Patio de Los Leones, na Alhambra, Granada, meados do sec. XIV
Minuta Sobre A Insônia
Então não se dorme. Então não se perde a consciência. Logo não se desperta. Como no sonho que enforma o Finnegan's Wake.
Há uma certa insônia que se dá por amor? Ou melhor: por solidariedade? - já que a palavra 'charitas' que equivale mais ou menos ao 'ágape' grego, que pode ser uma equivalente da palavra "amor" significa hoje algo tão medíocre como o sentido que se dá à palavra caridade? Existe algo mais arcaico que dizer de alguém que essa pessoa é caridosa? Ou, por outra, o que dá mais status hoje: "fazer amor" ou "fazer caridade"? E, de mais, a palavra amor tem sido tão enxovalhada nos blockbusters, na TV, como crer nela? Vale a pena mencioná-la? Falar nela? Em nome dela, sem tentar tirar a asfixia que a involucra e faz com que em tudo vejamos motivos de tirar algum proveito sobre?
A insônia. Ela come teu descanso. Aumenta tua exaustão. Resiliencia teu desassossego. Tua insatisfação. Mas notem que ela é quase sempre vista como um valor negativo. A insônia, por exemplo, nunca é vista, na modernidade, como uma forma de velar.
Velar é um verbo antigo, que se relaciona também com a necessidade de vigiar, de passar a noite junto ao defunto para que nada ou ninguém o perturbe justo no início de seu sono sem volta.
Talvez a insônia, então, não seja apenas uma incapacidade psíquica de repouso. Mas uma deliberada busca do não repouso em solidariedade não só aos vivos que sofrem, mas também aos que já repousam para sempre. Essa é a capacidade de velar que foi inteiramente perdida na modernidade. Algo semelhante ao que diz Simone Weil sobre nossa total incapacidade para o sacrifício.
Pois uma das primeiras coisas que Cervantes faz é troçar de D. Quixote ao fazê-lo velar suas armas antes de ser armado cavaleiro. Na imaginação atabalhoada do fidalgo em desassossego, assombrado pelas velhas novelas de cavalaria, duas putas e um taverneiro são duas damas nobres e um castelão.
Mas a consciência de Cervantes é já moderna. Ele sabe do pragmatismo que é dormir, descansar. E sonhar. E despertar desses sonhos. Repousar e refazer-se. "Estar em paz consigo mesmo", como se diz. Ele já suspeita da insônia. Como algo inútil, porque não irá restituir ao morto nenhum ganho e assegurar ao vivo nenhum repouso. Porque não irá repassar as armas do cavaleiro nenhuma dignidade ou benção. Porque é já impossível ser cavaleiro. Como Sir Lancelot du Lac. Ou outros piedosos cavaleiros, como Sir Gwain ou o mais pio de todos: Sir Perceval. O único que encontrou o Graal, mas também nunca retornou com a posse dele...
Por isso o sonho de remendar o mundo do magro fidalgo da Mancha assoma ainda mais estéril e patético aos nossos olhos. Mesmo que ao final de tudo haja alguma benevolência de Cervantes em relação ao seu invento. Porque os grandes escritores se dão uma espécie de respiro. Não é o Memorial de Aires um livro menos opressivo que as Memórias Póstumas? A resposta é sim. É uma tentativa de reconciliação. A ironia, aqui, é que estas tentativas de reconciliação - como o Segundo Quixote - acabam sempre anãs diante da corrosividade da obra-prima que detém, de fato, uma áspera Misantropia. Talvez para que o choque da Misantropia desperte a insônia em quem dorme bem. Quer dizer em quem dorme bem mal. Talvez porque em seu propósito o próprio escritor tema ser confundido com a crueza de suas observações. Ou seja assombrado pelo fato de que elas não sejam entendidas pelo leitor como fontes de ironia que, justamente, afirmam o contrário do modo como eles querem entrever o mundo. Quer dizer, o temor que o leitor não perceba que aquilo está deliberadamente posto em distopia. Intervalado pela distância entre a crueldade do real e a ternura do ideal. Como quando Brás Cubas percebe que Eugênia, a quem fazia a corte, mancava de uma das pernas. E solta a célebre frase -- que aliás resguarda toda o esquema de dedução lógica cartesiana: "Se manca, por que bela?"
Então, quando a insônia pesa nos olhos não será apenas por uma questão de consciência e peso. Certamente não. Pode ser também por uma extremada forma de companhia. Aos que não tem mais movimento. Aos que não tem mais companhia. Uma modalidade do velar. Uma espécie de estar ao lado do defunto. De fazer-lhe companhia. Não literalmente. Aos defuntos que já são defuntos em vida. Que já são mancos em vida. Ou á memória dos que acabaram de partir, de nos deixar. Ao que foi e não foi dito, ouvido, praticado, visto, escarrado ecuspido por eles. De atribuir um valor a tudo isto. Talvez por conta do que diz Benjamin na sexta de suas Teses Sobre O Conceito de História:
O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Ao que parece, esse historiador almeja velar. Em última instância, é um homem insone. O leitor que virou livro de Stevens, na casa calma, na quieta noite de verão, que era uma perfeição pensada? [para ler este poema, clique aqui].
De novo, o problema é de excesso e de superfície e de meio. O excesso de superfície leva ao excesso de meio. É possível que à experiência direta se sobreponha uma mediatizada. Que em vez de fruirmos, de pormos nossa sensibilidade, nosso corpo, no encalço de perceber, digamos, diretamente um espaço prefiramos interpôr um meio entre nós e esse espaço. [o risco que se pode perceber aqui é que se interponha esse meio excessivamente entre nós e nós].
Esse meio pode, digamos, ser uma câmera, por exemplo. Ou um notebook. Ou um i-phone. E quem sabe, como sugere Agamben, não é que não existam mais experiências, como as concebe e nos ensina Benjamin. Mas que elas se dão de outra forma. Elas se dão fora do homem, "e, curiosamente, o homem olha para elas com alívio. Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da terra (digamos, o Patio de los Leones na Alhambra), a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter a experiência delas. Não se trata aqui, naturalmente, de deplorar esta realidade mas de constatá-la. Pois talvez se esconda no fundo desta recusa aparentemente disparatada, um grão de sabedoria no qual podemos adivinhar, em hibernação, o germe de uma experiência futura".
Esta não renúncia à experiência - naturalmente entrevista de uma outra forma, de um outro ângulo por Agamben - não deixa de ser, neste ponto, o de indicar, o de apontar para uma nova estruturação da experiência, um dos melhores momentos de seu pensar. Porque ele, de certa forma, também indica a inquietude do insone. Daquele que, em devaneio, trata de sondar, busca pressentir as novas formas dessa experiência a qual não renunciamos --- mas que se encontra em germe. Mediatizada, talvez. E, ainda assim, muito mais pressentível pelo solitário que às três da madrugada, em silêncio, sonha acordado com a possibilidade de mundo repovoado pela força dessa nova experiência.
Pensar como Bloch [um Bloch contextualizado por Lévinas], que inverte os termos da equação de Heidegger: "pensar a morte a partir do tempo; e não o tempo a partir da morte".
Esta é a ética do insone. Se é que ele tem uma.
* * *
oi ruy
ResponderExcluir"INSÔNIA"(Virgilio Piñera)
O homem deita-se cedo. Não pode conciliar o sono. Dá voltas, como é de se supor, na cama. Enreda-se entre os lençóis. Acende um cigarro. Lê um pouco. Torna a apagar a luz. Mas não pode dormir. Às três da madrugada levanta-se. Acorda o amigo do lado e confia-lhe que não pode dormir. Pede conselho. O amigo Ihe aconselha a dar um pequeno passeio a fim de cansar-se um pouco. Que em seguida tome uma xícara de chá de cidreira e que apague a luz. Faz tudo isto, mas não consegue dormir. Torna a levantar-se. Desta vez recorre ao médico. Como sempre sucede, o médico fala muito, mas o homem não dorme. Às seis da manhã carrega um revólver e estoura os miolos. O homem está morto, mas não pôde dormir. A insônia é uma coisa muito persistente.
Contos:(de Contos Frios. Tradução de Teresa Cristófani Barreto.
aldir brasil
Ruy,
ResponderExcluirComo sempre te digo: precisamos reunir suas crônicas em livro o quanto antes. Projeto urgente.
Grande abraço,
Cláudio
valeu o envio desta 'insônia' segundo piñera, aldir.
ResponderExcluirabs.
ruy