quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Ávidos olhos, ébrios de maravilha: Ungaretti


Jack Strange, Spinning Beach Ball of Death. 2007.



Tu ti Spezzasti

I molti, immani, sparsi, grigi sassi
Frementi ancora alle segrete fionde
Di originarie fiamme soffocate
Od ai terrori di fiumane vergini
Ruinanti in implacabili carezze,
- Sopra l'abbaglio della sabbia rigidi
In un vuoto orizzonte, non rammenti?

E la recline, che s'apriva all'unico
Raccogliersi dell'ombra nella valle,
Araucaria, anelando ingigantita,
Volta nell'ardua selce d'erme fibre
Più delle altre dannate refrattaria,
Fresca la bocca di farfalle e d'erbe
Dove le radici si tagliava,
- Non la rammenti delirante muta
Sopra tre palmi d'un rotondo ciottolo
In un perfetto bilico
Magicamente apparsa?

Di ramo in ramo fiorrancino lieve,
Ebbri di meraviglia gli avidi occhi
Ne conquistavi la screziata cima,
Temerario, musico bimbo,
Solo per rivedere all'ilmo lucido
D'un fondo e quieto baratro di mare
Favolose testuggini
Ridestarsi fra le alghe.
Della natura estrema la tensione
E le subacquee pompe,
Funebri moniti.

2.

Alzavi le braccia come ali
E ridavi nascita al vento
Correndo nel peso dell'aria immota.

Nessuno mai vide posare
Il tuo lieve piede di danza.

3.

Grazia, felice,
Non avresti potuto non spezzarti
In una cecità tanto indurita
Tu semplice soffio e cristallo,

Troppo umano lampo per l'empio,
Selvoso, accanito, ronzante
Ruggito d'un sole d'ignudo.

Giuseppe Ungaretti



Tu te Quebraste

As várias pedras grandes, esparsas e cinzas,
Oscilantes ainda na secreta funda
Das originais flâmulas sufocadas;
Ou do terror dos arroios virgens
Arruinados por carícias implacáveis,
– Sobre o faiscante aluvião rijo
Em um horizonte vazio, tu te lembras?

E que dizer da araucária curva, abrindo-se
À única recolha de sombra no vale
Arquejando agigantada
Enroscada em duro sílex de derme fibrosa
Mais resistente que as demais, malditas;
A boca fresca de borboleta e erva
De onde as raízes se talhavam
–Não lembras, mudo delirante,
Do sopro de três palmeiras numa rocha em círculo
Como em perfeito equilíbrio
Surgido por mágica?

De galho em galho, ágil bem-te-vi,
Os ávidos olhos, ébrios de maravilha
Te conduziam ao topo marchetado,
Afoito menino músico,
Só para rever entre o limo luzidio
Numa funda e calma cava
Imensas tartarugas marinhas
Reanimarem-se entre algas.

Da natureza extremada, a tensão
E a pompa submarina.
Alertas fúnebres.


2.

Erguias os braços como asas
E ressuscitavas o vento
Correndo entre o denso ar imóvel.

Ninguém jamais te viu pousar
O pé suave, de bailarino.


3.

Ah, graça feliz,
Nada ficou inteiro, tu te quebraste
Numa tão dura cegueira.
Tu, mero sopro, cristal,

Faísca demasiada humana para o aval do ímpio,
Selvagem, pertinaz e buliçoso
Rugido de um sol desnudo.



Nota – esta, sem dúvida, figura entre as mais belas elegias da poesia moderna. Antonietto, o filho de apenas 9 anos, que Ungaretti perdeu quando morava no Brasil, morreu de complicações causadas por uma prosaica cirurgia de apêndice. Minha versão foi feita abusando de algumas liberdades em certos trechos. Por exemplo, o “bem-te-vi”, a rigor, seria “carriça” ou “garrincha” nos dicionários. Mas convenhamos, “carriça”, embora não seja de todo mau, não canta tão bem assim – ao menos no contexto do poema. E “garrincha” remeteria para tudo que há entre quatro linhas, um gramado, cortinas abertas, refletores acesos e "joões" no chão. E há também algumas pequenas variações de sintaxe na versão. Mais do que me permito usualmente. Pode-se sentir que o modelo de Ungaretti aqui é o grande poema elegíaco do sec. XIX, “A Silvia”, de Leopardi. Há momentos em que se ouve o poema de Leopardi no de Ungaretti – apesar de serem duas coisas distintas e de uma beleza própria. Aqui por Afetivagem há traduzido o pastiche que Robert Lowell fez para esta elegia, editado em seu volume Imitations (1961), e intitulado “Sylvia” – assim com “y”, como Sylvia Plath (mas nenhuma relação, embora Lowell a conhecesse). Neste último poema (“Sylvia”) se ouve Leopardi. Mas, em essência, se ouve Leopardi “através de Lowell”. Talvez o fato de um poeta importante como Ungaretti não ser mais divulgado e lido no Brasil, afinal ele ensinou na USP e traduziu poetas brasileiros como Gonçalves Dias, Bandeira, Drummond e Vinícius de Moraes, entre outros, advenha do fato de haver apoiado Mussolini. Fosse ele de esquerda, certamente teria sido muito mais divulgado e estudado numa terra que aparece até como paisagem em sua obra – repare na “araucária” presente neste poema ou nas grandes tartarugas marinhas, p. ex. Além disso, ele envolveu-se, já na maturidade, com uma jovem ítalo-paulistana. Ungaretti foi também um grande tradutor. Entre os autores que verteu para o italiano estão Shakespeare, Racine, Góngora, Blake e Mallarmé.


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