quinta-feira, 13 de maio de 2010

Velar como rastreamento de uma experiência futura


Patio de Los Leones, na Alhambra, Granada, meados do sec. XIV



Minuta Sobre A Insônia


Então não se dorme.‭ ‬Então não se perde a consciência.‭ ‬Logo não se desperta.‭ ‬Como no sonho que enforma o Finnegan's Wake.

Há uma certa insônia que se dá por amor‭? ‬Ou melhor:‭ ‬por solidariedade‭? ‬-‭ ‬já que a palavra‭ '‬charitas‭' ‬que equivale mais ou menos ao‭ '‬ágape‭' ‬grego,‭ ‬que pode ser uma equivalente da palavra‭ "‬amor‭" ‬significa hoje algo tão medíocre como o sentido que se dá à palavra caridade‭? ‬Existe algo mais arcaico que dizer de alguém que essa pessoa é caridosa‭? ‬Ou,‭ ‬por outra,‭ ‬o que dá mais status hoje:‭ "‬fazer amor‭" ‬ou‭ "‬fazer caridade‭"? ‬E,‭ ‬de mais,‭ ‬a palavra amor tem sido tão enxovalhada‭ ‬nos blockbusters,‭ ‬na TV,‭ ‬como crer nela‭? ‬Vale a pena mencioná-la‭? ‬Falar nela‭? ‬Em nome dela, sem tentar tirar a asfixia que a involucra e faz com que em tudo vejamos motivos de tirar algum proveito sobre‭?

A insônia.‭ ‬Ela come teu descanso.‭ ‬Aumenta tua exaustão.‭ ‬Resiliencia teu desassossego. Tua insatisfação. Mas notem que ela é quase sempre vista como um valor negativo.‭ ‬A insônia, por exemplo, nunca é vista, na modernidade, como uma forma de velar.

Velar é um verbo antigo,‭ ‬que se relaciona também com a necessidade de vigiar,‭ ‬de passar a noite junto ao defunto para que nada ou ninguém o perturbe justo no início de seu sono sem volta.

Talvez a insônia,‭ ‬então,‭ ‬não seja apenas uma incapacidade psíquica de repouso.‭ ‬Mas uma deliberada busca do não repouso em solidariedade não só aos vivos que sofrem,‭ ‬mas também aos que já repousam para sempre.‭ ‬Essa é a capacidade de velar que foi inteiramente perdida na modernidade.‭ ‬Algo semelhante ao que diz Simone Weil sobre nossa total incapacidade para o sacrifício.

Pois uma das primeiras coisas que Cervantes faz é troçar de D.‭ ‬Quixote ao fazê-lo velar suas armas antes de ser armado cavaleiro.‭ ‬Na imaginação atabalhoada do fidalgo em desassossego,‭ ‬assombrado pelas velhas novelas de cavalaria,‭ ‬duas putas e um taverneiro são duas damas nobres e um castelão.

Mas a consciência de Cervantes é já moderna.‭ ‬Ele sabe do pragmatismo que é dormir,‭ ‬descansar.‭ ‬E sonhar.‭ ‬E despertar desses sonhos.‭ ‬Repousar e refazer-se.‭ "‬Estar em paz consigo mesmo‭"‬,‭ ‬como se diz.‭ ‬Ele já suspeita da insônia.‭ ‬Como algo inútil,‭ ‬porque não irá restituir ao morto nenhum ganho e assegurar ao vivo nenhum repouso.‭ ‬Porque não irá repassar as armas do cavaleiro nenhuma dignidade ou benção.‭ ‬Porque é já impossível ser cavaleiro.‭ ‬Como Sir Lancelot du Lac.‭ ‬Ou outros piedosos cavaleiros,‭ ‬como Sir Gwain ou o mais pio de todos: Sir Perceval.‭ ‬O único que encontrou o Graal,‭ ‬mas também nunca retornou com a posse dele...

Por isso o sonho de remendar o mundo do magro fidalgo da Mancha assoma ainda mais estéril e patético aos nossos olhos.‭ ‬Mesmo que ao final de tudo haja alguma benevolência de Cervantes em relação ao seu invento.‭ ‬Porque os grandes escritores se dão uma espécie de respiro.‭ ‬Não é o Memorial de Aires um livro menos opressivo que as Memórias Póstumas‭? ‬A resposta é sim.‭ ‬É uma tentativa de reconciliação.‭ ‬A ironia,‭ ‬aqui,‭ ‬é que estas tentativas de reconciliação - como o Segundo Quixote - acabam sempre anãs diante da corrosividade da obra-prima que detém,‭ ‬de fato,‭ ‬uma áspera Misantropia.‭ ‬Talvez para que o choque da Misantropia desperte a insônia em quem dorme bem.‭ ‬Quer dizer em quem dorme bem mal.‭ ‬Talvez porque em seu propósito o próprio escritor tema ser confundido com a crueza de suas observações.‭ ‬Ou seja assombrado pelo fato de que elas não sejam entendidas pelo leitor como fontes de ironia que,‭ ‬justamente,‭ ‬afirmam o contrário do modo como eles querem entrever o mundo.‭ ‬Quer dizer,‭ ‬o temor que o leitor não perceba que aquilo está deliberadamente posto em distopia. Intervalado pela distância entre a crueldade do real e a ternura do ideal. Como quando Brás Cubas percebe que Eugênia, a quem fazia a corte, mancava de uma das pernas. E solta a célebre frase -- que aliás resguarda toda o esquema de dedução lógica cartesiana: "Se manca, por que bela?"

Então,‭ ‬quando a insônia pesa nos olhos não será apenas por uma questão de consciência e peso.‭ ‬Certamente não.‭ ‬Pode ser também por uma extremada forma de companhia.‭ ‬Aos que não tem mais movimento.‭ ‬Aos que não tem mais companhia.‭ ‬Uma modalidade do velar.‭ ‬Uma espécie de estar ao lado do defunto.‭ ‬De fazer-lhe companhia.‭ ‬Não literalmente.‭ ‬Aos defuntos que já são defuntos em vida.‭ Que já são mancos em vida. Ou á memória dos que acabaram de partir,‭ ‬de nos deixar.‭ ‬Ao que foi e não foi dito,‭ ‬ouvido,‭ ‬praticado,‭ ‬visto,‭ ‬escarrado ecuspido por eles.‭ ‬De atribuir um valor a tudo isto.‭ ‬Talvez por conta do que diz Benjamin na sexta de suas Teses Sobre O Conceito de História:

O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer.‭ ‬E esse inimigo não tem cessado de vencer.

Ao que parece,‭ ‬esse historiador almeja velar.‭ ‬Em última instância,‭ ‬é um homem insone.‭ ‬O leitor que virou livro de Stevens,‭ ‬na casa calma,‭ ‬na quieta noite de verão,‭ ‬que era uma perfeição pensada‭? [para ler este poema, clique aqui].

De novo,‭ ‬o problema é de excesso e de superfície e de meio.‭ ‬O excesso de superfície leva ao excesso de meio.‭ ‬É possível que à experiência direta se sobreponha uma mediatizada.‭ ‬Que em vez de fruirmos,‭ ‬de pormos nossa sensibilidade, nosso corpo, no encalço de perceber, digamos, diretamente um espaço prefiramos interpôr um meio entre nós e esse espaço.‭ [‬o risco que se pode perceber aqui é que se interponha esse meio excessivamente entre nós e nós‭]‬.

Esse meio pode,‭ ‬digamos,‭ ‬ser uma câmera,‭ ‬por exemplo.‭ ‬Ou um notebook.‭ ‬Ou um i-phone.‭ ‬E quem sabe,‭ ‬como sugere Agamben,‭ ‬não é que não existam mais experiências,‭ ‬como as concebe e nos ensina Benjamin.‭ ‬Mas que elas se dão de outra forma.‭ ‬Elas se dão fora do homem,‭ "‬e,‭ ‬curiosamente,‭ ‬o homem olha para elas com alívio.‭ ‬Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é,‭ ‬desse ponto de vista,‭ ‬particularmente instrutiva.‭ ‬Posta diante das maiores maravilhas da terra‭ (‬digamos,‭ ‬o Patio de los Leones na Alhambra‭)‬,‭ ‬a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las:‭ ‬prefere que seja a máquina fotográfica a ter a experiência delas.‭ ‬Não se trata aqui,‭ ‬naturalmente,‭ ‬de deplorar esta realidade mas de constatá-la.‭ ‬Pois talvez se esconda no fundo desta recusa aparentemente disparatada,‭ ‬um grão de sabedoria no qual podemos adivinhar,‭ ‬em hibernação,‭ ‬o germe de uma experiência futura‭"‬.

Esta não renúncia à experiência‭ ‬-‭ ‬naturalmente entrevista de uma outra forma,‭ ‬de um outro ângulo por Agamben‭ ‬-‭ ‬não deixa de ser,‭ neste ponto, o de indicar,‭ ‬o de apontar para uma nova estruturação da experiência,‭ ‬um dos melhores momentos de seu pensar.‭ ‬Porque ele,‭ ‬de certa forma,‭ ‬também indica a inquietude do insone.‭ ‬Daquele que,‭ ‬em devaneio,‭ ‬trata de sondar,‭ ‬busca pressentir as novas formas dessa experiência a qual não renunciamos‭ ‬---‭ ‬mas que se encontra em germe.‭ ‬Mediatizada,‭ ‬talvez.‭ ‬E, ainda assim, muito mais pressentível pelo solitário que às três da madrugada,‭ ‬em silêncio,‭ ‬sonha acordado com a possibilidade de mundo repovoado pela força dessa nova experiência.

Pensar como Bloch [um Bloch contextualizado por Lévinas],‭ ‬que inverte os termos da equação de Heidegger:‭ "‬pensar a morte a partir do tempo‭; ‬e não o tempo a partir da morte‭"‬.

Esta é a ética do insone.‭ ‬Se é que ele tem uma.




‭* * *

3 comentários:

  1. oi ruy

    "INSÔNIA"(Virgilio Piñera)
    O homem deita-se cedo. Não pode conciliar o sono. Dá voltas, como é de se supor, na cama. Enreda-se entre os lençóis. Acende um cigarro. Lê um pouco. Torna a apagar a luz. Mas não pode dormir. Às três da madrugada levanta-se. Acorda o amigo do lado e confia-lhe que não pode dormir. Pede conselho. O amigo Ihe aconselha a dar um pequeno passeio a fim de cansar-se um pouco. Que em seguida tome uma xícara de chá de cidreira e que apague a luz. Faz tudo isto, mas não consegue dormir. Torna a levantar-se. Desta vez recorre ao médico. Como sempre sucede, o médico fala muito, mas o homem não dorme. Às seis da manhã carrega um revólver e estoura os miolos. O homem está morto, mas não pôde dormir. A insônia é uma coisa muito persistente.


    Contos:(de Contos Frios. Tradução de Teresa Cristófani Barreto.

    aldir brasil

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  2. Ruy,

    Como sempre te digo: precisamos reunir suas crônicas em livro o quanto antes. Projeto urgente.

    Grande abraço,
    Cláudio

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  3. valeu o envio desta 'insônia' segundo piñera, aldir.

    abs.

    ruy

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