sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Passionalidades e pautas


Pablo Picasso, 1913


Algo de podre nas páginas e planos

Algo de podre nessas coberturas intensas da grande imprensa sobre densas tragédias pessoais. O caso do pai e da madrasta que mataram a filha, o caso da adolescente morta pelo namorado. Tragédias assim certamente ocorrem em muito maior número. Então, por que só uma ou outra é pinçada para ser o assunto da vez no país?
Recentemente, em São Paulo, num congresso, uma escritora me revelou seu “choque” diante da notícia da morte da garota de Santo André. O quanto a notícia a abalou, etc. Mas não acho que ela se chocou pela moça. Ela se chocou ao se imaginar a moça – condição perfeitamente diversa. E eu sei que deveria ter me contido. Mas não pude evitar de lhe perguntar no ato, de modo seco:
--Você a conhecia?
Entre outras, a imprensa trata desses casos quase sempre imputando aos assassinos uma condição de perversidade sobrehumana. E será que é assim? Ou será que os assassinos também assassinam em nome de uma maioria que os quer ver praticando esses crimes hediondos para se auto-felicitar como não tão pervertida? E, logo, se pode concluir que é justamente por ser tão “imponderável” à maioria se imaginar não só como vítima, mas também como assassina, que casos assim fazem tanto “sucesso” na mídia.
No dia em que as pessoas pressentirem que são tão potencialmente assassinas quanto os “monstros” apresentados nos telejornais, os telejornais terão de trocar de pauta. Ou, no mínimo, de abordá-las com maturidade. Num ritmo distinto dos telemelodramas, que ainda tanto sucesso fazem na TV, não é de hoje, agregando cansados clichês tomados de empréstimo ao politicamente correto e sua pueril imbecilidade.
Sem dúvida, um dos maiores problemas da TV brasileira, é essa pulsão para tornar o telespectador um parente próximo – amigo, mãe, pai – das vítimas desses crimes. Como se isso fosse possível. Ao invés de concidadãos que com elas repartem o mesmo país, e por elas são também responsáveis. Mas de outra forma.
A maioria, no entanto, compra o engodo emocional da imprensa. E embarca no vale de lágrimas maniqueísta. Afinal, até tragédias assim devem servir de antídoto contra uma rotina que, a mais das vezes, não nos propõe qualquer contato com uma realidade espiritual mais sincera ou cultivada.
O que a imprensa propõe é que esses dramas – em sua impactante sinergia – sirvam de situações postiças, que nos façam chorar as lágrimas que não choramos. Sentir os choques que, no dia-a-dia, já não conseguimos sentir.
Mas tão mais uma boa cobertura do tipo é bem elaborada quanto menos ela desperta de lacrimoso. Quanto mais ela se dirige, isto sim, à razão e a sobriedade. Certamente à compaixão pelas vítimas. Mas também ao reconhecimento de que assassinar, infelizmente, é uma prática humana ancestralíssima. Está entre as primeiras histórias narradas na Bíblia. Um fratricídio. Tragédia passional. Drama familiar. E só se tomarmos casos assim, isentando-nos de uma revolta de pais e familiares – que talvez sintam, em algum momento, a pulsão de linchar o criminoso, não menos – é possível de fato fazer justiça sem farsa.
Sem transformar tragédias reais em espetáculos de Big Brother. Elas já são medonhas. Não há nenhuma necessidade de torná-las ainda mais grotescas.


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