Eugène Atget, Magasin, avenue des Gobelins, 1922
Sobre um certo “eis-me aqui”
é tempo, eles sabem.
Tempo da pedra esforçar-se e florar,
tempo do desassossego ter um pulso.
É tempo, que seja tempo.
É tempo.
[Paul Celan]
Cada vez mais e esse convencimento: um relato autobiográfico só vale se nele está contida uma ética do testemunho. E o testemunho não visa uma audiência. Ou busca torná-la mais ampla. Ou popularizar-se. Isto é da informação. Ou do número. De quem busca o impacto e a série.
A ética do testemunho é outra. A ética do testemunho é muito mais exigente. A ética do testemunho é um “eis-me aqui”. Pode-se senti-la nos grandes memorialistas do século passado. Num Elias Canetti, num Primo Levi, num Graciliano Ramos. Num Paul Celan.
O testemunho sempre se propõe rente a um momento indispensável. São a gratuidade de seu relato e a sinceridade de sua impressão que a ele conferem essa tendência à infinitude -embora ele seja profundamente finito e limiarizado. [A sensação de infinitude provem da diversidade de planos, da complexidade - que é, em verdade, algo mais próximo da simplicidade quotidiana].
Eis porque nenhum escritor sincero pode visar a massa quando dá testemunho de si. Ele visa o Outro. Imediatamente o Outro. Cerradamente o Outro. Como se quisesse coincidir com ele. Não com um grupo, mas com o indivíduo. Ele visa, acima de tudo, o Próximo. E é ao Próximo a quem diz este “eis-me aqui”.
E, mais, essa ética do testemunho, este “eis-me aqui”, é uma inspiração. É como diz Lévinas: “ter recebido não sei de onde aquilo de que sou autor”. Daí que o testemunho, como grau de escritura em sinceridade, preceda teses e clichês ideológicos ou estéticos pré-concebidos. O testemunho, esteio da autobiografia é, antes de mais nada, dilaceradamente anti-maniqueísta.
O testemunho é uma intuição. No senso bergsoniano. Algo que não segue limitado por qualquer determinismo ou devir histórico. Aqui mora a causa de o testemunho nada ter a ver com o jornal. Ou compromisso com nenhum veículo ou suporte que não o próprio magnetismo de seu dizer. Ele não sabe o que são modas, vanguardas, gêneros, redes sociais, nacionalismos tacanhos, filiações políticas ortodoxas, castradoras. Uma intuição não tem uma intenção. É desprovida de uma tese anterior. Uma intuição fixa os objetos como talvez os objetos nos fitam. George Oppen dizia: "eu vejo o que a folha de grama veria se tivesse olhos".
O testemunho vê do ângulo que vê com olhos descalços. E o ângulo que vê é misteriosamente o mais apropriado para "ex-primir" a substância do testemunhado. Por isso ele se constitui num momento de afeto sem intencionalidade. Uma afetivação sem endereço até o máximo grau em que isso é possível: sair da casca do eu para dar existência à vida do Próximo. Ou então, seguir-se à morte de alguém - não se pode experienciá-la ou sequer relacionar-se com ela num âmbito verdadeiro, pois aqui tudo é mistério - com a inquietude e a responsabilidade do sobrevivente.
Ou posto em outras palavras: quanta solidão não é necessária para pôr-se rente, realmente na companhia de outrem?
Ninguém pode testemunhar pelo testemunho, já dizia alguém. E por um motivo simples: o testemunho é o momento em que o momento é.
P.S. --- é mais ou menos óbvio que esta noção de testemunho, que este "eis-me aqui" não se limita a autobiografia, embora nela seja mais convocado ou evidente. Pode-se dizer que Atget testemunhou a Paris do início do século com suas fotos. Que Robert Bresson testemunhou alguns dos aspectos mais nefastos da vida moderna nos seus filmes. Que Ernest Hemingway testemunhou a falta de perspectiva de toda uma geração retratada em The Sun Also Rises. Que Euclydes da Cunha testemunhou a brutalidade da Guerra de Canudos n'Os Sertões. E daí em diante. Muitos adiantes depois. E era uma vez.
* * *
Gostei da idéia do próximo. O termo Outro já está meio gasto, místico demais. O próximo, com essa ressonância dos ensinamentos de Jesus, é interessante. Há uma humildade insinuada nisso.
ResponderExcluirQue bom que voltou a escrever, Ruy!
Abraço,