quarta-feira, 24 de março de 2010

Sinais, orientações, lembretes


Ramon Cavalcante e Fernanda Meireles, subjetivando cidades objetivas



Desde as cidades que nos habitam àquelas que habitamos, e de volta


Poucos têm feito tanto para aglutinar e divulgar os veios diversos da literatura feita a partir de Fortaleza ou de passagem por ela quanto Fernanda Meireles. Nanda idealizou um evento, o Literatura de Lua, por onde já passaram gentes dos mais diversos estilos, posturas e relações com a palavra. E tudo ao sabor dos deliciosos cafés e confeitos do Café da Lua, nos altos da Livraria Lua Nova, no Benfica.

Fernanda Meireles e Ramon Cavalcante lançam amanhã, 25/03, no Parente Snooker Bar, Rua Dom Jerônimo, 554, (próximo à linha de trilhos que corta a Av. Treze de Maio em seus inícios, antes de se tornar Jovita Feitosa), Cidades Internas.

Cidades Internas consiste numa coleção de 15 placas coloridas em PVC, 12x20cm. "Nelas estão marcações, sinais, orientações e lembretes que conectam" a cidade que moramos ao reverso, à que mora dentro de nós. Cada uma dessas pequenas aventuras e riscos urbanos pode ser adquirido ao módico preço de R$ 15,00.


Os desenhos são de Ramon. As escrituras de Fernanda.


Feito o convite. É conferir.




* * *


Algo da chispa dos olhos do miúra





Sempre-chegada a Ceuta


O linho do vestido conformando
densos, cada movimento traços
de um croqui quando chegaste ali
quase à sombra do Monte Hacho
O panamá sobre o chanel a guardar
algo de leve androginia que era
rematado blefe no pôquer da tarde e luzia
em teu rosto uma liquidez de termas
como se por trás de tanta elegância
pulsasse um gavião, satisfeito de chegar
ao termo da volataria; e o lábio em transe
entreabrindo-se em fase, reinaugurasse
a quase invisível rasura que te risca
a face esquerda; e os olhos a guardar
algo da chispa dos olhos do miúra.


[poema de Mediterrâneo]


Lançamentos de poesia, por Annita Costa Malufe, Revista Cult, número 144, março 2010:

“Ruy Vasconcelos optou por não reunir seus poemas em um livro. Mesmo assim, seus textos espalham-se por aí, em diversas revistas literárias e antologias - para não citar suas inúmeras traduções. Nesta plaquete artesanal, [Mediterrâneo], temos, assim, uma rara oportunidade de mergulhar por um pouco mais de tempo numa poética exigente, rigorosa. E trata-se mesmo de um mergulho por cenários e atmosferas pouco familiares para nós, em poemas nascidos de uma viagem à cidade de Ceuta, norte da África. A rememoração de um amor fugaz, perdido no tempo e no espaço, é o material que dá “certo tom elegíaco” a esta poesia, como define o autor, para quem a poesia medieval é uma das referências”.


Mediterrâneo, Ruy Vasconcelos, Arqueria Editorial, São Paulo, SP, 2010, pode ser encomendado à: arqueriaeditorial@yahoo.com.br ao preço de R$ 15,00.


Nota - Segue minha gratidão à Virna Teixeira, minha editora. Assim como aos amigos Diego Vinhas e Eduardo Jorge que leram a plaquete ainda em seus originais. Gostaria também de agradecer, por tabela, a Francisco dos Santos, que, desde Bauru, interior de São Paulo, tem feito, através de sua Lumme Editorial, um belo e bem recortado trabalho de edição de poesia e me despertado para possibilidade de lançar-me a alguns projetos comuns na área de tradução -- que tanto me é cara.


* * *

quarta-feira, 10 de março de 2010

Nos afagam feito seda: Shakespeare

























Paul Klee, Old Man Figuring (Rechenender Greis), 1929



Sonnet CXXXVIII

When my love swears that she is made of truth,
I do believe her, though I know she lies,
That she might think me some untutored youth,
Unlearnèd in the world’s false subtleties.
Thus vainly thinking that she thinks me young,
Although she knows my days are past the best,
Simply I credit her false-speaking tongue:
On both sides thus is simple truth suppressed.
But wherefore says she not she is unjust?
And wherefore say not I that I am old?
Oh, love’s best habit is in seeming trust,
And age in love loves not to have years told.
Therefore I lie with her and she with me,
And in our faults by lies we flattered be.

William Shakespeare


Soneto CXXXVIII

Quando meu amor jura que é feita de verdade,
Devo crê-la, ainda que eu saiba: ela mente;
Tomando-me por um inculto adolescente,
Sem notar nas sutilezas deste mundo falsidade.
Assim pensando, ela acha em mim pouca idade,
Entanto saiba: o melhor de meus dias já não é presente,
E creio em sua falsa língua, simplesmente:
De ambos os lados impera a mesmíssima inverdade.
Mas então, por que ela não diz que é injusta?
E, no caso, por que não digo que estou velho?
Ah, esse melhor hábito do amor, fingir que nada custa,
E tempo no amor não põe o passar de anos no espelho,
Portanto minto para ela, ela replica na mesma moeda
E essas faltas e mentiras nos afagam feito seda.





* * *

terça-feira, 9 de março de 2010

Amanheceu, é dia claro: uma alba desde a Provença


Giovanni Anselmo, 2000




Alba

Quan lo rosinhols escria
ab sa part la nueg e.l dia,
yeu suy ab ma bell'amia
jos la flor,
tro la gaita de la tor
escria: "Drutz, al levar!
Qu'ieu vey l'alba e.l jorn clar".

Anônimo



Alba

Quando o rouxinol assovia
escavando da noite o dia,
sobre a bela guria
minha mão ainda escorre,
até troar na torre
o apito: “Amantes, vos declaro,
amanheceu, é dia claro!”




Nota – este poema, de um trovador anônimo, é um das mais conhecidas albas da poesia provençal. Esta tradução, nada literal, é bastante “solta”, em vários aspectos. Um trovador, por exemplo jamais chamaria sua amante de “guria”, mas de “senhora”, “dama”, ou no mínimo “amiga” [(“amia”, v.3) que significava  “namorada”, como no galego-português-arcaico – de onde, aliás, adveio esse gênero poético que se aclimatou, posteriormente, na Provença].


*   *   *

segunda-feira, 8 de março de 2010

O tempo nada te dirá: Auden

















Roger de La Fresnaye, 1913



If I could tell you

Time will say nothing but I told you so,
Time only knows the price we have to pay;
If I could tell you I would let you know.

If we should weep when clowns put on their show,
If we should stumble when musicians play,
Time will say nothing but I told you so.

There are no fortunes to be told, although,
Because I love you more than I can say,
If I could tell you I would let you know.

The winds must come from somewhere when they blow,
There must be reasons why the leaves decay;
Time will say nothing but I told you so.

Perhaps the roses really want to grow,
The vision seriously intends to stay;
If I could tell you I would let you know.

Suppose the lions all get up and go,
And all the brooks and soldiers run away;
Will Time say nothing but I told you so?
If I could tell you I would let you know.


W. H. Auden



Se eu puder te dizer


O tempo nada te dirá mas eu te digo.
O tempo só sabe de nosso preço a pagar;
Se eu puder te dizer, separarás joio e trigo.

Se o show dos clowns nos causar desabrigo,
Se tropeçarmos quando a orquestra tocar,
O tempo nada te dirá mas eu te digo.

Não há sortes a serem lidas, sem pascigo,
Porque te amo mais do que posso declarar,
Se eu puder te dizer, separarás joio e trigo.

O vento sopra desde seu lugar de fustigo,
Deve haver razões para a folhagem tombar,
O tempo nada te dirá mas eu te digo.

Talvez o roseiral queira passar do espigo,
A visão circunspectamente teima em fixar,
Se eu puder te dizer, separarás joio e trigo.

Digamos que leões acordem e saiam sem perigo,
E todos os riachos e soldados ponham-se a recuar;
O tempo nada te dirá mas eu te digo?
Se eu puder te dizer, separarás joio e trigo.



* * *


Como nada mais: Creeley














Robert Smithson, Corner Mirror With Coral, 1969


Oh Love

My love is a boat
floating
on the weather, the water.

She is a stone
at the bottom of the ocean.

I hold her
in my hand
and cannot lift her,

can do nothing
without her. Oh love,
like nothing else on earth!

Robert Creeley



Ah Amor

Meu amor é um barco
boiando
no clima, na água.

Ela é uma pedra
no fundo do oceano.

Tomo-a
em minhas mãos
e não posso erguê-la,

nada posso fazer
sem ela. Ah amor,
como nada mais na terra!


* * *

Devia parecer um prodígio: Creeley

Frederick Kiesler, 1951


 
Somewhere

The galloping collection of boards
are the house which I afforded
one evening to walk into
just as the night came down.

Dark inside, the candle
lit of its own free will, the attic
groaned then, the stairs
led me up into the air.

From outside, it must have seemed
a wonder that it was
the inside he as me saw
in the dark there.

Robert Creeley


Algures

A galopante coleção de tábuas
é a casa que adquiri
certa tarde para andar por dentro
enquanto a noite caía.

Escuro lá dentro, a vela
acesa por si, o sótão
gemia então, os degraus,
suspendiam-me no ar.

Do lado de fora, devia parecer
um prodígio que fosse
o interior o que ele feito eu visse
no escuro de lá.


 *   *   *

Como se todos: Creeley

Kara Walker, 1998




A Token


My lady
fair with
soft
arms, what

can I say to
you—words, words
as if all
worlds were there.


Robert Creeley



Um Empenho


Minha bela
dama de
macios
braços, que

posso dizer a
você—alfas, betas
como se todos
os planetas lá estivessem.


* * *
 

Macios mais sejam que suaves sonos: cummings











Juan Miró, The Hunter, 1923




'All in green went my love riding'

All in green went my love riding
on a great horse of gold
into the silver dawn.

four lean hounds crouched low and smiling
the merry deer ran before.

Fleeter be they than dappled dreams
the swift sweet deer
the red rare deer.

Four red roebuck at a white water
the cruel bugle sang before.

Horn at hip went my love riding
riding the echo down
into the silver dawn.

four lean hounds crouched low and smiling
the level meadows ran before.

Softer be they than slippered sleep
the lean lithe deer
the fleet flown deer.

Four fleet does at a gold valley
the famished arrow sang before.

Bow at belt went my love riding
riding the mountain down
into the silver dawn.

four lean hounds crouched low and smiling
the sheer peaks ran before.

Paler be they than daunting death
the sleek slim deer
the tall tense deer.

Four tall stags at a green mountain
the lucky hunter sang before.

All in green went my love riding
on a great horse of gold
into the silver dawn.

four lean hounds crouched low and smiling
my heart fell dead before.


e.e. cummings


'Toda de verde meu amor seguia'

Toda de verde meu amor seguia
em um grande cavalo de ouro
na salva da manhã.

quatro galgos esguios rastejavam-na abaixo e propícios
os altos picos adiante seguiam.

Céleres sejam mais que nesgas de sonhos
o liso suave cervo
o rubro raro cervo.

Quatro cabritos baios na alva água
a cruenta corneta soava adiante.

Trompas em riste meu amor seguia
galopava ao fundo do eco
na salva da manhã.

quatro galgos esguios rastejavam-na abaixo e propícios
os planos prados adiante seguiam.

Macios mais sejam que suaves sonos
o esguio esperto cervo
o célere soberbo cervo

Quatro corriam ao longo de um vale dourado
as esfaimadas flechas adiante silvavam.

Arcos retesos se meu amor galopava
descendo a vertente
no veio da manhã

quatro esguios galgos rastejavam-na abaixo e propícios
os planos prados adiante seguiam

Mais lívidos sejam que a pavorosa morte
o leve lustroso cervo
o alto ansioso cervo

Para quatro gamos numa colina verde
a rápida caçadora silvava adiante

Toda de verde meu amor seguia
em um grande cavalo de ouro
na salva da manhã

quatro galgos esguios rastejavam-na abaixo e propícios
antes meu coração caiu fulminado 


*   *   *