[s/i/c]
Modos, Disposições & uma Manhã em Dezembro
–Você que tá atendendo a cafeteria? – como um amestrador conduzindo um tigre selvagem, disse o sujeito alto e corpulento ao sujeito franzino, envergando um avental branco e uma touca do outro lado do balcão – faz quase dez minutos, velho, que a gente espera lá...
–É. Mas eu tenho de despachar primeiro os clientes dos frios, regras da casa – respondeu o sujeito franzino com um sorriso um tanto enfastiado, triquetraz, onde sobressaía um canino adunco, a noite de plantão; e, virando-se resolutamente para o cliente que precedia o sujeito no balcão dos frios disse – são quantas gramas de mortadela, mesmo, Senhor?
Guy era o cliente em questão. E percebeu o fastio do atendente de avental branco diante do sujeito corpulento. Mas logo reconheceu este. E este, lhe disse:
–Ah, rapaz, Guy, tudo bem?
–Opa, tudo bem, Haroldo – respondeu Guy – a noite rendeu?
–Assim, assim, cara. Deu um povo! – e com o braço em perpendicular ao antebraço soltou os dedos da palma da mão, em vassoura acima. E consultou seu iPhone que tocava.
Guy sabia que Haroldo, o sujeito alto e corpulento, era um dos DJ's mais requisitados da cidade. E que comandava, na terceira sexta de cada mês, um evento que reunia toda a galera mais jovem e descolada em um clube, um tanto improvisado, como costumam ser esses clubes de ocasião, nas cercanias do Dragão do Mar. E que o evento, que levava o pomposo nome de Diorama Rave, havia se dado justo na noite anterior, e que Haroldo, pelo amassado do rosto, devia haver recém-chegado de lá.
Guy achava Haroldo uma figura afável. Um tanto distinta de certa rudeza de modos tão peculiarmente de Fortaleza. A última vez, aliás, em que se haviam encontrado, num boteco, para os lados da redação de O Povo, Haroldo havia mesmo feito um convite para Guy comparecer à próxima Diorama Rave. Mas Guy, após tecer alguma sondagem e, mesmo ao constatar que alguns conhecidos, de sua idade, ainda frequentavam esse tipo de festa, um tanto juvenil, comandada por Haroldo e outros DJ's, sentira-se com a certeza de que não iria ao evento. E por uma razão simples: detestava perceber que estava cercado de gente – especialmente mulheres – que tinha idade de ser seus filhos.
Guy achava Haroldo uma figura afável. Um tanto distinta de certa rudeza de modos tão peculiarmente de Fortaleza. A última vez, aliás, em que se haviam encontrado, num boteco, para os lados da redação de O Povo, Haroldo havia mesmo feito um convite para Guy comparecer à próxima Diorama Rave. Mas Guy, após tecer alguma sondagem e, mesmo ao constatar que alguns conhecidos, de sua idade, ainda frequentavam esse tipo de festa, um tanto juvenil, comandada por Haroldo e outros DJ's, sentira-se com a certeza de que não iria ao evento. E por uma razão simples: detestava perceber que estava cercado de gente – especialmente mulheres – que tinha idade de ser seus filhos.
Trocaram um aperto de mão protocolar. Guy vinha de uma noite de sono, em que acordara muito cedo, lera alguns capítulos do livro de contos que andava às voltas com; escrevera um pouco; passara uma vista nos jornais; e saíra às compras no supermercado 24 horas.
Por seu turno, Haroldo, acompanhado de um jovem casal, parecia extenuado, após a faina sonora de dar de ouvir a jovens ávidos por dança e grupos exóticos o que queriam ouvir. E, depois de se despedirem, Haroldo retornou às mesas do pequeno café e reengrenou o papo com o jovem casal.
Envergando jeans, t-shirts e All-Stars, eles conformavam um grupo distinto dos clientes que madrugavam; enquanto a garota trajava uma saia plissada de padrão xadrez, que lhe descia à altura do joelho e uma blusa de gola alta. O jovem casal era particularmente bem apessoado. E o humor dos três indicava para algum alterado estado de percepeção. De se ver brilhar mais as cores do que elas de fato chispam numa opaca antemanhã de sábado.
Terminado com a compra dos frios, Guy prosseguiu à cata do que precisava: pão, iogurte, suco de laranja, café em pó, chá, chocolate, biscoitos, amêndoas, vinho e cigarros.
Enquanto caminhava entre as gôndolas do supermercado, escutando a melopeia previsível das canções cuspidas pelos alto-falantes, podia ouvir as gargalhadas do grupo que tomava o café da manhã: "eles estão levando uma vida", pensou Guy, com um sorriso mental.
Já havia luz lá fora. O sol esboçava. E ao chegar ao único caixa em funcionamento, Haroldo e o casal estavam três clientes adiante de Guy, na fila.
Já havia luz lá fora. O sol esboçava. E ao chegar ao único caixa em funcionamento, Haroldo e o casal estavam três clientes adiante de Guy, na fila.
Pequenas guirlandas de luzes piscando melancolicamente, ao dia pré-aceso, pendiam das armações de metal que sustentavam a estrutura do galpão:
–Um instante só, Senhor – disse o caixa a Haroldo e seu grupo – estou sem troco. E apertando um botão no painel do caixa acendeu uma pequena lâmpada e, de imediato, alguém veio com uma bolsa plástica, com zíper, carregada de moedas e cédulas de baixo valor.
–He, he, ele parece tão simpático quanto o rapazim' dos frios – ironizou Haroldo – será que não se pode tomar um café com certa agilidade na porra desse supermercado?
O caixa fechou o cenho. Moreno, franzino, parecia um tipo ainda mais sanguíneo que o atendente dos frios. Ainda assim, contemporizou:
–O mundo não foi feito num só dia, Senhor!
–Iau! Não me chame de Senhor – disse Haroldo – tenho 32 anos. Sou um senhor, amizade? Me chame de você, faz favor.
O caixa parecendo falar para alguém que se encontrava a três ou quatro metros de distância, à direita ou à esquerda de Haroldo, retrucou:
–Infelizmente, a carga de troco que me trouxeram não bate com o que tenho de devolver a vocês – e apertou de novo o botão no painel.
As pessoas na fila prestavam atenção àquele movimentação tensa, em maior ou menor grau. Guy, com um olho no padre outro na missa, fazia de conta que lia as manchetes das revistas, dispostas num mostruário á entrada da linha dos caixas.
O funcionário com o troco demorava-se:
–É uma merda ter de tomar café numa birosca dessa em que ninguém dá atenção ao cliente – resmungou Haroldo.
–Senhor...quer dizer, jovem, o carro-forte ainda não chegou e, às vezes, é complicado passar troco tão baixo sem numerário miúdo nas gavetas...
–Quer saber duma coisa – rezingou Haroldo – se esse cara demorar mais um minuto, você vai me devolver o qu'eu lhe paguei e a gente vai pra casa, dormir, meu camarada. Ninguém merece.
O caixa baixou a cabeça, rubro, visivelmente contendo-se. O cliente tem sempre razão, reza o ditado. Mas nem sempre os ditados expressam verdades. E, de outro modo, há clientes e clientes. E quem disse que todos estão interessados, de fato, em verdades num mundo como o nosso?
O funcionário, enfim, chegou. O caixa separou destra e meticulosamente as moedas nos escaninhos da gaveta e repassou as cédulas, e, com a ponta dos dedos, as moedas do troco.
Ao receber as moedas na cava da mão, Haroldo cerrou-a e fixou duramente os olhos amendoados, de traços indígenas do caixa de compleição franzina. Então, num gesto brusco, atirou-as com força no rosto do caixa:
–Você é uma piada, seu merdinha. Titica de galinha. Deve ser primo do garotinho dos frios. É a mesma simpatia, seu viado!
Os clientes na fila assistiam o crescendo da altercação com renovado interesse. Certa apreensão, alguns. Outros, com um humor que mal disfarçava o meio-riso.
Mas, já no fio da navalha, no ponto quase de passarem às vias de fato, Haroldo e seu grupo se foram, às gargalhadas. Entraram num Citröen preto e saíram cantando pneus. O caixa engoliu em seco, soltou um fundo suspiro. Retirou os óculos. Passou um lenço de papel sobre o rosto suado, timbrado pela pressão dos níqueis arremessados. Lágrimas de raiva drenavam-se pelos flancos externos dos olhos amendoados. Uma senhora da fila antecipou-se até ele e afagando-lhe o braço disse:
--Isso acontece, meu filho. Tenha calma!
O caixa ergueu-se no empuxo de um suspiro. Caminhou na direção de um balcão, rente às vidraças. Os pés pareciam pesar toneladas. Ao esmurrar o tampo do balcão, ainda pôde ver o carro entrando na contramão - para evitar o contorno da quadra - a tomar a avenida na direção da Praia de Iracema, do Meireles, vazando pelo semáforo no vermelho, como é praxe em desoras.
--Isso acontece, meu filho. Tenha calma!
O caixa ergueu-se no empuxo de um suspiro. Caminhou na direção de um balcão, rente às vidraças. Os pés pareciam pesar toneladas. Ao esmurrar o tampo do balcão, ainda pôde ver o carro entrando na contramão - para evitar o contorno da quadra - a tomar a avenida na direção da Praia de Iracema, do Meireles, vazando pelo semáforo no vermelho, como é praxe em desoras.
Suspenso, enfim sobre a cidade alva, em meio a um céu de liso azul, sem encalço de nuvem, o sol acendeu de vez o sábado, projetando as sombras da vasta mangueira sobre os pré-moldados do estacionamento. E empalideceu ainda mais o melancólico piscar do cacho de luzes natalinas dependurado nos caibros de metal.
* * *
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