segunda-feira, 10 de agosto de 2009

À luz do ilimitado num mundo de limites


Banett Newman, Vir Heroicus Sublimis, 1951


Poesia, piparotes, anjos & um midraxe


Uma dos mais prodigiosos encantos da poesia é sua capacidade de fazer figurar seu assunto. De quase zerar as distâncias entre conteúdo e forma. E, portanto, de trazer esse assunto o mais rente possível da experiência do próprio leitor. E até de seus sentidos ou afecções – especialmente daquele que não é um leitor especialista [ou mesmo lhe é refratário]. Quando falo em figurar, não me refiro exclusivamente à formação de imagens [ainda que esse seja um aspecto muito importante]. Afinal, o assunto tratado pode não ser um objeto palpável, acessível á vista – uma paisagem rural, um ornitorrinco, um cesto de frutas, uma mulher – mas uma emoção, uma afecção. A esse prodigioso condão da poesia, o de trazer uma intensidade de mundo, uma porção pulsante dele, para muito perto de nós, os autores dão nomes diversos. Peirce chama de 'primeiridade'. Eliot de 'objetivo-correlativo'. Benjamin de 'linguagem adâmica'. Auerbach de 'parataxe' ou 'figura'. [Nota: o mais interessante é que, escrevendo em alemão, o termo que ele pinça é literalmente este 'figura', a partir do latim (e que se mantém intacto no português)]. Jakobson de 'função poética'. O certo e que quanto mais intenso o texto, tanto mais ele imantará a atenção do leitor, convocando-a para uma zona de sensações que brotam com grande vigor. Mas também como se se tratasse de algo já experienciado antes, e que andava um tanto esquecido, amortecido ou inacessível já há tempos. A tal 'emotion recollected in tranquility', de Wordsworth e dos românticos.

Essa última ideia, a de uma relembrança, é curiosamente tanto platônica quanto judaica. Vem de Platão porque nos remete para a lembrança das formas ideais. Das que são, de facto, e não meras imagens nas paredes da caverna. [embora para os mais aristotélicos, também dessas meras imagens se compõe o mundo]. É judaico-cristã, porque implica num tomar contato com um Ser Supremo que é perfeito e imutável e logo – na contingência imperfeita deste mundo – em colher algo que guarda um vestígio [ainda que mínimo] do que realmente "é". [A tremenda auto-definição da divindade em resposta a Moisés: “Eu sou o que sou!”; ou dependendo da tradução “Sou o que é” – e cujo senso naturalmente é o de que tudo o mais não “é”. Ou não “é” integralmente. “É” apenas parcialmente e na medida que se relaciona com “o que é” –“agora vejo em parte”, diz São Paulo na Epístola famosa. Dessa auto-definição duas coisas se pode inferir: 1) não existe poesia para Deus, porque Ele não precisa presentificar nada, ou reatar o nome ao nomeado, a palavra ao objeto, o significante ao significado; nada a rejuntar: nenhuma nostalgia de lugar ou mulher; 2) Toda poesia está em Deus, uma vez que ele é o único que "é". Ou seja, o único ente que, não precisando de suplemento algum [trazer as coisas para perto, relembrá-las, re-experienciá-las, re-nomeá-las, re-enganchá-las, re-compô-las], pode, à sua vez, emprestá-la aos homens]. Há aliás, um gracioso midraxe que pode ser evocado aqui.

Como se sabe os midraxes são em parte narrativas didáticas e edificantes da tradição judaica. Muitas vezes buscam “explicar” às crianças realidades que elas ainda não podem acessar ou dimensionar. Como, por exemplo, o fenômeno da loucura. No midraxe em questão, o fenômeno é explicado de um modo manhosamente bem-humorado. Antes de sermos concebidos, cada um de nós estudou em casas celestiais de ensino. E, logo, tivemos acesso a um conhecimento eterno e ilimitado. Quando nascemos, no entanto, o anjo-da-guarda de cada um, desce até bem próximo do rosto e desfere um piparote no nariz. Através desse toque, esquecemos aquele conhecimento ilimitado. Mas há o caso daqueles em que, por alguma circunstância – certa negligência ou imperícia do anjo – o piparote pega apenas de raspão. No caso desses, ainda sobeja, então, uma noção muito mais ampla do tal conhecimento ilimitado. Esses são os louco, que se põe, à luz dos vestígios desse conhecimento eterno, a sondar e avaliar um mundo não eterno, limitado e imperfeito em que vivemos. Naturalmente, quando isso ocorre, entram em parafuso. [O midraxe é aludido por Gershom Scholem, em seu clássico As Grandes Correntes da Mística Judaica].



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