Hans Richter, Dreams That Money Can Buy, 1946
Da arte de transformar bonecos em humanos e vice-versa
O parente mais próximo do apresentador de talk-show na fauna comunicativa do passado é o titereiro. Mas por uma razão inversa. O titereiro punha bem às claras a regra do seu jogo. Ele nunca escondeu que comandava bonecos. E, quando também ventríloquo, lhes emprestava a voz. Não raro, no entanto, a assistência o esquecia, tal a perícia com que ele conseguia dar vida a um ser inanimado. Tal o modo como determinado boneco assumia uma personalidade vibrante, própria. O titereiro animava o jogo todo, mas era invisível. E, portanto, imprevisível. A tarefa do apresentador de talk-show é inversa. É vampiresca. Ele está sempre ali. Às vezes em close. A câmera quer comer seu rosto e nos mostra até a verruga que está começando a despontar, no pescoço. Ao contrário do bonequeiro medieval, ele toma seres de carne e osso e os transforma em títeres. Em zumbis, que nada mais fazem do que reproduzir mecanicamente aquilo que o próprio apresentador deseja que eles digam, façam, sintam ou sejam. É claro, nem sempre conseguem. Um amigo me disse, certa vez, que a "a literatura e a filosofia estão cheias de autores maus que escrevem para parecer bons, para se assear nos leitores, e, por conseguinte, produzem típicas aberrações." O caso é bem esse com os apresentadores de talk-show: eles se asseiam nos entrevistados e nos espectadores. Os titereiros pegavam aberrações e as humanizavam. Os apresentadores de talk-show pegam humanos e os transformam em aberrações.
Nada mais sem graça do que talk-shows. E justamente porque eles querem extrair do entrevistado até a mínima gota de graça no menor tempo possível. O problema é que essa graça é aferida pelo humor do apresentador e pelo tempo de edição frenética da TV. Se o entrevistado é maior do que eles, bajulam-no. Mesmo se essa maioridade se der pelos quinze minutos de fama da vez. Se é menor, tratam de amesquinhá-lo ainda mais, com requinte e variações. O certo é que dificilmente o espectador sai mais do que com ego – o imenso ego do apresentador – após a assistência de qualquer um deles: Ophra Winfrey, David Letterman, Marília Gabriela, Jô Soares... Marília Gabriela faz anos que entrevista ela própria. Rigorosamente. Seu número poderia ser intitulado “A Volta ao Umbigo em Oitenta Programas”. Não só entrevista a si, mas o faz munida de um fervoroso patrulhamento do qual não se pode divergir por um segundo sob pena de ferozes ressalvas e censuras. O que ela defende é dogma. E seu ideal é que todos fossem "independentes" (seja lá o que isso quer dizer), divorciados, adpetos das cirurgias plásticas, a favor do aborto, afro-brasileiros, bissexuais (ao menos em intenção), espiritualistas (mas sem filiação religiosa), vagamente de esquerda, complacentes com os do Nordeste, defensores dos direitos humanos acima de tudo, dados à esoteria em moda, anti-católicos; fizessem análise; criassem os filhos "sem traumas" (acaso os tivessem); cuidassem zelosamente do corpo; andassem predominantemente de alto astral; "amassem o teatro"; não tivessem câncer; copiassem toscamente as últimas ondas comportamentais euro-americanas; criassem gatos; fossem ao supermercado com a mesma sacola; soubessem seus respectivos ascendentes; praticassem pilates; se devotassem a um certo consumismo básico; e também à busca do "seu espaço" a qualquer preço. Afinal, "você tem que ser você" -- seja lá o que isso significa desmembrado dos deveres que se tem para com os outros. Os muitos, variados outros. E que nem sempre praticam pilates. Seja porque não tem tempo, dinheiro ou disposição, seja porque preferem pescar, namorar ou olhar a rua pela janela com indiferença. Talvez este "você tem que ser você" funcione no mundo da publicidade, onde "um pneu é um pneu". Ou no mundo das citações, onde uma "rosa é uma rosa". Ou até no mundo deste texto. Ora, os outros - os muitos variados outros - e você são mais do que pneus, citações e textos. E vivem num mundo real. Mesmo que num país de ressalvas e auto-complacência. E, por um paradoxo histórico - que chega a ser deslavadamente cômico - Gabriela e Soares exercem uma função muito próxima de uma ferrenha e ortodoxa censura.
os jornais nao andam escrevendo nada que valha perumeno uma revisao?
ResponderExcluirtsc, tsc...
(esperando ansiosa a proxima analise!)
má, tá muin vexada!
ResponderExcluirAnte a previsibilidade e dependência de uma Marília Gabriela, o Paulo Francis dizia que se considerava tecnicamente morto. “Mutatis mutandis” (que chique! rsrsrs), é como eu me sinto numa aula de Direito Constitucional, capítulo Direitos Humanos, quando o professor baila na vacuidade intelectual dos recém-ingressos. Subjacente a isso tudo, há sempre um asseio muito cruel, não é?
ResponderExcluirAbs,
ei, peraí, a júlia também é lopes. será que os lopes estão invadindo este blog?
ResponderExcluireu gosto do david letterman. os roteiristas do programa são muito bons, principalmente o quadro "great moments in presidential speeches". sempre caio da cadeira de rir.
ResponderExcluirmas não era isso que eu ia dizer. esse trecho sobre o dogma dos bacanas e dos "pra frente" me lembrou "fittier happier", do radiohead. já indiquei uma vez e indico outra: compre o OK Computer deles, disco de primeira!
abraço, Ruy
p.s.: rapaz, um amigo meu, o cláudio neves, poeta, vai lançar um livro agora pela seteletras. me mandou preu ler e é incrível. vou te mandar uns poemas dele. abraço!
olá, rapaz, andava sumido! já está em minas? já começou o curso com o tal professor inglês, o dos poetas canônicos? achei ótima essa ressalva, essa nota de rodapé dele no nome da disciplina!
ResponderExcluirqto. ao livro do claudio, me diga só o nome q. eu compro, se já estiver nas livrarias. a sette letras tem uma boa distribuição.
e a respeito dos talk-shows, falamos sobre um formato geral. e ñ creio q. o aspecto q. v. gosta no letterman faça parte da essência desse formato --- q. é, sem dúvida, a entrevista.
abs.
Já que o Odorico citou o meu livro, vou fazer alguns esclarecimentos. O "incrível" é por conta dele. Quanto à distribuição, deve estar disponível a partir de abril, mas não sei ainda em que livrarias. Posso mandar alguns para o Odorico e ele distribui.
ResponderExcluirUm abraço
Cláudio
olá, claudio,
ResponderExcluiro odorico já me havia alertado para o seu trabalho. mas, rapaz, continuo sem saber de um detalhe importante -- eu diria mesmo fundamental: o título do livro. terei mto. prazer em adquiri-lo! grato pela mensagem.
abs.
ruy