quarta-feira, 12 de maio de 2010

Ter recebido não sei de onde aquilo de que sou autor



Eugène Atget, Magasin, avenue des Gobelins, 1922






Sobre um certo‭ “‬eis-me aqui‭”

é tempo, eles sabem.
Tempo da pedra esforçar-se e florar,
tempo do desassossego ter um pulso.
É tempo, que seja tempo.

É tempo.

[Paul Celan]


Cada vez mais e esse convencimento:‭ ‬um relato autobiográfico só vale se nele está contida uma ética do testemunho.‭ ‬E o testemunho não visa uma audiência.‭ ‬Ou busca torná-la mais ampla.‭ ‬Ou popularizar-se.‭ ‬Isto é da informação.‭ ‬Ou do número.‭ ‬De quem busca o impacto e a série.‭ ‬
A ética do testemunho é outra.‭ ‬A ética do testemunho é muito mais exigente.‭ ‬A ética do testemunho é um‭ “‬eis-me aqui‭”‬.‭ ‬Pode-se senti-la nos grandes memorialistas do século passado.‭ ‬Num Elias Canetti,‭ ‬num Primo Levi,‭ ‬num Graciliano Ramos.‭ ‬Num Paul Celan.
O testemunho sempre se propõe rente a um momento indispensável.‭ ‬São a gratuidade de seu relato e a sinceridade de sua impressão que a ele conferem essa tendência à infinitude‭ ‬-embora ele seja profundamente finito e limiarizado. [A sensação de infinitude provem da diversidade de planos, da complexidade - que é, em verdade, algo mais próximo da simplicidade quotidiana].
Eis porque nenhum escritor sincero pode visar a massa quando dá testemunho de si.‭ ‬Ele visa o Outro.‭ ‬Imediatamente o Outro.‭ ‬Cerradamente o Outro.‭ ‬Como se quisesse coincidir com ele.‭ ‬Não com um grupo,‭ ‬mas com o indivíduo.‭ ‬Ele visa,‭ ‬acima de tudo,‭ ‬o Próximo.‭ ‬E é ao Próximo a quem diz este‭ “‬eis-me aqui‭”‬.
E,‭ ‬mais,‭ ‬essa ética do testemunho,‭ ‬este‭ “‬eis-me aqui‭”‬,‭ ‬é uma inspiração.‭ ‬É como diz Lévinas:‭ “‬ter recebido não sei de onde aquilo de que sou autor‭”‬.‭ ‬Daí que o testemunho,‭ ‬como grau de escritura em sinceridade,‭ ‬preceda teses e clichês ideológicos ou estéticos pré-concebidos.‭ ‬O testemunho,‭ ‬esteio da autobiografia é,‭ ‬antes de mais nada,‭ ‬dilaceradamente anti-maniqueísta.‭
O testemunho é uma intuição. No senso bergsoniano. Algo que não segue limitado por qualquer determinismo ou devir histórico. Aqui mora a causa de o testemunho nada ter a ver com o jornal. Ou compromisso com nenhum veículo ou suporte que não o próprio magnetismo de seu dizer. Ele não sabe o que são modas, vanguardas, gêneros, redes sociais, nacionalismos tacanhos, filiações políticas ortodoxas, castradoras. Uma intuição não tem uma intenção. É desprovida de uma tese anterior. Uma intuição fixa os objetos como talvez os objetos nos fitam. George Oppen dizia: "eu vejo o que a folha de grama veria se tivesse olhos".
O testemunho vê do ângulo que vê com olhos descalços. E o ângulo que vê é misteriosamente o mais apropriado para "ex-primir" a substância do testemunhado. Por isso ele se constitui num momento de afeto sem intencionalidade. Uma afetivação sem endereço até o máximo grau em que isso é possível: sair da casca do eu para dar existência à vida do Próximo. Ou então, seguir-se à morte de alguém - não se pode experienciá-la ou sequer relacionar-se com ela num âmbito verdadeiro, pois aqui tudo é mistério - com a inquietude e a responsabilidade do sobrevivente.
Ou posto em outras palavras: quanta solidão não é necessária para pôr-se rente, realmente na companhia de outrem?
Ninguém pode testemunhar pelo testemunho, já dizia alguém. E por um motivo simples: o testemunho é o momento em que o momento é.


P.S. --- é mais ou menos óbvio que esta noção de testemunho, que este "eis-me aqui" não se limita a autobiografia, embora nela seja mais convocado ou evidente. Pode-se dizer que Atget testemunhou a Paris do início do século com suas fotos. Que Robert Bresson testemunhou alguns dos aspectos mais nefastos da vida moderna nos seus filmes. Que Ernest Hemingway testemunhou a falta de perspectiva de toda uma geração retratada em The Sun Also Rises. Que Euclydes da Cunha testemunhou a brutalidade da Guerra de Canudos n'Os Sertões. E daí em diante. Muitos adiantes depois. E era uma vez.


* * *

Um comentário:

  1. Gostei da idéia do próximo. O termo Outro já está meio gasto, místico demais. O próximo, com essa ressonância dos ensinamentos de Jesus, é interessante. Há uma humildade insinuada nisso.

    Que bom que voltou a escrever, Ruy!

    Abraço,

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