carga de ternura e de humor deste livro ímpar.
Para mais Don Quixote em Afetivagem:
Um Possível Resumo de Dom Quixote
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