Robert Aldrich, Kiss Me Deadly [A Morte num Beijo], 1955
Revirando um conto de O'Connor
I. Contextura
Há um correspondente em outras linguagens artísticas para uma determinada expressão. Para um estilo – essa palavra que hoje tornou-se quase palavrão. E soa tanto redutor que se jogue sobre o fazer literário de Flannery O'Connor o rótulo de “gótico sulista”. Ao modo como se põe no mesmo saco autores tão distintos – e tão estigmatizados por um rótulo – como os ditos “regionalistas de 30”, no Brasil.
Escritores que, de resto, tiveram um impacto tremendo na lusofonia. A ponto de serem tomados como modelo pelos “claridosos” – a geração de escritores que inaugura o modernismo em Cabo Verde e sente nos escritores brasileiros uma espécie de empatia e desenredamento da cor local raramente plasmado pelo que lhes chegava de uma Lisboa um tanto sufocada pelo inauguro do salazarismo.
Na verdade, “regionalistas de 30” só existem na mente pouco fértil de pseudo-escritores (ou pseudo-críticos) como Diogo Mainardi – que, à parte sua midiática presença em programas como Manhattan Connection ou algo semelhante, caso de Edney Silvestre – jamais emendou duas setenças que sequer pudessem lamber as botas do que segue proposto por Graciliano Ramos em Infância ou Memórias do Cárcere. Ou por Lins do Rego em Fogo Morto ou Pedra Bonita.
Assim, os autores sulistas dos Estados Unidos são entrevistos com a mesma reserva, pelo patriciado de Nova York, de New England, com que autores do Nordeste do Brasil são entrevistos no Eixo Rio-São Paulo, e mais a Sul. As latitudes apenas invertem-se e, no caso do Brasil, mesmo em seu eixo mais "central" (ou seja, onde o país é mais província, como em São Paulo, a cidade) não chegam a atingir o clima europeu – prerrogativa de Buenos Aires, Montevidéu, Santiago do Chile, na América do Sul.
Mas voltemos a O'Connor e a correspondência com outras linguagens. Está claro que se há um equivalente para a literatura de O'Connor, isso se dá com certo cinema no qual, de uma ou de outra forma, se pode vislumbrar um jogo de afecções pessoais mais bem tramado. Um cinema confeccionado na década de 50, fotografado em preto e branco e retratando os últimos estertores do American Dream.
Mas talvez seja melhor, em vez de pôr um rótulo nesse cinema, apenas falar mais sobre ele.
A solução mais fácil seguiria, então, por aproximar a quota de humor negro de O'Connor do filme noir. Mas se deve desconfiar das soluções fáceis. E, no caso, escritores como Raymond Chandler e Dashiell Hammett estão obviamente mais próximos do filme noir. Seus protagonistas são, em geral, detetives profissionais, aparentemente misóginos; mas, em verdade, frágeis anti-heróis, em especial quando confrontados a fortes figuras femininas.
O fato de o humor negro de O'Connor aproximar-se de algum cinema – a granel, tido equivocamente como mais “psicológico” – dos anos 50 não nos deve enganar. Não nos deve enganar até mesmo o fato de um autor como Cormac McCarthy haver fornecido cinco décadas depois material semelhante ao de O'Connor para ser adaptado à tela pelos hábeis irmãos Cohen, em No Country for Old Men. O romance é de 2005; o filme, de dois anos depois. E ambos são extremamente legíveis e assistíveis.
Essa assistibilidade, aliás, é um aspecto a se destacar em O'Connor. A visualidade de seus relatos é limítrofe. O modo como a paisagem – em geral da Georgia, do Sul – assoma tão intensa e suplementada por diálogos estilizadamente idiomáticos, que o leitor “vê” o que era para estar apenas sugerido na escrita.
Assim, parece um tanto manifesto que se possa vislumbrar algo análogo à narratividade de O'Connor em alguns dos filmes de Howard Hawks, de John Huston, de Anthony Mann, de Billy Wilder, de Robert Aldrich, de Nicholas Ray, de Samuel Fuller, de Sidney Lumet, de Don Siegel. Até mesmo de Sam Peckinpah. Ou de forma mais distante, por conta do excesso de maneirismos, de Hitchcock.
E, no entanto, não de realizadores que, aparentemente, estariam mais próximas dela ou por raízes irlandesas, caso de John Ford; ou pela densidade das personagens, caso de Chaplin – em especial, em seus filmes falados; ou mesmo pela origem sulista, caso de Robert Altman. E, em todos esses casos, o que ocorre é uma pulsão para o épico que inexiste em O'Connor. Embora, paradoxalmente, ela toque em questões mais épicas que qualquer um desses realizadores.
De resto, Huston chegou a adaptar Wise Blood, o romance mais ressonante de O'Connor, para a tela, numa produção modesta, em 1979. E é um filme enxuto, simples, estimável. Onde se pode destacar, em especial dois aspectos: a captação de certo colorido, de certa ambiência sulista; e a esplêndida performance de Harry Dean Stanton.
Feito este arrodeio, podemos passar uma vista sobre “A Good Man is Hard to Find” [“Um Homem de Bem é Difícil de Achar”].
II. A coisa em si quase em si
– uma paráfrase da trama [se você deseja ler o conto sem saber o final da história (um dado importante), é mais razoável que veja esta sinopse depois da leitura], o conto pode ser encontrado online, aqui – e sua extensão em livro, na edição que manuseio, é de apenas 17 páginas:
A protagonista de “A Good Man is Hard to Find” é chamada simplesmente de “a Avó”. A Avó é viúva e mora com filho Bailey; com a esposa deste, que é sempre chamada tão-só de “a mãe das crianças” [“the children's mother”]; e as crianças: John Wesley, June Star, cerca de dez e oito anos, respectivamente, e uma menininha de colo, que é referida apenas como “o bebê”.
Há muita coisa entrelinhada sobre “a Avó”. Ela é expansiva, comunicativa, exuberante. Ela é também protestante, mas isso não está expresso. Ela é vaidosa, o que está muito bem expresso. Ela é voluntariosa; o que conforma o próprio enredo do conto. É dominadora, uma vez que quase sempre logra estabelecer sua vontade acima das do filho e da nora.
Junto com a neta, June Star, a Avó forma a dupla de estrelas da companhia, em família. Já que o filho, Bailey, e sua mulher, “a mãe das crianças”, são tipos grises, aparentemente sem qualquer appeal, embora se mostrem bem mais coerentes, cuidadosos e responsáveis pelos demais.
A família sai em viagem de férias e, de pronto, a Avó sugere que não se deve ir à Flórida – para onde já se havia ido em outras temporadas – porém ao Tenessee, onde havia parentes e conhecidos não visitados a tempos por ela. A proposta é, de imediato, descartada pelo filho Bailey, assim como pelas crianças.
As crianças são bastante distintas. Especialmente quanto ao humor. E isso parece ser importante para O'Connor – como uma sorte toda particular de livre-arbítrio. Livre-arbítrio até para rir ou não de certas situações ou observações. O tema do riso ou do siso, recorre também, da mesma forma, em outro conto da autora, “Greenleaf”, onde a reação de também dois irmãos diante de certa declaração da mãe é inteiramente diversa.
Em “Um Homem de Bem...”, o garoto, John Wesley – que certamente não porta este nome em vão, pois nada aparece assim tão gratuitamente nos relatos de O'Connor – apesar de responder à Avó com certa crueza de modos em algum momento, é, no íntimo, um espírito pouco tenaz ou obstinado. É um fraco. Como, aliás, costumam ser os personagens masculinos de O'Connor. Ou o próprio pai de John Wesley, que é filho único de mãe tão opressora. E, de resto, John Wesley é quase uma piada diante do terrível gênio da irmã, June Star.
Logo ao início da viagem, ao ouvir a Avó contar um episódio da juventude, onde, de resto, há um ranço racista extremamente forte a reação dos irmãos é oposta. O garoto ri à bandeiras despregadas. A garota, não. Porém a reação da garota não se dá pelo racismo contido na anedota, senão pelo fato de um o pretendente da Avó, quando jovem, sempre lhe presentear com melancias. E aqui se propõe um conflito recorrente nos contos de O'Connor: entre o rural e o urbano.
A avó rebate o argumento da neta, ao dizer que o tal pretendente, falecido há poucos anos, tornou-se um homem muito rico. E foi mesmo um dos primeiros a comerciar a Coca-Cola na Geórgia. Mas há outros sinais de que os tempos estão de muda.
As crianças leem revistas em quadrinhos o tempo inteiro. A Avó, na hora do lanche, come um reforçado sanduíche de manteiga de amendoim com carne de vitelo recheada de cebolas e ervas aromáticas. Porta seu gato num cesto. E veste-se com uma exuberância e uma vaidade que não se elastece à nora. Ou seja, os sulistas brancos começam a entrar na ciranda de desenfreado consumo do Norte; dos yankees, seus vencedores na sangrenta Guerra Civil. A guerra que se estendeu por cinco anos e opôs o industrializado Norte, ao Sul agrário e mitológico – a lendária Dixieland (ou Dixie) dos confederados, conduzidos pelo General Robert E. Lee, brilhante estrategista de campo, que venceu várias vezes exércitos do norte que somavam quase o dobro de seu contingente.
Guerra cujas cicatrizes jamais foram completamente apagadas. Que destruiu material e moralmente o Sul do país.
Há também dois outros personagens importantes em “Um Homem de Bem é Difícil de Achar”: Red Sam, o dono de uma espécie de misto de posto de gasolina, churrascaria, dancing e cine-poeira de beira-de-estrada; além de um serial killer fugido recente de um presídio de alta-segurança e que se autodenomina “o Desajustado” [“the Misfit”].
A fuga do bandido tem mesmo uma ampla repercussão midiática. Tanto que já na véspera da viagem, a Avó teme que se possa cruzar na estrada com um tipo assim, já que os jornais alertam: ele se fora em direção à Flórida: “I wouldn't take my children in any direction with a criminal like that loose in it” [“Eu não levaria meus filhos nessa direção se soubesse que tem um criminoso como esse solto por lá”] . Mal sabe ela que será ela própria quem conduzirá a família até o serial killer.
Já Red Sam, o proprietário da churrascaria, é importante no conto por duas razões. A primeira, por ser uma espécie de, digamos, equivalente masculino da Avó. Pragmático, expansivo, conversador. Mas também repressor da mulher. Assim como a Avó é do filho e da nora.
À altura que a família atinge a churrascaria de Red Sam – cuja publicidade ataca todos os costados da rodovia, à certa altura – é hora do almoço. E, quase de imediato, diante do deslustre de Bailey, o filho, e “da mãe das crianças”, quem realmente “conversa” são a Avó e Red Sam.
O assunto é o de o quanto os velhos tempos eram melhores, etc. e etc. Tempos em que se podia dormir com a porta apenas encostada, como evoca Red Sam, para em seguida lamentar – aliás, com o título do conto – que, no presente, “um homem de bem é difícil de achar”.
Só um pouco antes disso, a Avó passa recibo dessa mesma 'ética protestante' ao afirmar que “it isn't a soul in this green world of God's that you can trust” [“Não há uma só alma nesse viçoso mundo de Deus em que se possa confiar”]. Aparentemente, a sensatez nos contos de O'Connor dificilmente está nessas pessoas extracomunicativas como a Avó, como Red Sam, porém em quem se desdobra em cuidados com os outros a despeito de uma rotina um tanto cinza, como “a mãe das crianças”. Ou Bailey, o pai. Personagens deslustradas de charme.
De novo na estrada, a Avó, que praticamente faz a narração da viagem, segue apontando para o pitoresco, para o belo, para a exclamação, começa a evocar a visita que fez, ainda jovem, à certa casa de fazenda, antiga, faustosa. A Avó lembra-se da casa, porque haviam justo passado pelo cruzamento da estrada que conduzia até ela.
A evocação é tão vívida que a Avó sente vontade de revisitar a casa. E, de pronto, inventa uma mentira sedutora: uma vasta quantidade de prata da afluente família que a habitava estaria supostamente escondida em algum lugar da casa, num compartimento secreto. Isso inflama as crianças. E a Avó as incentiva. O pai diz que não. Não irá se desviar da rota. Porém o protesto das crianças é veemente. Ele acaba cedendo.
Aqui a vitória é a da volubilidade, do capricho da avó. De seu egoísmo. De seu apetite por satisfazer um desejo pessoal, que em nada beneficiaria os demais. Mesmo que ela lance mão de subterfúgios para justificar a visita, como o fato de ser educativo para as crianças visitar uma antiga casa de fazenda. É óbvio que o que ela pensa, em primeiro plano, é nela. É em matar a saudade de um recanto bonito de sua juventude. Retornam, então, cerca de uma milha na rodovia e tomam a estrada carroçável que conduz à tal casa. A estrada é tão acidentada e estreita que o pai pensa em desistir. Mas a Avó diz que eles já estão quase lá. Logo ao dizer isso lhe vem uma certeza inesperada: a tal casa ficava no Tenessee, não na Georgia, onde eles ainda se encontram, quase na fronteira sul do estado. Ou seja, sua memória lhe pregara uma peça. E, no entanto, tarde para retroceder. Remendar o soneto. Ela mete a família numa íngreme e perigosa estradinha vicinal por um capricho pessoal. Depois descobre que essa via estreita e íngreme não vai dar em nenhum antigo casarão de fazenda. E, no entanto, é incapaz de revelar a verdade. E imediatamente em seguida se dá o inusitado: o carro capota e tomba da estrada, restando equilibrado em um dos flancos no fosso de um dique. Ninguém sai ferido com gravidade, porém a situação é vexaminosa. E há ferimentos leves, reparos a se fazer no carro.
Aqui a vitória é a da volubilidade, do capricho da avó. De seu egoísmo. De seu apetite por satisfazer um desejo pessoal, que em nada beneficiaria os demais. Mesmo que ela lance mão de subterfúgios para justificar a visita, como o fato de ser educativo para as crianças visitar uma antiga casa de fazenda. É óbvio que o que ela pensa, em primeiro plano, é nela. É em matar a saudade de um recanto bonito de sua juventude. Retornam, então, cerca de uma milha na rodovia e tomam a estrada carroçável que conduz à tal casa. A estrada é tão acidentada e estreita que o pai pensa em desistir. Mas a Avó diz que eles já estão quase lá. Logo ao dizer isso lhe vem uma certeza inesperada: a tal casa ficava no Tenessee, não na Georgia, onde eles ainda se encontram, quase na fronteira sul do estado. Ou seja, sua memória lhe pregara uma peça. E, no entanto, tarde para retroceder. Remendar o soneto. Ela mete a família numa íngreme e perigosa estradinha vicinal por um capricho pessoal. Depois descobre que essa via estreita e íngreme não vai dar em nenhum antigo casarão de fazenda. E, no entanto, é incapaz de revelar a verdade. E imediatamente em seguida se dá o inusitado: o carro capota e tomba da estrada, restando equilibrado em um dos flancos no fosso de um dique. Ninguém sai ferido com gravidade, porém a situação é vexaminosa. E há ferimentos leves, reparos a se fazer no carro.
Alguns minutos depois a família vislumbra um automóvel provindo lentamente através das mesmas íngremes colinas que eles haviam cruzado. A Avó acena vivamente para o automóvel, que tem um aspecto de carro de funerária. O carro desaparece nas curvas abruptas e reaparece diante das árvores até estacionar diante dos acidentados. Dele saem três tipos mal-vestidos e armados. Um deles é reconhecido, quase de imediato, pela Avó em histeria, como sendo o serial killer recém-escapado da penitenciária e que chama a si próprio de The Misfit [O Desajustado].
O facínora sente-se lisonjeado pela extensão da própria fama, embora admita que "but it would have been better for all of you, lady, if you hadn't of reckernized me." [“havera de ter sido mior pra vocês tudo, dona, se você num tivesse me rerconhecido”].
Nesse instante, Bailey diz algo tão duro para a mãe que as crianças sentem-se chocadas. E o próprio bandido enrubesce. Este seu desaforo, que provavelmente concentra muito, uma vida inteira, é das poucas coisas que não são reproduzidas literalmente no conto e leva ao bandido dizer:
"Lady, don't you get upset. Sometimes a man says things he don't mean. I don't reckon he meant to talk to you thataway." [“Dona, não se apoquente. Às vezes um homem diz coisas que num tenciona. Num levo em conta ele ter falado com você des'jeito”].
O que se segue é um banho de sangue. Começando por pai e filho, a família é levada para o matagal das redondezas pelos comparsas do Desajustado e só se escutam os tiros. Estabelece-se então um diálogo inesperado entre a Avó e o serial killer. Este conta sua vida atribulada. E ela, consciente de haver sido responsável pela tragédia da família, apela para a religiosidade, e pede que ele reze. Estabelece-se então uma espécie de involuntária discussão em torno da questão da graça divina.
Ao final, em desespero, diz a Avó ao bandido que pode lhe passar uma boa soma em dinheiro. E este lhe responde de modo direto: “Lady, there never was a body that give the undertaker a tip.” [“Dona, nunca houve um corpo que desse gorjeta ao agente funerário”].
Mas, em seguida, ao discutir a figura de Jesus, o bandido aparentemente se comove. A Avó declara, então, que ele é, na verdade, um de seus filhos e o toca no ombro. Ao sentir-se tocado “The Misfit sprang back as if a snake had bitten him and shot her three times through the chest.” [“o Desajustado cambou para trás como se uma víbora o tivesse mordido e atirou nela três vezes à altura do tórax”].
Um dos comparsas voltava de haver eliminado “a mãe das crianças”, o bebê e June Star, no matagal. E ao se deparar com o cadáver da Avó:
"She was a talker, wasn't she?" Bobby Lee said, sliding down the ditch with a yodel.
"She would of been a good woman," The Misfit said, "if it had been somebody there to shoot her every minute of her life."
"Some fun!" Bobby Lee said.
"Shut up, Bobby Lee," The Misfit said. "It's no real pleasure in life."
[“Era conversadora, héin?” Bobby Lee disse, deslizando pelo flanco do dique com um dengue na voz.
“Ela havera de ter sido uma boa muié”, disse o Desajustado, “se tivesse quem atirasse nela a cada minuto da vida dela”.
“Isso é engraçado!” disse Bobby Lee.
“Isso é engraçado!” disse Bobby Lee.
“Cala a boca, Bobby Lee”, o Desajustado disse. “Num tem mesmo prazer nessa vida.”]
III. Interpretações
Há várias. Carradas, camadas delas. Nenhuma vale a leitura do conto.
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