Roy Lichtenstein, 1965
Dez pérolas pop
para Chris Vianna
Qualquer vivente teria uma diferente lista para as dez melhores baladas pop de todos os tempos se um dia se ocupasse com tão imprescindível tarefa. Haveria tantas listas quanto pares de ouvidos. A que se segue é só mais uma. E sem contar Beatles – que é um gênero musical por si:
1. “Enquanto houver estrelas no céu...”
Foi Paul MaCartney quem disse que “God only knows” era a melhor canção pop já registrada em disco. Não exagerou. Desde sua magistral abertura onde sobressaem trompas, passando por baixo e bateria cruzando uma ponte inusitada para a época, este pequeno cromo lírico consagra Brian Wilson como um dos gênios da raça americana. A voz, de Carl Wilson, soa estranhamente limpa e coloquial. Na medida para verter em som esse comentário perfeito sobre o amor adolescente. A letra de Tony Asher é direta e ingênua. Cada palavra. O resultado final, sublime. Brian, em sua incontida autoreferencialidade, diz que antes das sessões, eles rezavam para que todos os sons se combinassem como deveriam. Combinaram-se. Há muitas belas baladas em Pet Sounds, dos Beach Boys – disco que inspirou o Sargeant Peppers – mas nenhuma excede “God only knows”.
2. “Me sento, vejo os meninos brincando...”
Jagger e Richards escreveram “As tears go by” para Marianne Faithful. No entanto, a gravação dos Stones surpreende. O arranjo orquestral é discreto, ligeiramente fora de tempo e longe da exuberância sonora de um George Martin. O que segura mesmo a balada são as imagens da letra e os rifes simples de Keith ao violão. Esse pôr-de-sol urbano, com crianças brincando à volta, e a supor que estão inaugurando o mundo. Mas elas fazem coisas que o quieto observador já fez, no que água salgada salta-lhe dos olhos. São aqueles dias que escorrem em lágrima e não se sabe bem por que. E é estranho que esse pequeno hino estóico esteja entre as maiores realizações dos hedonistas do rock.
3. “Pequenos dedos de chuva...”
A hipérbole está na essência do Zeppelin. Mesmo nas baladas mais suaves. “Se o sol se recusasse a brilhar, eu ainda te...” diz “Thank you”. Quando a voz de Plant atinge o ponto mais agudo na escala da canção, sabemos de fato que essa é para celebrar a paixão. Mas há também um senso de contida vitória nela, para além de pulsão, violência e sinceridade.
4. “Dezesseis virgens vestais...”
O Procol Harum seria apenas mais um entre muitos grupos não fosse “A whiter shade of pale”. Conta-se que Ciorán, o pensador romeno, passava em 1969 por certa rua de Londres quando ouviu a canção. Entrou no pub de onde ela provinha. Escutou-a em reverente silêncio. Depois disse emocionado: ‘Mas isso é Bach!’ Na mosca. O órgão de Matthew Fisher não teve outra intenção além de reverenciar o mestre de Leipzig nessa canção de letra surreal.
5. “Encruzilhadas, vir e ir é o mesmo...”
Duane Allman, sinônimo de guitarras em slide, comenta com correção a suave “Melissa”, da Allman Brothers Band. E se pode sentir o quanto, depois de uma jornada de costa a costa, era reconfortante encontrar no fim da travessia com essa “sweet Melissa”. Há um vigoroso crescendo no refrão. Uma plangência. Vida de cigano.
Nota Posterior: na verdade essa versão de "Melissa" foi gravada após a morte de Duanne Allman, logo a parte da guitarra, embora lembre bastante seu estilo, é tocada por Dicky Betts.
6. “O céu vai desabar...”
Dylan está para o pop como Dante para poesia do Ocidente. Sua destreza com as palavras dá testemunho de uma mente fértil. Em “If not for you” ele traça um pequeno inventário de tragédias contornadas pelo amor. E os jogos de palavras já começam na aliteração do título. A instrumentação é leve e folk. Com destaque para certos sublinhos de slide-guitar.
7. “De joelhos, você me tem...”
Uma orgia musical regada a um explosivo coquetel de drogas produziu essa flor que é “Layla”. Mais uma prova de que a imundície extrema e a santidade se tocam no final. A canção que Clapton gravou para a então mulher de Harrison é uma sonata pop em dois movimentos. O primeiro atordoado, doído e esquizofrênico. O segundo, suave como uma bem namorada tarde de sol no parque (Scorcese habilmente utilizou este segundo movimento suave em cenas violentíssimas de Os bons companheiros). Este segundo movimento, instrumental, foi composto ao piano pelo baterista americano Jim Gordon, que teve uma vida trágica – numa crise de loucura, matou a mãe à marteladas. Em ambos os momentos da canção destaca-se, mais uma vez, a poesia da guitarra de Duanne Allman.
8. “Nem redentor, nem santo...”
Three of a perfect pair (Três de um par perfeito), esse estranho disco temporão do King Krimson, traz sons surpreendentes. Mas nenhum mais encantador que “Model man”. A voz plangente do guitarrista Adrian Belew responde pela metade da excentricidade dessa canção que traz também um baixo copiosamente bem pulsado. O discurso é o de um amante posto à prova da infidelidade, a se justificar.
9. “Para oeste, e mais além...”
Só o título já desperta curiosidade: Tema para um western imaginário (“Theme for an imaginary western”). Talvez o mais belo de todo o universo pop. Mas a atmosfera dos filmes de caubói não fica só no título, também adentra a música até o ponto em que se pode embarcar nas carroças que deixam lentamente, em caravana, a cidade no rumo das poeirentas trilhas do Oeste. O tema foi composto pelo mítico baixista Jack Bruce (Cream) e pelo letrista Pete Brown, e gravada pelo Mountain – que chegou a executá-la em Woodstock, com um frenético solo de guitarra de Leslie West. Uma conjunção de grandezas.
10. “No fogo cruzado entre infância e estrelato...”
"Shine on you crazy diamond" traduz um dos avatares do Floyd: o tom épico. De início são os teclados de Rick Wright. Depois – e ainda mais efetivas – quatro notas da guitarra de David Guilmour que ecoam durante minutos. E, ah, as guitarras de Guilmour, uma rifeando, outra solando! E sem nenhum compromisso com datilografia musical, velocidade ou suposto virtuosismo. Compromisso só com o que há de mais casto em música: melodia. Logo no meio do primeiro dístico da letra (“Remember when you’re young/ You shone like the sun” – “lembra de quando você era pequeno/ reluzindo feito sol”) se escuta ao fundo um riso sarcástico. A terceira grandeza desta canção é a densidade da harmonia vocal do refrão. A letra refere à demência do inventivo Syd Barrett, que não agüentou o tranco ácido da fama e do torpor. Tudo a ver com quem se vendeu, com muito talento é verdade, por um bom punhado de dólares. Mas isso já é o tema de outra canção dos caras de Cambridge: "Money".
Nota – Chris Vianna era uma talentosa jornalista de O Povo, que se foi muito cedo. Ela gostava de sons. Este texto foi originalmente publicado, no ano da graça de 2005, em Nariz de Cera, um site que reunia cronistas diversos, e que saiu do ar sei lá por qual razão. Por fim, acrescentar que nem de longe só ouço música pop. E certamente teria mais dificuldade em escolher temas de jazz, música erudita e, sobretudo, música brasileira.
para Chris Vianna
Qualquer vivente teria uma diferente lista para as dez melhores baladas pop de todos os tempos se um dia se ocupasse com tão imprescindível tarefa. Haveria tantas listas quanto pares de ouvidos. A que se segue é só mais uma. E sem contar Beatles – que é um gênero musical por si:
1. “Enquanto houver estrelas no céu...”
Foi Paul MaCartney quem disse que “God only knows” era a melhor canção pop já registrada em disco. Não exagerou. Desde sua magistral abertura onde sobressaem trompas, passando por baixo e bateria cruzando uma ponte inusitada para a época, este pequeno cromo lírico consagra Brian Wilson como um dos gênios da raça americana. A voz, de Carl Wilson, soa estranhamente limpa e coloquial. Na medida para verter em som esse comentário perfeito sobre o amor adolescente. A letra de Tony Asher é direta e ingênua. Cada palavra. O resultado final, sublime. Brian, em sua incontida autoreferencialidade, diz que antes das sessões, eles rezavam para que todos os sons se combinassem como deveriam. Combinaram-se. Há muitas belas baladas em Pet Sounds, dos Beach Boys – disco que inspirou o Sargeant Peppers – mas nenhuma excede “God only knows”.
2. “Me sento, vejo os meninos brincando...”
Jagger e Richards escreveram “As tears go by” para Marianne Faithful. No entanto, a gravação dos Stones surpreende. O arranjo orquestral é discreto, ligeiramente fora de tempo e longe da exuberância sonora de um George Martin. O que segura mesmo a balada são as imagens da letra e os rifes simples de Keith ao violão. Esse pôr-de-sol urbano, com crianças brincando à volta, e a supor que estão inaugurando o mundo. Mas elas fazem coisas que o quieto observador já fez, no que água salgada salta-lhe dos olhos. São aqueles dias que escorrem em lágrima e não se sabe bem por que. E é estranho que esse pequeno hino estóico esteja entre as maiores realizações dos hedonistas do rock.
3. “Pequenos dedos de chuva...”
A hipérbole está na essência do Zeppelin. Mesmo nas baladas mais suaves. “Se o sol se recusasse a brilhar, eu ainda te...” diz “Thank you”. Quando a voz de Plant atinge o ponto mais agudo na escala da canção, sabemos de fato que essa é para celebrar a paixão. Mas há também um senso de contida vitória nela, para além de pulsão, violência e sinceridade.
4. “Dezesseis virgens vestais...”
O Procol Harum seria apenas mais um entre muitos grupos não fosse “A whiter shade of pale”. Conta-se que Ciorán, o pensador romeno, passava em 1969 por certa rua de Londres quando ouviu a canção. Entrou no pub de onde ela provinha. Escutou-a em reverente silêncio. Depois disse emocionado: ‘Mas isso é Bach!’ Na mosca. O órgão de Matthew Fisher não teve outra intenção além de reverenciar o mestre de Leipzig nessa canção de letra surreal.
5. “Encruzilhadas, vir e ir é o mesmo...”
Duane Allman, sinônimo de guitarras em slide, comenta com correção a suave “Melissa”, da Allman Brothers Band. E se pode sentir o quanto, depois de uma jornada de costa a costa, era reconfortante encontrar no fim da travessia com essa “sweet Melissa”. Há um vigoroso crescendo no refrão. Uma plangência. Vida de cigano.
Nota Posterior: na verdade essa versão de "Melissa" foi gravada após a morte de Duanne Allman, logo a parte da guitarra, embora lembre bastante seu estilo, é tocada por Dicky Betts.
6. “O céu vai desabar...”
Dylan está para o pop como Dante para poesia do Ocidente. Sua destreza com as palavras dá testemunho de uma mente fértil. Em “If not for you” ele traça um pequeno inventário de tragédias contornadas pelo amor. E os jogos de palavras já começam na aliteração do título. A instrumentação é leve e folk. Com destaque para certos sublinhos de slide-guitar.
7. “De joelhos, você me tem...”
Uma orgia musical regada a um explosivo coquetel de drogas produziu essa flor que é “Layla”. Mais uma prova de que a imundície extrema e a santidade se tocam no final. A canção que Clapton gravou para a então mulher de Harrison é uma sonata pop em dois movimentos. O primeiro atordoado, doído e esquizofrênico. O segundo, suave como uma bem namorada tarde de sol no parque (Scorcese habilmente utilizou este segundo movimento suave em cenas violentíssimas de Os bons companheiros). Este segundo movimento, instrumental, foi composto ao piano pelo baterista americano Jim Gordon, que teve uma vida trágica – numa crise de loucura, matou a mãe à marteladas. Em ambos os momentos da canção destaca-se, mais uma vez, a poesia da guitarra de Duanne Allman.
8. “Nem redentor, nem santo...”
Three of a perfect pair (Três de um par perfeito), esse estranho disco temporão do King Krimson, traz sons surpreendentes. Mas nenhum mais encantador que “Model man”. A voz plangente do guitarrista Adrian Belew responde pela metade da excentricidade dessa canção que traz também um baixo copiosamente bem pulsado. O discurso é o de um amante posto à prova da infidelidade, a se justificar.
9. “Para oeste, e mais além...”
Só o título já desperta curiosidade: Tema para um western imaginário (“Theme for an imaginary western”). Talvez o mais belo de todo o universo pop. Mas a atmosfera dos filmes de caubói não fica só no título, também adentra a música até o ponto em que se pode embarcar nas carroças que deixam lentamente, em caravana, a cidade no rumo das poeirentas trilhas do Oeste. O tema foi composto pelo mítico baixista Jack Bruce (Cream) e pelo letrista Pete Brown, e gravada pelo Mountain – que chegou a executá-la em Woodstock, com um frenético solo de guitarra de Leslie West. Uma conjunção de grandezas.
10. “No fogo cruzado entre infância e estrelato...”
"Shine on you crazy diamond" traduz um dos avatares do Floyd: o tom épico. De início são os teclados de Rick Wright. Depois – e ainda mais efetivas – quatro notas da guitarra de David Guilmour que ecoam durante minutos. E, ah, as guitarras de Guilmour, uma rifeando, outra solando! E sem nenhum compromisso com datilografia musical, velocidade ou suposto virtuosismo. Compromisso só com o que há de mais casto em música: melodia. Logo no meio do primeiro dístico da letra (“Remember when you’re young/ You shone like the sun” – “lembra de quando você era pequeno/ reluzindo feito sol”) se escuta ao fundo um riso sarcástico. A terceira grandeza desta canção é a densidade da harmonia vocal do refrão. A letra refere à demência do inventivo Syd Barrett, que não agüentou o tranco ácido da fama e do torpor. Tudo a ver com quem se vendeu, com muito talento é verdade, por um bom punhado de dólares. Mas isso já é o tema de outra canção dos caras de Cambridge: "Money".
Nota – Chris Vianna era uma talentosa jornalista de O Povo, que se foi muito cedo. Ela gostava de sons. Este texto foi originalmente publicado, no ano da graça de 2005, em Nariz de Cera, um site que reunia cronistas diversos, e que saiu do ar sei lá por qual razão. Por fim, acrescentar que nem de longe só ouço música pop. E certamente teria mais dificuldade em escolher temas de jazz, música erudita e, sobretudo, música brasileira.
Ruy, quem é vc? Gostaria de fazer uma matéria sobre vc e seu blog. É muito bom!
ResponderExcluirO que vc acha?
Beijos.
nariz de cera...
ResponderExcluirisso faz-me lembrar de "um pouco mais de miolo". excelente!
god only knows é realmente a mais linda de todas, "i may not always love you, but long as there are stars above youuu", só o primeiro trechinho já emociona :~
ResponderExcluirhehe :)
uma delícia o poema do frank aí mais abaixo. há quem escreva assim em português?
ResponderExcluir"as tears go by" é mesmo uma pérola. e dizem que foi a primeira canção que mick e keith escreveram juntos. antes, tocavam apenas covers. daí o produtor chegou neles e disse: "olha, os beatles estão fazendo as próprias músicas. vocês precisam fazer as próprias músicas ou vão sumir", daí trancou os dois na cozinha e disse que só abria quando eles tivessem uma música prória. e a música foi essa. melodia e violão pateticamente simples e terrivelmente bonito.
abraço!
obrigado a todos por passarem por aqui.
ResponderExcluirfico um tanto curioso pelas listas de cada um.
alexandra, de fato 'god only knows' é uma beleza!
abs. e bjs.
ruy
Ruy,
ResponderExcluirA propósito do “Nariz de Cera”, eu também me recordo de “Um pouco mais de miolo”. Indispensável. De uma percepção que contagia.
Um abraço,
daniel,
ResponderExcluirisso é pra lá de curioso, o manoel e v. lembrarem de um texto q. o próprio autor ñ lembrava! [rs]
abs.
"as tears go by" e "god only knows", nessa ordem, muito PRAZER em conhecê-las.
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