Na ausência da trindade, vamos contar anedotas
Acabo de assistir Coisa Mais Linda – História e Casos da Bossa Nova no Canal Brasil. Não vi esse filme quando passou no cinema. O documentário é muito limpo. Joga com espaços assépticos e registros ao vivo. E os alterna com imagens de arquivo. A fórmula nada tem de nova. Mas alguns espaços, apesar de maltratados, ainda guardam charme. Como o Teatro de Arena da antiga Faculdade de Arquitetura, por exemplo. O teatro foi erguido no pátio de um claustro.
É, aliás, nele que se dá uma das tomadas mais belas do filme. Nela se vê Menescal cantarolando ao violão. Até aí, nada de excepcional. Menescal nunca foi propriamente um cantor. Mas, atrás dele há um arco, algo colonial, e, atrás do arco, um pouco à penumbra, na parede a meio, um painel de azulejos com padrões geométricos. Belos azulejos clássicos - ou seria melhor dizer barrocos? Com o perdão da redundância: azuis.
Digo isto, porque chega a ser extemporânea a discussão sobre se a bossa nova bebeu mais no samba, no jazz ou nos compositores impressionistas franceses. Sem dúvida, o samba vem como o ancestral mais determinante. Tanto assim que, num paradoxo, o próprio “criador” da célebre batida, João Gilberto, jamais aceitou o rótulo de bossa-nova. João entende que a música que faz começa com “s” e termina com “a”, tem sua raiz na África, mas medrou na Bahia e no Rio. Agora, mesmo que o jazz ou Debussy tivessem marcado a bossa-nova mais do que o samba – o que seria completamente impossível – ainda assim a bossa-nova valeria a pena.
Há no documentário a presença de grandes músicos. É bom ver Johnny Alf, Alaíde Costa, o Tamba Trio, Leny Andrade, Sérgio Ricardo e Joyce em ação. Ou João Donato, acompanhado por um exultante Robertinho Silva na bateria, num dos melhores momentos musicais do filme.
Mas não deixa de ser curioso, no entanto, que esta celebração do gênero se preencha, sobretudo, pelo que ela não mostra. Pela ausência. Uma espécie de ausência onipresente. Falo da trindade máxima da Bossa Nova, de seu alto clero: Vinícius de Moraes, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto. Afinal, todos falam deles. E toda conversa se não começa neles, neles termina. Coisa Mais Linda põe em campo, digamos, o "médio clero", cuja reza, ainda assim, claro, é interessante de ouvir. Especialmente a de Carlos Lyra, esse grande melodista. Mesmo que as anedotas e os casos não tragam algo de propriamente novo.
Vinícius e Tom já morreram há muitos anos, embora eles assombrem o documentário ao serem tratados com tamanha reverência pelos dois co-produtores do mesmo: Lyra e Menescal. Aliás, Tom chega a aparecer em filme de arquivo, conversando com Gerry Mulligan, cantando com Sinatra. Mas Vinícius, não. Talvez porque o documentário sobre o poeta ainda esteja muito recente.
Bem outro é o caso de João, que também aparece em arquivo. João Gilberto está vivinho da silva. Mas João sempre apontou para o essencial: a figura pública de João sempre foi sua música. As entrevistas de João sempre foram suas magníficas performances. Ele sempre soube distinguir perfeitamente entre arte e relações públicas. O que depõe por João é sua artesania, sua técnica. Somente. Elas são a figura pública João Gilberto. Ao contrário de quase todos os outros, o estilo de João é que faz seu Big Brother, jamais sua presença física. Ou sua fala - que só há nas letras de música. Nós não o vemos gastando-se em programas de entrevistas, em clipes, promovendo seus discos. Sequer em produções sofisticados, como o Ensaio, de Faro. Em vinte anos, numa única exceção, ele fez um especial para a Globo uns poucos anos antes da morte de Tom. De resto, o depoimento de João Gilberto a seu público sempre foi o mesmo: música.
Digo isto, porque há uma síntese nessa trindade da bossa-nova. Vinícius era o carioca mais escorreito. Jobim nasceu no Rio, sem dúvida, mas sua família é gaúcha, e ele herdou algo desse temperamento do Sul – ainda que musicalmente, a exemplo de seu ídolo, Villa-Lobos – estivesse mais perto dos sertões aqui de cima. E João, o de Juazeiro da Bahia, quase de Canudos, é o Nordeste em estado puro. Portanto, se o pai é carioca e o filho é assim meio gaúcho, o espírito santo é da Bahia para cima. O mais certo é que os três são cosmopolitíssimos. E João até morou na Cidade do México, por conta de sua admiração pelo bolero e por Lucho Gatica.
Deixando a geografia de lado, não deixa de ser extremamente difícil fazer um documentário sobre bossa-nova pondo tão em campo figuras de fundo e deixando de lado quem realmente importa.
Talvez, por isso mesmo, a ressalva esteja no próprio título: "história e casos da bossa-nova". A desculpa vai um pouco por: “nós, que contamos os casos, contamos sobre Vinícius, Tom e João, que são, de fato, a história da bossa-nova com 'h' maiúsculo".
Bom, mas falei dos azulejos na parede, porque há na bossa-nova um quê de brasilidade e de feminino que é muito comovente. Os azulejos são ladrilhos delgados e têm algo de femino em sua esguia elegância. São frágeis, se isolados. Mas, em painel, atravessam séculos como testemunha de uma arte da mestiçagem e do compósito que já nos foi prometida desde a cultura mourisca. Na verdade, os azulejos são azuis por uma ilusão de ótica. Eles são, de fato, morenos - esse adjetivo que o politicamente correto faz força para nos roubar. A curiosa analogia entre os bossa-novistas e os trovadores provençais, no que diz respeito ao papel sobressalente da mulher, feita por Carlos Lyra, é tão instigante quanto pouco provável.
De resto, só os incautos se deixam apanhar pelas boutades de Menescal. Pois é mais ou menos óbvio que Bôscoli não fez a letra d'O Barquinho relembrando os trancos de um motor que falhava. Ou pode-se duvidar que a razão de a bossa-nova desenvolver um estilo vocal tão em sussurro deveu-se à exigüidade dos apartamentos em Copacabana.
Algumas das imagens mais emocionantes no documentário, no entanto, vêm das latas de arquivo. Como as raras tomadas em que vemos Silvinha Telles. Mas, ainda assim, o travo amargo que fica na boca é o de perceber que o país em que vivemos hoje é uma espécie de desvio descomunal, que passa bem longe da “coisa mais linda” e dos sonhos dessa geração ilustre.
Falo dos azulejos, porque é impossível pensar num ícone que remeta tão expressamente à nossa arquitetura colonial. E, portanto, a um forte senso de tradição. Ora, que me perdoe José Ramos Tinhorão – que, de resto, é um historiador muito agradável de se ler, munido de um conhecimento de causa de se tirar um ou mais chapéus – mas a bossa-nova não é mais do que azulejos postos em música.
É, aliás, nele que se dá uma das tomadas mais belas do filme. Nela se vê Menescal cantarolando ao violão. Até aí, nada de excepcional. Menescal nunca foi propriamente um cantor. Mas, atrás dele há um arco, algo colonial, e, atrás do arco, um pouco à penumbra, na parede a meio, um painel de azulejos com padrões geométricos. Belos azulejos clássicos - ou seria melhor dizer barrocos? Com o perdão da redundância: azuis.
Digo isto, porque chega a ser extemporânea a discussão sobre se a bossa nova bebeu mais no samba, no jazz ou nos compositores impressionistas franceses. Sem dúvida, o samba vem como o ancestral mais determinante. Tanto assim que, num paradoxo, o próprio “criador” da célebre batida, João Gilberto, jamais aceitou o rótulo de bossa-nova. João entende que a música que faz começa com “s” e termina com “a”, tem sua raiz na África, mas medrou na Bahia e no Rio. Agora, mesmo que o jazz ou Debussy tivessem marcado a bossa-nova mais do que o samba – o que seria completamente impossível – ainda assim a bossa-nova valeria a pena.
Há no documentário a presença de grandes músicos. É bom ver Johnny Alf, Alaíde Costa, o Tamba Trio, Leny Andrade, Sérgio Ricardo e Joyce em ação. Ou João Donato, acompanhado por um exultante Robertinho Silva na bateria, num dos melhores momentos musicais do filme.
Mas não deixa de ser curioso, no entanto, que esta celebração do gênero se preencha, sobretudo, pelo que ela não mostra. Pela ausência. Uma espécie de ausência onipresente. Falo da trindade máxima da Bossa Nova, de seu alto clero: Vinícius de Moraes, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto. Afinal, todos falam deles. E toda conversa se não começa neles, neles termina. Coisa Mais Linda põe em campo, digamos, o "médio clero", cuja reza, ainda assim, claro, é interessante de ouvir. Especialmente a de Carlos Lyra, esse grande melodista. Mesmo que as anedotas e os casos não tragam algo de propriamente novo.
Vinícius e Tom já morreram há muitos anos, embora eles assombrem o documentário ao serem tratados com tamanha reverência pelos dois co-produtores do mesmo: Lyra e Menescal. Aliás, Tom chega a aparecer em filme de arquivo, conversando com Gerry Mulligan, cantando com Sinatra. Mas Vinícius, não. Talvez porque o documentário sobre o poeta ainda esteja muito recente.
Bem outro é o caso de João, que também aparece em arquivo. João Gilberto está vivinho da silva. Mas João sempre apontou para o essencial: a figura pública de João sempre foi sua música. As entrevistas de João sempre foram suas magníficas performances. Ele sempre soube distinguir perfeitamente entre arte e relações públicas. O que depõe por João é sua artesania, sua técnica. Somente. Elas são a figura pública João Gilberto. Ao contrário de quase todos os outros, o estilo de João é que faz seu Big Brother, jamais sua presença física. Ou sua fala - que só há nas letras de música. Nós não o vemos gastando-se em programas de entrevistas, em clipes, promovendo seus discos. Sequer em produções sofisticados, como o Ensaio, de Faro. Em vinte anos, numa única exceção, ele fez um especial para a Globo uns poucos anos antes da morte de Tom. De resto, o depoimento de João Gilberto a seu público sempre foi o mesmo: música.
Digo isto, porque há uma síntese nessa trindade da bossa-nova. Vinícius era o carioca mais escorreito. Jobim nasceu no Rio, sem dúvida, mas sua família é gaúcha, e ele herdou algo desse temperamento do Sul – ainda que musicalmente, a exemplo de seu ídolo, Villa-Lobos – estivesse mais perto dos sertões aqui de cima. E João, o de Juazeiro da Bahia, quase de Canudos, é o Nordeste em estado puro. Portanto, se o pai é carioca e o filho é assim meio gaúcho, o espírito santo é da Bahia para cima. O mais certo é que os três são cosmopolitíssimos. E João até morou na Cidade do México, por conta de sua admiração pelo bolero e por Lucho Gatica.
Deixando a geografia de lado, não deixa de ser extremamente difícil fazer um documentário sobre bossa-nova pondo tão em campo figuras de fundo e deixando de lado quem realmente importa.
Talvez, por isso mesmo, a ressalva esteja no próprio título: "história e casos da bossa-nova". A desculpa vai um pouco por: “nós, que contamos os casos, contamos sobre Vinícius, Tom e João, que são, de fato, a história da bossa-nova com 'h' maiúsculo".
Bom, mas falei dos azulejos na parede, porque há na bossa-nova um quê de brasilidade e de feminino que é muito comovente. Os azulejos são ladrilhos delgados e têm algo de femino em sua esguia elegância. São frágeis, se isolados. Mas, em painel, atravessam séculos como testemunha de uma arte da mestiçagem e do compósito que já nos foi prometida desde a cultura mourisca. Na verdade, os azulejos são azuis por uma ilusão de ótica. Eles são, de fato, morenos - esse adjetivo que o politicamente correto faz força para nos roubar. A curiosa analogia entre os bossa-novistas e os trovadores provençais, no que diz respeito ao papel sobressalente da mulher, feita por Carlos Lyra, é tão instigante quanto pouco provável.
De resto, só os incautos se deixam apanhar pelas boutades de Menescal. Pois é mais ou menos óbvio que Bôscoli não fez a letra d'O Barquinho relembrando os trancos de um motor que falhava. Ou pode-se duvidar que a razão de a bossa-nova desenvolver um estilo vocal tão em sussurro deveu-se à exigüidade dos apartamentos em Copacabana.
Algumas das imagens mais emocionantes no documentário, no entanto, vêm das latas de arquivo. Como as raras tomadas em que vemos Silvinha Telles. Mas, ainda assim, o travo amargo que fica na boca é o de perceber que o país em que vivemos hoje é uma espécie de desvio descomunal, que passa bem longe da “coisa mais linda” e dos sonhos dessa geração ilustre.
Falo dos azulejos, porque é impossível pensar num ícone que remeta tão expressamente à nossa arquitetura colonial. E, portanto, a um forte senso de tradição. Ora, que me perdoe José Ramos Tinhorão – que, de resto, é um historiador muito agradável de se ler, munido de um conhecimento de causa de se tirar um ou mais chapéus – mas a bossa-nova não é mais do que azulejos postos em música.
Taí, mais um blog interessante neste mundo.
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