Angela Bulloch, Sculpture for football songs, 1998
Djalminha e outras digressões sobre futebol
Houve um talento dos gramados chamado Djalma Feitosa Dias. A ele gostava mais de ver que qualquer futebolista de primeira linha da atual geração – inclua-se aqui o aplicado Kaká. Djalminha desenhava jogadas com os pés com uma precisão cirúrgica e uma perícia que nenhum cirurgião plástico jamais atingirá. Driblava e passava com precisão. Era um canhoto de dotes excepcionais.
Digo isso em imparcialidade. Só torço por dois times de futebol. Torço por eles com extrema paixão, muita ilusão e certo golpe de desesperançado realismo: o Ferroviário F.C. de Fortaleza; e os Wanderers de Montevidéu. O primeiro por razões de família. Era o time de meu avô paterno – que de resto, foi funcionário da Rede Viação Cearense (RVC, que além de haver sido o nome oficial de nossa Estrada-de-Ferro por décadas, forma também a iniciais de meu nome: Ruy Vasconcelos de Carvalho). O Ferroviário Atlético Clube é também o time de meu pai. Embora ambos – e muito especialmente o segundo – jamais demonstraram grande interesse pelo esporte ou pelo Ferroviário. Minto. Meu avô chegou a jogar bola em seus tempos de solteiro aí pelos idos de 20. E fora mais entusiasmado que meu pai. Mas mesmo isso só vi em fotos, porque ele era um homem formal demais para falar dessas coisas. Já meu pai, bem, este sempre deu preferência a esportes mais “frios”, como a natação ou o tênis, apesar de nunca safar-se da febre que assola o país durante os Mundiais. E postar-se liturgicamente diante do monitor da TV para acompanhar a Seleção.
Ainda em família, tenho um irmão que é santista roxo e outro que se um dia, certamente por equívoco, entrar num estádio, irá perguntar: "mas quem é mesmo a bola"? -- como está escrito em Nélson Rodrigues. Minha mãe e, sobretudo, minhas duas irmãs, gostam de vôlei. E só vêem a Copa do Mundo. Ás vezes, uma ou outra partida avulsa do Brasileirão, mais para matar o tempo e conversar um pouco. Torcem pelos jogadores que acham bonitos. E soltam gritinhos se eles levam pontapés. O que desperta certo desejo na gente que eles, de fato, levem umas botinadas a mais. Uma de minhas irmãs, que morou algum tempo na Itália, nutre certa simpatia por aquela seleção pavorosamente defensiva. Fazer o quê?
Já meu outro time, os Wanderers, de Montevidéu, é uma agremiação de tradição boêmia. Algo que não rima muito com futebol. Mas, convenhamos, possuem um nome esplêndido. Muito sugestivo. E de nomes a realidade de cada um se faz. Eles se grudam às coisas e às pessoas. Além disso não disfarço o apreço que tenho por essa cidade e esse pequeno país que é uma espécie de espelho nosso, invertido. Mil vezes perder uma Copa do Mundo em casa para esses aguerridos uruguaios que para uma equipe europeia. Embora melhor seja mesmo ganhar, claro está.
O fato é que estou em maus lençóis. Os Montevideo Wanderers nunca mais conquistaram lá algo de muito importante no Uruguai após a década de 30 - embora estejam na primeira divisão e com um jogador brasileiro este ano. Já o Ferroviário chegou a ser campeão estadual algumas vezes. O que não conta muito, num estado de alguma tradição futebolística, mas de quase nenhum impacto no ludopedismo nacional. Talvez a maior contribuição do Ceará ao futebol brasileiro foi o mítico ponta-esquerda Canhoteiro. Uma espécie de Garrincha da ponta-esquerda e de espírito tão autodestrutivo fora de campo quanto o “anjo das pernas tortas”. Mas Canhoteiro era do Maranhão, embora tenha começado sua carreira num pequeno time de Fortaleza, o América.
O maior feito recente de um clube cearense foi o Ceará Sporting ter conseguido ser vice-campeão da Copa do Brasil em 1994. Jogava sempre numa humilhante retranca e perdeu para o Grêmio na final. Algumas vezes este clube e o Fortaleza E. C. ascendem á 1ª Divisão. Em geral, para nos fazer passar alguma vergonha, e cair na temporada seguinte. Como deve ser a sina do Ceará Sporting este ano, infelizmente. O “tubarão da Barra” é como se conhece por aqui o Ferroviário, a terceira força do estado. Mas nos últimos tempos o time, digamos, não está no melhor de sua forma -- como quando goleou o Bahia por 7x2, na série C. Ainda assim, chegamos a ser bi- campeões cearenses, 1994-95. E estamos entre os 100 maiores clubes do Brasil [82ª posição]. E de nossas hostes saíram uns poucos jogadores que depois alcançaram certo renome. Como Jacinto, um meia de talento ou Mário Jardel, centro-avante de força e cabeceio. Porém de momento a equipe não está sequer na 3ª divisão.
Sem embargo, minha política de torcer vai sempre por quem está mais perto de casa. Se joga um time do Nordeste, estou com ele. Mesmo sabendo que, em geral – à exceção de Sport Recife e do Bahia em seus melhores dias – estou do lado mais fraco do cabo-de-guerra.
De times realmente grandes, vaga simpatia pelo Flamengo. Por conta da excepcional equipe do início dos anos 80. Vista na adolescência. Um grupo que congregava talentos do gol à ponta esquerda: o volante Adílio; o defesa Carpegiani; os excepcionais alas Júnior e Leandro [os mesmos da seleção de 82']; o goleiro Cantarelli; o impetuoso avançado Nunes, de mais força e explosão que técnica; e, comandando toda essa patuscada, o mago Zico. Esta equipe foi campeã brasileira, continental e intercontinental, derrotando o, então, poderoso Liverpool. Talvez seja o time que eu mais lembre a escalação regular, depois da inigualável Seleção Brasileira de 82'. A derrota desta seleção significou para minha geração uma tragédia de dimensões escatológicas. Uma espécie de sebastianismo do futebol. Um divisor de águas inefavelmente trágico. A primeira noção real e concreta que tive de que o mundo é injusto. E de algo que se encontra escrito no Livro de Jó.
E é claro que foi algo mais que uma simples derrota. Foi a vitória definitiva do futebol pragmático e feio sobre o engenho e a arte. E as consequências nefastas disto, desde 82' até hoje.
Entre seleções europeias, fico com Portugal, Espanha e Holanda. E torço deslavadamente contra França, Alemanha, Itália e Inglaterra, nessa ordem.
Há ainda uma mais vaga simpatia pelo São Paulo. Somente em memória do grande time montado por Telê Santana no início dos 90. Mas por vezes, especialmente nos últimos anos, em que o estilo Muricy Ramalho, de força e pragmatismo, tanto lembra os times sulistas, como o Grêmio, não arranco fio de cabelo se o São Paulo é goleado. Gostava mesmo era daquela time do Telê. Como alguns outros times do Telê, feito o Atlético Mineiro da passagem dos 70 pros 80: João Leite, o talentoso Toninho Cerezo, Éder, o excepcional Reinaldo, Paulo Isidoro & Cia.
Afora isso, algumas antipatias quase fortuitas: o Corinthians, mesmo que Sócrates – a quem vi em ação no Castelão, com toda sua distinta classe, ainda pelo Botafogo de Ribeirão Preto – tenha jogado em suas linhas. Acho essa antipatia meio irracional. Não sei explicá-la. Nem busco. Mas torço sempre contra o Corinthians com fervor. E sua derrota me dá certo prazer. Isso também inclui, em menor grau, o Palmeiras, apesar de Ademir da Guia, o divino; Leivinha; o grande Luís Pereira e toda a academia – que, de resto eu tinha em jogo de botão. Eu admirava o Palmeiras, assim como o Santos. Mas a destruição de um vagão de metrô pela Mancha Verde, que testemunhei em São Paulo, me fez pegar abuso pelo time do Parque Antártica, estádio que ficava a apenas algumas quadras de dois de meus endereços paulistanos. E um abuso ainda maior por esses bandos de criminosos e arruaceiros que formam o núcleo mais central das torcidas organizadas. E um ainda maior abuso pela inépcia das autoridades que são incapazes de extinguirem ou desmontarem essas máfias. Ou porem esses criminosos atrás das grades depois de tantos homicídios, sangue derramado e recorrentes selvagerias.
Mas voltemos a Djalminha. Ele também jogou no Fla. Aliás começou no Fla, apesar de ser paulista e filho de um grande jogador que chegou a defender as alvinegras hostes do mítico Santos F. C., como defesa. Uma evolução em família. Porque, claro, embora seu pai, Djalma Dias, fosse um respeitável zagueiro, o que nós prezamos mesmo são atacantes, jogadores verticais, que cortejam o gol. E assim era Djalminha. Um meia, sim. Mas aquele meia que está sempre avançando, quase o que se chamava alguns anos atrás de ponta-de-lança - embora ele jogasse um pouco mais recuado que Zico, por exemplo. No frigir, um meia que estava sempre rondando a área adversária como um jaguar.
Erra quem pensa que a melhor equipe em que ele jogou foi o Deportivo La Coruña. Na verdade, foi o Palmeiras de 96. Um time onde jogavam juntos ninguém menos que Rivaldo, Cafú, Cleber, Júnior, Velloso e o próprio Djalminha.
Talvez sua principal qualidade fosse a imprevisibilidade, para além do incrível manejo de bola. E era também um grande batedor de faltas e pênaltis. Em seus melhores dias proezava coisas que só Ronaldinho em sua primícia pôde oferecer com ainda maior repertório. E, no entanto, era um desastre fora de campo. Por vezes, também dentro dele, pois, temperamental como revelava-se, frequentemente entrava em provocações e era expulso. Emblemática a cabeçada que deu, durante um simples treino, em um de seus treinadores: Javier Irureta, do La Coruña. Custou-lhe a Copa de 2002 - Felipão, então, para seu lugar, convocou um jovem talento, então despontando no São Paulo. Chamava-se: Kaká.
Disciplina não era termo de seu léxico. E, contudo, sem Djalminha, o La Coruña jamais teria sido campeão espanhol. Ele, com toda sua carga de rompantes indisciplinados, ainda conseguia ser o dínamo daquela equipe.
Porém esse seu errático comportamento não lhe facilitou em nada a carreira. Poucas vezes foi convocado para a Seleção. Infelizmente. Em matéria de meias, poucos foram tão talentosos nos últimos quatro lustros quanto Djalma Feitosa Dias. Jogava como se joga nas praias ou na rua. Com a molecagem, o improviso, o tirar o coelho da cartola que tanto nos deleita.
Mas também com a elegância e o talento natural que só se entregam a eleitos.
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