terça-feira, 11 de agosto de 2009

Dois rios. Desconfluem-se


Cena de uma montagem de Ohio Impromptu [Improviso de Ohio],
de Samuel Beckett




Idem.



'Está chovendo sobre o mundo'


Stay where we were so long alone together, my shade will comfort you”.

Fica onde tanto tempo estivemos sós a dois, minha sombra te confortará”.

[Beckett]


Está chovendo sobre o mundo. Cada passo empoça. E os gestos borram-se sob a cortina d'água. E já não se ouve mais fala, tão tardada a noite avança sob tempestade. Há tanta solidão quando se perde. E tanta agitada calma no coração. Essa dura rejeição dos falsos consolos, que se aprende no Livro de Jó. Para onde foram os passos daqueles dois rios? O riso, o silêncio, sua confluência, que conformava o ilhéu diante do qual divergiam só para rejuntarem-se com mais vazão e espuma a seu final. Um dia. Outro dia. Tudo passa quando se trata de rios. Por vezes prescindindo de palavras? Há cristais d'água sobre os cílios dela, atrás dos quais, além de chuva, o azul fluido dos olhos em fluxo se faz. Nada podem fazer. Quem sabe de si sob uma chuva assim? Cartas marcadas são as de um jogo que, uma vez mais, perdem. Pode-se ver como ele caminha com as mãos nos bolsos, para esconder-lhes o vazio. E tão-só se pressente que há, na carne delas, um conto triste, riscando-se em fado. Não mais. E resta à alma, encharcada na rua vazia, esperar cigarros, café, companhia. Sulco de água não mais aberto em nascente, transitivo, quando as palmas da mão se tomam para ler. E o nome - em mármore e obsidiana - não está mais lá, inscrito. Um rumo de rio.

Para onde?



Nota - para assistir na íntegra a micropeça Improviso de Ohio, legendada em português, clique aqui. [Uma produção inglesa, de 2001, com Jeremy Irons fazendo ambos os papéis: Leitor e Ouvinte. Duração: 10.08 min.]


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